terça-feira, 28 de junho de 2016

ALZHEIMER - A DESPEDIDA PARA O MUNDO DO NADA



"Este é o último dia de mim. O dia em que me despeço do que sou tentando carimbar com estas palavras todas as histórias, momentos, sorrisos que ainda cabem na memória do que fomos. Depois do meu segundo fim, esqueçam esta carta. Esqueçam o meu novo lugar. O amanhã é ainda uma porta que não sei muito bem o que está do outro lado.

Sei que num primeiro momento ficarei confusa e não perceberão porquê. Talvez nessa altura resmunguem comigo pela incompreensão do que me tornei e na tentativa vã de me resgatarem de uma viagem sem regresso.

Sei que depois irei esquecer-me de pequenas coisas. Não saberei mais como apertar os cordões destes sapatos ou como segurar nos talheres de um qualquer almoço de família. Nesse dia compreenderão que sou algo diferente do que conheceram. Serei levada a um médico e terão a notícia que hoje escrevo aqui – sou uma doente com Alzheimer. Leio pela primeira vez este veredicto de não existência e é com dificuldade que me aceito num diagnóstico que vai arrancar tudo o que vive em mim. Serei resumida ao meu corpo, como se fosse uma morada sem destinatário. Tenho um bilhete para um mundo que a pouco e pouco fica mais pequeno. Um mundo carente de imagens, de cheiros, de significados e com sentimentos dispersos em flashes da minha história que a cada segundo ficam mais embaciados.

Sei que mais tarde me esquecerei do nome de todos, do meu nome. Assusto-me, quase morro quando pressinto o vosso sofrimento. Gostaria tanto de me lembrar do que fomos um dia. Ficaria tão feliz se as vossas palavras voltassem a ter eco em mim. Nesse dia será o meu primeiro fim. Se me esquecer de vocês não me lembrarei como é amar e quando não sentimos não existimos.

Sei que chegará o dia que estas etapas serão as vossas últimas lembranças de mim. Sei que um dia tudo o que escrevo agora será o vazio absoluto e serei um silêncio ensurdecedor permanente. Nesse dia as palavras, os sons, o mundo serão para mim como quando nos falam numa língua que não conhecemos.
 
Fecho muito os olhos. Imagino um lugar onde este nada em que me tornarei é menos penoso para quem estará aqui ao meu lado e já não verei. Um sítio onde os retalhos de uma vida cruzados com a tela branca em que se tornará a minha memória serão menos perigosos - estar aprisionado num corpo que já não sabemos nosso é um risco constante. Olhamos para o espelho e temos medo da pessoa que o reflexo nos devolve. Caminhamos e não nos lembramos da rua onde moramos nem conhecemos o café onde passámos tantas vezes. Tememos o que gostávamos, uma simples festa de família torna-se numa confusão tão grande que só queremos fugir. Vemos uma janela ou uma varanda e não sabemos como nos proteger.

Entrar num lugar sem memória é ter medo de tudo o que nos rodeia. É fugir de tudo, até daqueles que amamos. Estas novidades exigem mudanças. O lugar que falo não tem janelas ou varandas abertas ou espelhos. Tem caminhos, labirintos sem fim para que possa passear e não me perca. Tem uma rotina que não se quebra com barulhos até aqui conhecidos mas que de repente são um susto que não sei ultrapassar.
 
Nesse lugar há outros filhos e netos que conversam com os meus sobre os seus receios, sobre como é estarem com o meu corpo comigo ausente, como é amarem alguém que já não está cá, que não sorri quando chegam e grita sem sentido. Há médicos e psicólogos que escutam toda a dor dos meus familiares e os ajudam a preencher este meu novo lugar e a aceitar este meu novo Eu. 

Há planos criados entre as famílias e os técnicos que apaziguam a fúria, a minha  inexpressão, as perguntas que me perseguem e nem me apercebo. Nesse lugar há a compreensão da minha ausência e do diagnóstico que serve como aviso do meu segundo fim. Nesse lugar aquilo que sou hoje fica guardado entre as fotografias, as histórias que eternizei em bilhetes, postais.

Se um dia encontrar esta carta não saberei que foi com esta caneta, neste papel e com a minha mão que foi redigida. Não reconhecerei a caligrafia que aparece em todos os documentos com o meu nome. Quando vocês a lerem já não encontrarão o que fui num rosto cravado de um nada que roubou a lucidez. Olhem para mim, reconheçam-me em tudo o que ficou guardado nas gavetas do meu passado, da memória que têm de mim quando sabia tudo sobre vocês e vos contava a nossa história. Depois do meu segundo fim, esqueçam esta carta. Esqueçam o meu novo lugar. Esqueçam o corpo ausente que me transportou nos últimos anos. Lembrem-se apenas de tudo o que vivemos até ao minuto em que escrevi a primeira palavra desta carta".
(Liliana Trigueiros)

2 comentários:

  1. www.terradoesquecimento.blogspot.com.br - mesmo nessa terra do nada há oprtunidades para todos.

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  2. A essencia da vida humana reside em seu espirito imortal! Ainda que algo obstrua sua consciencia nesta vida, um dia ira a presenca de seu Criador inteiramenfte curado e entendera o proposito de todas as coisas .

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