"Este
é o último dia de mim. O dia em que me despeço do que sou tentando
carimbar com estas palavras todas as histórias, momentos, sorrisos
que ainda cabem na memória do que fomos. Depois do meu segundo fim,
esqueçam esta carta. Esqueçam o meu novo lugar. O amanhã é ainda
uma porta que não sei muito bem o que está do outro lado.
Sei que num
primeiro momento ficarei confusa e não perceberão porquê. Talvez
nessa altura resmunguem comigo pela incompreensão do que me tornei e
na tentativa vã de me resgatarem de uma viagem sem regresso.
Sei que
depois irei esquecer-me de pequenas coisas. Não saberei mais como
apertar os cordões destes sapatos ou como segurar nos talheres de um
qualquer almoço de família. Nesse dia compreenderão que sou algo
diferente do que conheceram. Serei levada a um médico e terão a
notícia que hoje escrevo aqui – sou uma doente com Alzheimer. Leio
pela primeira vez este veredicto de não existência e é com
dificuldade que me aceito num diagnóstico que vai arrancar tudo o
que vive em mim. Serei resumida ao meu corpo, como se fosse uma
morada sem destinatário. Tenho um bilhete para um mundo que a pouco
e pouco fica mais pequeno. Um mundo carente de imagens, de cheiros,
de significados e com sentimentos dispersos em flashes da minha
história que a cada segundo ficam mais embaciados.
Sei que
mais tarde me esquecerei do nome de todos, do meu nome. Assusto-me,
quase morro quando pressinto o vosso sofrimento. Gostaria tanto de me
lembrar do que fomos um dia. Ficaria tão feliz se as vossas palavras
voltassem a ter eco em mim. Nesse dia será o meu primeiro fim. Se me
esquecer de vocês não me lembrarei como é amar e quando não
sentimos não existimos.
Sei que
chegará o dia que estas etapas serão as vossas últimas lembranças
de mim. Sei
que um dia tudo o que escrevo agora será o vazio absoluto e serei um
silêncio ensurdecedor permanente. Nesse dia as palavras, os sons, o
mundo serão para mim como quando nos falam numa língua que não
conhecemos.
Fecho muito
os olhos. Imagino um lugar onde este nada em que me tornarei é menos
penoso para quem estará aqui ao meu lado e já não verei. Um sítio
onde os retalhos de uma vida cruzados com a tela branca em que se
tornará a minha memória serão menos perigosos - estar aprisionado
num corpo que já não sabemos nosso é um risco constante. Olhamos
para o espelho e temos medo da pessoa que o reflexo nos devolve.
Caminhamos e não nos lembramos da rua onde moramos nem conhecemos o
café onde passámos tantas vezes. Tememos o que gostávamos, uma
simples festa de família torna-se numa confusão tão grande que só
queremos fugir. Vemos uma janela ou uma varanda e não sabemos como
nos proteger.
Entrar num
lugar sem memória é ter medo de tudo o que nos rodeia. É fugir de
tudo, até daqueles que amamos. Estas
novidades exigem mudanças. O lugar que falo não tem janelas ou
varandas abertas ou espelhos. Tem caminhos, labirintos sem fim para
que possa passear e não me perca. Tem uma rotina que não se quebra
com barulhos até aqui conhecidos mas que de repente são um susto
que não sei ultrapassar.
Nesse lugar
há outros filhos e netos que conversam com os meus sobre os seus
receios, sobre como é estarem com o meu corpo comigo ausente, como é
amarem alguém que já não está cá, que não sorri quando chegam e
grita sem sentido. Há médicos e psicólogos que escutam toda a dor
dos meus familiares e os ajudam a preencher este meu novo lugar e a
aceitar este meu novo Eu.
Há planos criados entre as famílias e os
técnicos que apaziguam a fúria, a minha inexpressão, as
perguntas que me perseguem e nem me apercebo. Nesse lugar há a
compreensão da minha ausência e do diagnóstico que serve como
aviso do meu segundo fim. Nesse lugar
aquilo que sou hoje fica guardado entre as fotografias, as histórias
que eternizei em bilhetes, postais.
Se um dia
encontrar esta carta não saberei que foi com esta caneta, neste
papel e com a minha mão que foi redigida. Não reconhecerei a
caligrafia que aparece em todos os documentos com o meu nome. Quando
vocês a lerem já não encontrarão o que fui num rosto cravado de
um nada que roubou a lucidez. Olhem para mim, reconheçam-me em tudo
o que ficou guardado nas gavetas do meu passado, da memória que têm
de mim quando sabia tudo sobre vocês e vos contava a nossa história.
Depois do meu segundo fim, esqueçam esta carta. Esqueçam o meu novo
lugar. Esqueçam o corpo ausente que me transportou nos últimos
anos. Lembrem-se apenas de tudo o que vivemos até ao minuto em que
escrevi a primeira palavra desta carta".
(Liliana Trigueiros)
(Liliana Trigueiros)
www.terradoesquecimento.blogspot.com.br - mesmo nessa terra do nada há oprtunidades para todos.
ResponderExcluirA essencia da vida humana reside em seu espirito imortal! Ainda que algo obstrua sua consciencia nesta vida, um dia ira a presenca de seu Criador inteiramenfte curado e entendera o proposito de todas as coisas .
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