sexta-feira, 24 de novembro de 2017

DEPOIMENTO - "ANTES DE ONTEM"

Quero abrir os olhos mas eles parecem grudados, como se eu tivesse dormido por muitas e muitas horas seguidas.Na verdade, não me lembro quando fui para a cama, nem de ter ido dormir. Não percebo a presença de André ao meu lado, já deve ser tarde. Meu corpo pesa e só com muita dificuldade consigo abrir os olhos. E tomo o susto da minha vida. Esse não é o meu quarto! Sinto minha espinha gelar e quero gritar, mas minha voz também parece assustada demais para sair. Decido observar tudo devagar e me sinto meio drogada. Qualquer movimento custa muito esforço e dói. Será que fui sequestrada? Será que sofri um acidente e estou no hospital? Quero levantar, mas as pernas parecem mesmo feitas de chumbo. E por que não consigo nem enxergar direito?

“Você já acordou? Está muito frio aqui para você?” A voz que conversa comigo é carinhosa, mas isso não evita que me assuste e tenha medo. Quem é esse rapaz, e o que faz aqui no meu quarto? Puxo o lençol espontaneamente para me cobrir, não me lembro o que vesti antes de dormir.

Aliás, não consigo me lembrar de muita coisa: o que aconteceu e como vim parar aqui? Não tenho a menor ideia. O rapaz, ao me ver puxar o lençol, entende que estou com frio, vem até a minha cama e inclina-se sobre mim. Num impulso, quero esbofeteá-lo para me defender, mas meu movimento é tão devagar que não o surpreende, e ele segura meu braço no ar.

“Não comece de novo com isso, Nana. Sem violência, vamos ter um dia bom, não é? Quer tomar o seu café da manhã agora?” Tenho então certeza de que fui sequestrada e drogada. Não me lembro de nada e me sinto muito mal e sem forças.

Me sinto tão confusa que não consigo articular nenhuma frase. E porque ele me chamou de Nana? Será que me confundiram com alguém e me sequestraram? Afinal de contas, não existiria nenhum motivo aparente para um sequestro. Não somos uma família de posses, André não tem inimigos e seu trabalho na Companhia é uma atividade sem riscos e entediante.

Junto todas as minhas forças e tento me comunicar. Até minha voz soa estranha e muito nervosa quando emito os primeiros sons, mas tomo coragem e continuo: “O que está acontecendo aqui? O que você fez comigo?” O rapaz me olha com um sorriso debochado. Sinto vontade de apertar o pescoço dele.

“Como assim, Nana? Você acordou e eu te perguntei se você já quer seu café da manhã, só isso. Nada demais. Não se preocupe. Está tudo bem.” Ele sorri e apesar do meu medo, meu coração se aquece ao vê-lo sorrindo. Não sei quem ele é, mas sei que o amo. Meu Deus! O que está acontecendo comigo? Sinto minhas bochechas queimarem e tenho vergonha dos meus pensamentos.

Como posso amar outro homem, se sou casada com André e temos uma vida de casados boa, feliz e tranquila? Embora, pensando bem, no turbilhão dos sentimentos que despertam dentro de mim, sei que o que sinto por esse homem é diferente. É uma espécie de…. Gratidão? Mas como, se minha suspeita é a de ele me sequestrou?

“Onde está André? Quero falar com ele.” O sorriso no rosto do rapaz desaparece. Tenho medo dessa reação. Tenho medo de sua resposta, mas preciso ouvir. Um sexto sentido arrepia minha pele, as lágrimas vêm e não as impeço. O rapaz me olha agora com piedade e senta-se à beira de minha cama:
“Nana, eu sofro tanto todas as vezes que você chora por ele. Acho que você nunca vai esquecê-lo!”

Se antes tinha dúvida, agora tenho certeza que algo aconteceu com André. Minhas lágrimas viram soluços e o rapaz me abraça. Eu quero repelir seu abraço no começo, mas depois ele é bem-vindo. Sei que confio nesse rapaz e não sei por quê. Quero abraçá-lo também e somente então percebo o estado do meu corpo fragilizado: meus braços estão só pele e osso. Minha espinha gela outra vez.

Eu o empurro e entre lágrimas, imploro uma explicação. “Pelo amor de Deus, me explique o que está acontecendo. Eu fui sequestrada? Há quanto tempo estou aqui? E o que de fato aconteceu com André? Eu preciso falar com alguém, com meus pais! Eles devem estar preocupados comigo! Por favor, se você tem algum carinho por alguém na sua vida, me deixe falar com alguém de minha família!” Meu choro é intenso.

“Você primeiramente precisa se acalmar. Vou buscar um copo de água. Ele se levanta e sai do quarto, com uma calma que destoa do meu estado de espírito. Será que ele não entende a gravidade da situação? O rapaz volta com um copo de água e seu sorriso estampa sua alma para quem quiser ver. Eu confio nele. Tenho certeza disso. Mas isso não muda a tempestade dos meus pensamentos. Tomo a água e ele afaga meus cabelos. Em outras circunstâncias eu recusaria esse carinho, mas não luto mais. Aceito o que ele tem para me oferecer. No momento é tudo o que eu tenho. As lágrimas, que tinham feito uma pausa, voltam a descer, mas um pouco mais contidas. Eu tomo coragem e pergunto:
“Me diga com sinceridade…”
Ele me interrompe:
“Primeiro você tem que me dizer o meu nome. Senão não respondo nada com sinceridade.”
Ele não está bravo. Pelo contrário, sua voz vem aveludada de carinho. Isso me encoraja:
“Como eu vou saber seu nome? Nunca te vi antes na minha vida!”
“Puxa, Nana, assim você me magoa. Quer dizer que tudo que aconteceu entre nós não significou nada para você?” Seu sorriso chega meio debochado e eu não sei o que pensar. Sim, alguma coisa me diz que já nos vimos antes. De repente, não sei o motivo, mas um nome me vem à mente.
“Ricardo.”
Ele abre mais um sorriso encantador e por um segundo, esqueço que estou com medo e confusa, e sorrio junto com ele.
“Muito bem! Agora sim, temos uma base para começar nossa conversa.”
“E por que você me chama de Nana? Ninguém me chama assim! Meu nome é Mariana!”
“Eu sempre chamei você de Nana. Já faço isso há muitos anos e não vou mudar isso agora.”
“Mas como assim, há muitos anos? Por favor, me ajude! Eu sei que posso confiar em você, me explique o que está acontecendo!”
Eu queria ter gritado com ele, mas minha voz sai como um fiozinho de som…. Eu devo realmente estar muito doente.

Não domino praticamente nada do meu corpo, que parece ter deixado de obedecer aos comandos de minha mente, fazendo com que minhas reações sejam lentas, pesadas, enfraquecidas. Sinto minha cabeça explodir e Ricardo se levanta mais uma vez, entretanto não diz nenhuma palavra. Ele me deixa a sós e fecho os olhos. Se eu dormir novamente, pode ser que acorde em uma outra realidade. Posso estar no meio de um pesadelo!

“Pronto, trouxe seu café da manhã, do jeito que você gosta.” Ricardo senta-se de novo à beira da cama e traz uma bandeja com café com leite e pão com manteiga, além de uma vasilha pequena com salada de frutas e iogurte. “Você está com dor de cabeça, não é? Ontem dormiu sem jantar. Deve estar com fome.”

Ontem… Não me lembro de ontem. No máximo me lembro de antes de ontem, quando André e eu fomos visitar nossos amigos Laura e Daniel em seu novo apartamento na Cidade Alta, e voltamos tarde para casa, eu descalça pelas ruas de Vitória, nós dois rindo alto e perturbando os bons moradores de nosso bairro, que queriam dormir seu sono justo de uma terça-feira qualquer. Não me lembro de um dia de ontem, quando fui dormir sem jantar.

Não discuto com ele. Realmente estou morrendo de fome. Ele me ajuda a sentar e colocar a bandeja sobre meu colo. Em seguida, me estende um par de óculos, que assento sem discutir imediatamente e o que já me faz sentir melhor, apesar de nunca ter usado óculos. Olho com mais atenção à minha volta e reparo em seu rosto. Ricardo é lindo!

Tomo um gole do café mas continuo fascinada com seu rosto. Seus olhos me lembram alguém…. Algo em sua fisionomia é tão familiar, mas, ao mesmo tempo, tão estranha!
“Você quer me perguntar alguma coisa?” Ele afaga novamente meus cabelos e me sinto bem. Tomo coragem para enfrentar a verdade.
“Há quanto tempo estou aqui?”.
Ele parece pensar demais para uma pergunta tão simples. Sua resposta vem em forma de outra pergunta.
“Você sabe onde você está?”
“Não”, respondo com sinceridade.
“Você está em casa, Nana. Aqui, você já mora há dez anos.”

Dez anos! Ele só pode estar brincando. Dez anos! Ele diz isso como se falasse em dez minutos. Se tivesse dito dez dias eu poderia até acreditar, pois acho que dormir realmente por muito tempo. Mas… dez anos? Eu não posso e nem quero acreditar, mas preciso continuar perguntando.

“E quem é você? Por que está cuidando de mim? E que diabos aconteceu?”
“Meu nome é Ricardo, mas disso você se lembra. Mas vejo que está na hora de você ler seu diário. Termine o seu café da manhã que eu já o trago. Me dê cinco minutos.”

Como sabe do meu diário eu não sei, mas quando ele fala disso, meu coração se acalma. Ele sai novamente do quarto e continuo a comer, ansiosa para rever meu diário, que escrevo desde os 13 anos. Não escrevo todos os dias, mas os acontecimentos mais importantes de minha vida estão lá.

Sinto de repente muita falta de André. Meu peito dói de saudade. Preciso sentir sua mão em meu rosto, preciso de seu abraço. Quem sabe ele está em algum lugar assim, como esse onde estou? Se eu puder encontrá-lo, podemos juntos descobrir o que nos aconteceu. As lágrimas voltam e não consigo terminar de comer. 

Ricardo volta com o diário em suas mãos. E quando me vê chorando, tira a bandeja de minha frente e me abraça novamente: “Nana, Nana! Hoje teremos mais um dia cinza, não é mesmo? Olha, fique calma! Já você vai se sentir melhor.” Ele me dá um beijo na testa, me entrega o diário, um envelope com lenços de papel e sai do quarto.

Respiro fundo. Tomo coragem e olho resoluta para meu diário, finalmente algo familiar, embora pareça mais pesado que o normal. Vou abrindo pelas estações de minha vida: lá estão as fotos do meu baile de aniversário de 15 anos. As férias com meus pais em Cabo frio. Aos 18, as primeiras fotos com André, ao lado da moto – onde nunca me carregou, apesar de todos os meus milhões de pedidos.

Sempre quis andar de moto, André tinha medo de que me machucasse, e nunca, nem durante nosso namoro, nosso noivado e mesmo depois do casamento, permitiu que eu subisse na garupa de sua motocicleta. Tomo um susto ao ver que o diário não para por aí. Estranhamente, depois do casamento, em 1960, ele continuava bem mais longo do que o normal. Afinal, sou casada há dois anos com André e estamos no ano de 1962…. Ou será que não?

“18 de setembro de 1963. Hoje descobri que estou grávida. André chorou de alegria com a notícia e disse que quer que eu engorde pelo menos 30 quilos. Eu disse que só se ele também for engordar. Ele levou a sério. Comprou dois litros de sorvete e comemos tudo no almoço. Vomitei uns três litros logo depois. Desse jeito, acho que vou emagrecer em vez de engordar na gravidez”.

Grávida? Num impulso, afago minha barriga. Como assim? E como não me lembro? Não quero continuar a ler, quero devorar rapidamente as informações que encontro e prefiro me concentrar nas datas das postagens e as fotos que vou encontrando. Sou assaltada por relatos e imagens de coisas que nunca vivi. Mas nas fotos, aquela sou eu: eu com um bebê no colo em 1964. Depois, André me abraçando e segurando uma menina no colo em 1968, enquanto eu afago outro bebê no colo. 1972, nós quatro em férias numa praia na Bahia. 1979, a menina com traje de gala e embaixo da foto a legenda “Gabriela. Nossa debutante”.

Estou muito confusa. Ainda há muitas páginas depois daquela. Se as fotos não estiverem mentindo, a vida passou sem que eu tivesse vivido nenhum daqueles momentos retratados ali. Faço uma pausa para respirar. Sou mãe. Há muitos anos. E não me lembro dos meus filhos. Por alguma razão acredito em todos esses absurdos e sinto … saudade dos meus filhos? Ricardo! Agora sim, eu sei de onde reconheço suas feições! Ricardo é meu filho!

“Ricardo!” – eu junto todas as forças que tenho para chamá-lo.
“O que foi, Nana?” – ele vem correndo, mas parece se acalmar ao ver que está tudo bem. Ele se aproxima: “Ah, o diário, Em que parte você está? Quer que eu veja junto com você?”.
“Você é meu filho?” – eu pergunto sem rodeios, e ele ri.
“Não, Nana. O nome de seu filho também é Ricardo, mas eu sou bem mais bonito que ele. E tenho mais cabelos.”
A verdade vem como uma bomba, difícil de acreditar, mas, de repente, eu sei. Ricardo é meu neto.
E de súbito me lembro de Ricardo Júnior, pequeno, em cima da goiabeira, com seus sete, oito anos de idade. “Nana, olha, eu sei voar!”, ele diz, enquanto eu tento correr, mas chego tarde demais. O menino despenca lá de cima, na queda bate o rosto numa pedra, o sangue jorra de sua testa. “Ai minha perna!”, ele grita, enquanto eu grito para dentro de casa: “André, rápido, Júnior caiu! Vamos para o hospital, corre!” Na pressa, olho para os pés de Júnior – é assim que o chamamos: Júnior, e não Ricardo! – e vejo que suas unhas estão grandes demais. Tenho raiva da esposa de Ricardo – até me lembro de seu nome, é Cretina. Não, na verdade, o nome é Cristina, mas eu sempre a chamava de Cretina quando falava com André sobre ela. Tenho raiva da Cretina, porque ela não cortou suas unhas do pé de seu único filho. “A Cretina não cortou suas unhas, e você quebrou a perna”, eu falo como se Júnior pudesse saber para onde meus pensamentos haviam me levado. Saber ele não sabia, mas sua risada já mostrava que sabia de quem eu estava falando.

“Puxa, Nana, você sempre foi cruel com a minha mãe. Tadinha, ela gostava tanto de você!” Gostava. Não gosta mais. Eu me lembro. Cristina morreu num acidente de carro. Ela foi enterrada com um vestido azul-claro. Eu comprei Lírios para ela. Chorei de arrependimento por muitos dias, por ter feito de sua vida um inferno, por ter tido tanto ciúme.

“Ela morreu, não é?”. Eu pergunto mas já sei a resposta. Onde estavam todas essas lembranças, meu Deus. Queria tomar um Martíni. Mas eu acho que já era uma mulher com mais de 60 anos. Pelo jeito com mais de 70. Acho que meu neto não iria me dar um Martíni. Não deixo ele responder sobre a morte de sua mãe, eu preciso muito de um gole, agora.

“Você me dá um Martíni?”.
Júnior olha no relógio e ri mais uma vez.
“Nana, de uns tempos para cá você está virando cachaceira. Vive me pedindo Martini, Vodka, Gin Tônica… Além do mais, eu já te dei sua dose de hoje, não lembra?” Não, eu não lembrava, mas pela primeira vez, tenho certeza de que ele está mentindo. Sei que não bebi nenhuma gota de álcool hoje, e pelo jeito, tem muitos anos que não bebo nada.

Folheio o diário mais um pouco. Eu sei o que estou procurando. Preciso saber o que aconteceu com André. Sei que vou achar ali a resposta, e já começo a chorar. Júnior acaricia de novo meus cabelos, e abre na página que sabe que procuro: “Eu não consigo mais te dar essa notícia. Você parte meu coração todas as vezes com o seu sofrimento”. Lanço os olhos sobre o papel e encontro a certeza da minha suposição: “4 de maio de 1990. Hoje perdi minha alma gêmea. Não sei como vou poder viver sem você, André, meu amor. Não quero continuar a viver num mundo onde não veja seu sorriso todos os dias. Por favor, Deus, me leve junto com o meu amor”.

Eu caio num choro tão desesperador, que começo a perder o ar. De repente eu sei. É aquela dor, tão forte que parece que vai rasgar cada centímetro de meu corpo. André se foi, e poderia jurar que isso acabou de acontecer. Como vou viver sem ele? Não consigo dormir sem que ele já esteja na cama. Não sei viver sem suas piadas, sem seu carinho, sem sua implicância com meu cabelo. “Não vou conseguir viver sem ele! Meu Deus, como isso dói!” . 

Eu vou me desfazendo em choro e Júnior segura minha mão. Seus olhos estão úmidos. Ele não fala mais nada, e sou eu quem deveria consolá-lo, mas estou muito destruída para isso. Ele me ampara: “Nana, isso foi há quase 20 anos. Você vai conseguir, como conseguiu todos esses anos. Estou com você.”

Fecho o diário. Não sei se quero saber de mais nada. Antes de ontem, quando dormi, minha vida estava segura. Hoje, acordei 50 anos mais velha. De tudo o que vivi, só trago as dores do que perdi. Não entendo o que aconteceu. Estou confusa. E muito triste.

“Por que eu não me lembro, Júnior? É tudo o que eu quero saber.” Por algum motivo, eu fui julgada e condenada, mas não sei por quê. Que tipo de pecado eu cometi, para que fosse castigada dessa forma – perdendo a consciência de minha vida inteira? Perdendo todos os que amo… E meus pais, meus irmãos, meus amigos…. o que aconteceu com eles durante esse tempo?

Júnior segura minha mão. Tira do bolso um pequeno aparelho e me entrega, apesar de meu olhar confuso e depois de apertar algumas teclas. E numa tela, eu apareço ao seu lado, ali, naquele quarto. Meu rosto eu reconheço, por trás de rugas e sulcos advindos de experiências das quais não me recordo, emoldurado por cabelos brancos, ao invés dos cachos negros de que André tanto gostava. Mas essa sou eu. Os olhos são meus e o sorriso – como eu posso estar sorrindo? – é todo meu.

Eu, na tela, começo a falar:
“Hoje estou aqui do lado do meu neto Júnior para falar para mim mesma que tudo vai acabar bem. Às vezes eu acordo muito confusa, não me lembro de nada, as vezes não me lembro de ninguém. Mas isso é porque há alguns anos sofro de uma doença chamada Alzheimer. Ela me faz esquecer às vezes de coisas muito importante, como as pessoas que amo e o que vivi em vida”.

A minha imagem naquela tela é a de uma mulher segura e confiante. Alzheimer. Esse é o nome do ladrão que roubou minha vida. Enquanto falo, Júnior está ao meu lado e me olha com o mesmo carinho com que me olhou desde o momento que acordei. O Júnior da tela motiva a Mariana da tela a falar mais.

“E conta para nós, Nana, o que são dias de cor e o que são dias cinzas?” “Dias cinzas”, eu digo dentro do aparelho, com segurança, “são dias em que me esqueço do presente e só me lembro de coisas que aconteceram há muitos anos. Aí tudo o que passei de tristeza em minha vida dói do mesmo jeito outra vez.”

“Já os dias de cor”, o Júnior da tela sorri enquanto o Júnior de aqui e agora continua abraçado comigo- “são os dias em que você se lembra das coisas importantes e só se esquece das menos importantes. Ah, e os dias em que não me bate, não me chama de tarado ou oportunista ou mesmo me faz um pedido de casamento. Se bem que os pedidos de casamento eu acho sempre engraçados.”

A eu da tela dá uma gargalhada antes de continuar a falar, e eu do lado de cá sou obrigada a rir. Hoje mesmo quis esbofeteá-lo. Se tivesse tido forças, o teria feito com certeza. “Mas nem tudo é ruim com essa doença. Ela trouxe um anjo para minha vida e seu nome é Júnior. Ele é meu neto, mas cuida de mim como se fosse meu pai”. “De vez em quando você me chama de pai mesmo”.

Rimos, do lado de lá e do lado de cá da tela. Imagino quantas vezes Júnior já me mostrou esse vídeo e esse diário, quantas vezes já teve que consolar pela morte de André, que provavelmente dói da mesma forma todas as vezes na minha alma. 

Abraço o meu neto e me sinto agradecida. Eu não me lembro de nada do que vivi, sinto uma grande tristeza pelo que perdi, mas sei que sou amada e só isso vale a pena. Por um rapaz, que não deve ter 30 anos e escolheu cuidar de sua avó doente e maluca em vez de viver sua vida.

Ele segura as minhas mãos e me olha com muito carinho.
“Está mais calma, Nana?”
“Estou sim, Júnior. Obrigada mais uma vez”.
“E o que vamos fazer hoje? Vamos conquistar o mundo?”
Eu penso numa resposta. O que fazer quando se esqueceu do que aconteceu nos últimos 50 anos de sua vida? De repente, uma luz. Eu sei bem o que queria fazer há 50 anos. Não podia, não tinha oportunidade, mas agora, quem sabe?
“Será que conseguimos dar um passeio de moto? Eu sempre quis andar de moto. André nunca quis me carregar”.

Pela gargalhada de Júnior, eu já havia feito a mesma pergunta outras vezes. Ele se abaixa aos pés da cama e tira de lá um capacete rosa, com as palavras NANA gravadas com letras douradas.
“Vamos lá, Nana. Nossa moto está à sua espera.”
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