A TRÁGICA IRONIA FINAL DE UMA EXISTÊNCIA BRILHANTE
(Comentário)
Torna-se tarefa emocionalmente árdua constatarmos o quão irônico
pode tornar-se o decurso de determinadas vidas. «Iris», filme
intensamente dramático e comovente com realização do inglês Richard
Eyre, cuja obra está muito mais ligada à televisão que propriamente ao
cinema, prova-nos isso mesmo. Prova-nos que a dimensão única da vida
obtida através de admiráveis recursos mentais pode, lamentavelmente,
desembocar num beco sem possibilidade de retorno onde impera a solidão.
Onde nada mais subsiste que a profunda escuridão daqueles para quem a
palavra existência se reflete quase unicamente num inconsciente
deambular físico. Ou, pelo menos, a medicina não conseguiu ainda
perscrutar uma outra explicação para os doentes de Alzheimer para além
daquela que nos é dada pelo senso comum: a de que onde antes tudo era
permitido, tudo era possível e nos dava um sentido da vida, nada mais
ficou que um aterrador vazio.
Aterrador para aqueles que de fora
observam, porque, para os outros, para os que sofrem da doença, fica uma
espécie de morte em vida pois sequer lhes é permitido o sofrimento
trazido pela consciência própria do seu drama. E, em último estágio, e
bem entendido, sofrem da doença, não sofrem com a doença.
O filme situa-se em duas fases distintas da vida da romancista e
filósofa inglesa (nascida em Dublin, 1919), Iris Murdoch. Assente nas
memórias escritas pelo seu marido – o professor universitário, autor e
crítico literário John Bayley – somos confrontados com uma Iris Murdoch
jovial, rebelde e brilhante vivendo uma intensa paixão pela vida, e, em
paralelismo de imagens, com a escritora e pensadora famosa – 26 obras
literárias editadas – então já a enfrentar o drama da doença de
Alzheimer, primeiramente, até à degradação que a enfermidade lhe
acarreta, culminando com a sua morte, em Fevereiro de 1999.
Deve em primeiro lugar saudar-se a extrema honestidade dos autores
do argumento para o filme (John Bayley, viúvo de Iris, e Dreyer,
realizador, incluídos) ao não deixarem de incluir no filme pormenores
sobre a vida de Iris Murdoch capazes de levarem à incompreensão alheia.
Efetivamente, e como nem sempre se verifica, não houve tentativa de
branqueamento de questões mais polêmicas como hipoteticamente poderiam
tornar-se fatos como a bissexualidade da escritora ou mesmo alguma
promiscuidade no seu comportamento sexual.
Por outro lado, e noutra
latitude de profundidade racional, o filme relança as dificuldades de
uma definição do verdadeiro sentido do amor. Ou, em derradeira análise,
remete-nos para a forte possibilidade de inexplicabilidade do mesmo.
Porque razão uma mulher que fazia da liberdade de pensamento e arrojo de
comportamento o seu lema de vida, se apaixonaria por um homem que
parecia representar todo o oposto disso mesmo? E esse homem, porque
passaria ele por tantas e tão grandes provações e, mesmo quando era ele
mesmo que no fim dela lhe valia, ainda se roía e atormentava com ciúmes
do passado? Mas, é importante que se ressalve, eram ciúmes resultantes
desse mesmo amor e não daqueles ciúmes que sabemos nascidos do simples
amor-próprio.
Uma palavra para o elenco deste filme onde o difícil é conseguirmos
manter-nos alheados do drama que se vive. Quer Kate Winslet
(personalizando Iris quando jovem), quer Judi Dench (Iris no crepúsculo
da sua vida) e mesmo Hugh Bonneville (John Bayley jovem) estão a um
elevado nível de interpretação com destaque, ainda assim, para Kate
Winslet que consegue uma das suas melhores interpretações de sempre.
Mas, que dizer de Jim Broadbent (John Bayley já idoso)? No mínimo, uma
excelente corporização que permitiu espelhar uma extremada
afectuosidade. E retratar alguém em sofrimento e vivendo uma espécie de
confusa inquietação, mas alguém que conseguia amar outra pessoa muito
mais que provavelmente alguma vez terá amado a si mesmo. E talvez
encontremos neste aspecto particular, ligado à interpretação de Jim
Broadbent da personagem de John Bayley, as fundações para que
construamos então uma definição para o verdadeiro amor. (Joaquim Lucas)
O filme Iris foi o primeiro filme que assisti, sobre Alzheimer, logo que soube do diagnóstico em minha mãe.
ResponderExcluirRecomendo.