"Quis
respirar fundo e não consegui. Tinha as mãos do mundo todo a
sufocar-me, e sentia a ausência de um suporte para os meus pés.
Passou pela minha memória uma série de sinais estranhos, que eu
vinha observando nos últimos meses. Mais grave que os desequilíbrios
sucessivos, falhas de memória, desorientação espacial,
afigurava-se o meu registro, o olhar demente com que um dia, me fixou
o rosto, no meio de um sorriso sem controle.
Os
seus olhos amendoados, com a íris entre o verde-azeitona e o
castanho claro, que aconchegavam a minha existência, que me davam
segurança, quando menina, e que julgara eternos, pousaram em mim sem
nexo, sem lógica, sem profundidade, descoordenados do pensamento,
descontextualizados de tudo e de nada, despropositados, dementes,
perdidos da postura racional e coerente de toda uma vida.
O
meu cordão umbilical foi violentamente cortado nesse instante, e
sangrei … sem qualquer intimidade, sem preparativos, sem cuidados
assépticos, na presença de todos, completamente alheados, da
gravidade da situação. Um dia após outro, a perda da atividade, de
faculdades, de afetos, entrelaçava-se, com perda sucessiva do ser
humano que me gerou, progressivamente incapaz de exercer autocrítica,
de tomar decisões de se organizar minimamente, e eu incapaz de me
reorganizar, de estabelecer metas e objetivos, de renovar afetos,
fortalecer empatias …
A
autonomia, passou lentamente a dependência total. A frescura da
minha conduta converteu-se em amargura constante. Os afetos formais
foram-se desconstruindo, desmaterializando, numa dialética estranha
de viver, perseguindo teimosamente um rumo com sentido negativo de
involução.
Os
papéis, estranhamente inverteram-se; de protegida passei a
protetora, sem a mínima preparação, não conseguindo vestir bem
essa roupagem, que assistia ao esvaziar de conteúdos de uma alma,
que eu julgava e queria crer como inalterável.
As
perdas sucessivas caracterizavam-se por uma bilateralidade de
proporcionalidade inversamente descontrolada, tocando-se por vezes
num eixo de simetria que eu tinha dificuldade em sustentar,
levando-me a cometer erros de avaliação, permanentes e
insuportáveis.
A
minha sobrevivência diária a depressão, verifica-se apenas pela
impossibilidade de enveredar por esse caminho. Nem esse caminho me
restava.
Cada
dia se tornou mais cinzento que o anterior, numa paleta
monocromática, onde cada vez mais, predominava a ausência de luz,
numa existência cada vez mais vegetal e dependente. Os negros cada
vez mais negro ou vice-versa …, e a primavera não despontou
durante seis longos e marcantes anos, que se converteram em décadas
de sofrimento, de perdas irrecuperáveis, num processo impossível de
inverter, sem fim determinado, que nos invadia até aos ossos, até a
alma, até ao centro dos nossos centros.
O
olhar … esse passou a ser de um estranho, mudou de cor, de forma,
de tamanho, de textura, de tempo, de amplitude, de configuração….,
e um dia gelou-me os dedos de mão, com a rigidez marmórea do último
dia".
(Anabela
Quelhas).
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