Escrevo no momento em me que preparo. Olho para o passado e convoco as memórias paradas no tempo e a vida que muda, sem outra opção que não seja a resignação. Perpetuo lembranças quase adormecidas pela violência do presente e contemplo o silêncio do entardecer…
Na lonjura do tempo uma luz irradia ainda, enquanto se afasta em direção ao outono. Voltarei aqui para permanecer, para de novo estar presente. Será então um outro tempo.
O
regresso
Mulher
aguerrida, determinada, calejada pela vida, pela dor e pelo trabalho,
acompanhava o marido. Fazia-o por imposição sua, não se permitia
deixá-lo nas lides mais duras, mesmo que ele insistisse e que ela
reconhecesse que seria mais benéfico não o fazer. Gostava do campo
onde sempre vivera. Na sua memória estavam os terrenos herdados e os
tempos de antigamente em que a vida se fazia de sol a sol. Naquele
dia de abril de 2010, lembrara a conversa tida com Cristina.
Estranhava
alguns acontecimentos que lhe diziam ser verdadeiros e por ela
presenciados, mas que a sua memória não reconhecia: a mudança de
cor das divisões da casa, os filhos de pessoas amigas, o
reconhecimento da sua própria roupa, as romarias a festas
religiosas…
Estava
Dulce nestes pensamentos e duplamente confusa por não saber como era
possível que a memória a atraiçoasse (a ela, que na Escola
Primária, como se designava na altura, até tinha tido um diploma de
louvor) e por considerar ser normal para a sua idade, não querendo
reconhecer a dificuldade de lidar com isso. Tinha já setenta e três
anos. Portanto, como mulher definida que era, não autorizava que a
desdissessem e tinha deixado bem claro que
aqueles lapsos faziam parte da vida. Era tudo tão mais simples
assim, não era? Pois assim seria.
Imbuída
por estes pensamentos, estremeceu quando ouviu a voz de José.
Acabara a semente e teriam de voltar no dia seguinte. Não achou bem
e prontificou-se a ir buscar mais a casa, afinal o sol ainda ia alto
e no dia seguinte haveria muito mais que fazer.
Sentou-se
esbaforida. Sabia que tinha de voltar, mas algo se passava. Resolveu
chamar pela filha e pedir ajuda. Explicou que se perdera e que quase
fora atacada por cães. A sorte fora que estavam presos e não tinham
podido atacar.
O
quê?! Por cães?! Mas não há cães presos por correntes na
estrada… Bem, teria de resolver o problema mais imediato no
momento. Depois de se abastecer de sementes, foi levá-la junto ao
terreno.
Voltou
aos seus afazeres, pensativa. De novo ouviu chamar o seu nome. Nem
queria acreditar! O que se passara?! Inacreditável! Enganara-se no
caminho para chegar ao terreno onde o marido a esperava já
seriamente preocupado pela demora. Foi lá levá-la, voltou para casa
e fez algumas pesquisas. Marcou então consulta numa neurologista.
Indignação
Evidente
contraste entre a elegante roupa que veste e o seu semblante. Alguém
diria que a magoaram irremediavelmente.
No
consultório médico não contém a indignação por muito tempo.
Nunca esperou que a sua própria filha lhe fizesse uma coisa
daquelas! Levá-la a um médico da cabeça! Ela estava bem e não
entendia e não merecia tal coisa!
Queixumes
repetidos vezes sem conta, visivelmente alterada, quer na sala de
espera, quer na entrada, para onde Cristina a arrastara com o
objetivo de fugir aos olhares dos outros, alguns insidiosamente
incriminadores.
- Então,
menina Dulce, diga lá porque é que está aqui.- Convida a médica,
com voz melodiosa e ar risonho, pegando-lhe na mão e olhando para a
sua expressão facial.
A
indignação não se fez esperar. Vociferou:
-
Olhe, não sei. O meu pai e a minha mãe, que estão aqui, que lhe
digam!
O
diagnóstico foi quase imediato. No entanto, houve ainda uns testes.
Três palavras para memorizar (casa, maçã e gato), rapidamente
esquecidas, apesar da instrução dada inicialmente e repetida para
que fosse bem percebida; umas contas de somar e subtrair, em que
acertou, e questões de localização espácio-temporal em que se
perceberam sobretudo dificuldades a nível de localização temporal.
Seguiram-se
exames médicos: análises ao sangue e uma TAC. Depois medicação
para a Doença
de Alzheimer
e recomendações sobre como lidar com a doente: olhar nos olhos,
falar com calma, propiciando sempre um clima de confiança e, a parte
mais difícil, reconhecer que é uma doença progressiva e
irreversível em que a medicação apenas atenua a progressão da
doença nas fases iniciais. Atinge a memória e, progressivamente, as
outras funções mentais, acabando por determinar a completa ausência
de autonomia dos doentes.
O mundo
desabou. Bem lhe dissera Ana. Pensava agora nisso e em como a vida
era caprichosa. Em Coimbra sempre se tinham dado muito bem, dividiram
o quarto, as conversas, as alegrias, as tristezas e assim continuaram
pela vida fora. Agora, além da mesma paixão pela profissão tinham
ainda em comum a doença das mães. Também a mãe dela era
doente de Alzheimer, embora tivesse começado a terapêutica vários
anos antes e fosse oito anos mais nova. Saberia mais tarde que a
evolução seria também diferente.
Adaptação
e mudanças
Em 2010 e
2011 proteção e vigilância passaram a fazer parte
integrante do vocabulário e de cada minuto todos os dias.
Valeu essa vigilância para evitar danos maiores ao constatar, por
exemplo, o gás do fogão aberto mas sem chama ou o manípulo
de uma torneira retirado de tanto desenroscar e um jato de água
a inundar a cozinha. Passou também pelo vestuário: depois de
vestida, retirar uma camisola interior que surgiu inesperadamente por
cima da blusa ou dois pares de cuecas vestidos por cima das calças…
A confusão
mental era cada vez maior. Insistia em fazer algumas tarefas
domésticas sozinha, afinal, sempre as fizera e sempre gostara
de libertar aos outros o trabalho que podia fazer. No entanto, cada
vez se verificava mais dificuldade. Algumas dessas coisas
passariam até a ser, mais tarde, vistas como episódios anedóticos,
contados ou relembrados com um sorriso, contrariamente ao sentimento
de fúria que imperava quando se tinha
de repor a ordem das coisas. Fazem parte desses episódios
anedóticos a roupa que aparecia no guarda-roupa de algum outro
elemento da família, uma salada de alface temperada com vinho do
Porto e um molho de talheres muito bem guardados numa gaveta
da cômoda no seu quarto. Algumas vezes foi encontrada a vestir umas
calças enfiando a cabeça numa das pernas e um braço na outra e
furiosa e insistentemente procurava algo onde pudesse enfiar o braço
que faltava. Estes pequenos desvarios não eram questionados ou
referidos em sua presença, porque não valia a pena e só a iriam
deixar angustiada e triste, caso estivesse num breve momento de
lucidez.
Observando-a,
a tentar realizar uma qualquer tarefa e vendo a sua frustração
por não saber como a fazer, fazia-se imediatamente o confronto com a
Dulce de outras épocas. A mulher ágil que labutava para ter o
quintal cultivado e a casa farta, o jardim e a casa arranjados já
não existia, era apenas uma sombra do passado. Era rigorosíssima
com o preceito com que as coisas deviam ser feitas e com os horários.
Não se permitia alguma descontração se algo não fosse feito
conforme o previsto.
Imperava
frequentemente no espírito de Cristina a interrogação “Como
é possível?!”. O conflito entre o lado racional e o emocional
passou a ser também uma constante. Investigara, recolhera
muita informação em diversos meios sobre a doença, as suas
fases, a mudança de comportamentos dos doentes e a (in)eficácia da
medicação. Tudo o que sabia não ajudava muito, porque mentalmente
estabelecia a diferença entre o que já era habitual no seu
quotidiano e o que fazia parte habitual da vida das outras pessoas.
Não havia comparação possível. A clivagem foi-se agudizando aos
poucos; eram dois mundos completamente diferentes e incompatíveis. A
vida de Ana também era pautada por estas mesmas interrogações e
pelo mesmo tipo de vivências, embora a sua mãe mantivesse um grau
de autonomia bem diferente. Esquecia o sítio das coisas, mesmo das
mais comuns e de uso quotidiano, não sabia se estava na
sua própria casa ou não, embora conseguisse ainda vestir-se e
cozinhar, sob vigilância.
As rotinas
de Dulce passaram a ter de ser acompanhadas por Cristina, por
José ou por outras pessoas significativas, da família ou do seu
círculo de amizades. Estar sozinha passou a ser impensável. Havia o
risco de se perder novamente e até de não ser capaz de voltar à
residência. O apoio familiar foi muito importante, embora nem sempre
tenha sido muito bem recebido por Dulce, apesar de ser apresentado da
forma mais camuflada possível. Havia sempre que arranjar um pretexto
para que alguém estivesse presente. Questionava o porquê de estar
sempre alguém a vigiar.
- Olha lá,
tens de me manter aqui fechada à chave? Porquê?- inquiria.
- Sabes que
tem havido muitos assaltos e ficamos melhor e mais seguros se o
portão estiver fechado. Se vier alguém toca à campainha.
Era a
resposta possível. Havia que manter alguma coerência no diálogo,
tendo em conta também que o discurso ou os
questionamentos de Dulce pertenciam já a um domínio diferente da
realidade. Se insistia em ir a casa dos pais e disso não abdicava
sem exaltação, uma solução era telefonar a Laura, uma
prima, que a ouvia e respondia às suas inquietações como sendo a
sua própria mãe. Dulce dizia-lhe então que jantava ali, que só
iria para casa no dia seguinte e serenava.
Até dentro
da vila, José a acompanhava nas suas frequentes deslocações ao
Centro de Saúde. Nalgumas atividades recreativas, e sobretudo em
locais povoados por muita gente, redobrava-se a atenção. Em
setembro de 2011, em Aveiro, perdeu-se por breves minutos, o pânico
foi imediato!
E agora?
Dulce não conseguiria procurar ajuda junto de um agente da GNR e
dizer-lhe quem era! Felizmente, a família separou-se e foi
encontrada!
Exaustão
Os
episódios de fuga tornaram-se frequentes. E a confusão
espácio-temporal também. Insistia em saber dos seus pais,
questionava por que razão não a vinham ver.
- Deve
ter-lhes acontecido alguma coisa… Tenho de lá ir. Tenho mesmo de
ir. Anda comigo, se eles estiverem bem, voltamos. – dizia.
Por vezes,
curiosamente próximo da hora das refeições principais e ao
pôr-do-sol, insistia em ir ver aqueles a quem chamava a sua família
(os pais já falecidos há mais de trinta anos e a irmã há mais de
vinte), levando inclusivamente alguns objetos: roupas, calçado ou
louça. Nessas alturas achava que tinha vindo para aquela casa
de manhã, para ajudar e que teria de regressar a casa. Revoltava-se
quando não conseguia os seus intentos, argumentando que não lhe
podiam fazer aquilo, que tinha o direito de ir embora e que nunca se
vira tal coisa! Nalguns desses dias, em que a estratégia do
telefonema ou a dispersão da conversa para outros assuntos não
surtiam efeito, a agitação levava-a a ser levada para a cama apesar
da sua resistência e contestação. Gritava então a plenos pulmões
que a deixassem ir embora, que iria mesmo que fosse só com a
roupa que tinha vestida, porque queria o seu pai e a sua mãe.
A sua família era então vista como um bando
de malfeitores que importava denunciar. E fazia-o tão alto quanto
podia.
Quando
contrariada, reclamava veementemente. Fingia acatar a explicação de
que não tinha acontecido nada e estavam bem, mas à primeira
oportunidade que tivesse, saía sorrateiramente, sem avisar.
Era incrível, dada a diminuição das suas faculdades cerebrais,
o grau de premeditação destas fugas.
Para evitar
alguns conflitos, por vezes, ia sendo vigiada à distância por
Cristina. Quando disso de apercebia, reclamava:
-Não
preciso de guarda-costas! Sei muito bem o caminho! Julgam de sou
tolinha e me perco?! Não, não sou!
O
comentário e o tom de voz em que foi proferido ecoaram, com rigorosa
exatidão, durante anos na sua mente.
Setembro de
2010, dia da festa religiosa da freguesia. Religiosa e cumpridora dos
preceitos impostos pela religião, Dulce sempre fora à missa.
Nesse dia, Cristina
prontificara-se a acompanhá-la, Dulce recusou veementemente,
agredindo-a verbalmente. Acabou por a acompanhar à procissão
religiosa, mesmo sendo confrontada em público com palavras de
rejeição, que provocaram nos circundantes
olhares intrigados e insistentemente perscrutadores . Sentiu-se
horrivelmente. Queria poder explicar-lhe que corria, de facto, o
risco de se perder, que queria protegê-la. Mas como o fazer,
perante alguém a quem devia respeito e que rejeitava a sua
presença, argumentando estar em seu pleno juízo? Proteger Dulce de
si mesma era prioritário, por isso, ignorou os seus comentários,
apesar de desgastada emocionalmente.
Gradualmente,
a desordem ou até o caos passou a evidenciar-se, exigindo
constantes reajustamentos. Deixou de conseguir fazer uma
refeição completa (cozinhar implica uma série de etapas de
previsão e sequencialização), de pôr a funcionar a máquina de
lavar roupa, apesar de estar assinalado de forma bastante visível o
botão de ligar, ou de fazer a limpeza da casa.
A doença
foi exigindo à família alterações bastante significativas na sua
dinâmica quotidiana, pelo que, desgaste e frustração emocional
eram nalguns dias constantes desde manhã até à noite.
Dias houve em que Cristina
desejou que a noite chegasse para ter um pouco de paz de espírito e
tempo para si mesma. Lera algures uma frase que lhe ressoava
com frequência na mente: “Sinto-me uma enfermeira a quem não é
permitido ter folgas”. Era exatamente isso que sentia. Qualquer
atividade tinha de ser cronometrada e planeada ao segundo para que as
tarefas domésticas fossem feitas e os cuidados diários se
mantivessem. Era impensável fazer algo que surgisse espontaneamente,
que não fosse premeditado. Tempos cronometrados para a infinita
missão de cuidar de alguém dependente. Refugiava-se
nesses momentos naquele que era o seu porto de abrigo de todas
as horas. Sentia-se em segurança, protegida, compreendida,
amada. Sentia que tinha identidade própria e que a sua vida
não se fazia apenas de cuidados para com os outros, ainda que tal
pensamento pudesse parecer cruel. Entendia bem os momentos de
sofrimento e as angústias pelas quais passa o ser humano, permanecia
forte apesar das intempéries por que já passara, sorrindo para a
vida e para os outros. Sabia que a vida não
era uma meta, mas um caminho. Conseguia antecipar-se a alguns
acontecimentos, descrevendo com exatidão as dores da alma que a
atingiriam. Essa era uma ajuda preciosa, era como se vivesse
antecipadamente a realidade que se lhe depararia. Não falava muito,
porque não é a quantidade de palavras que indica a sabedoria. De
resto, o olhar e os gestos diziam o indizível e ela precisava apenas
do seu abraço e de respirar fundo para se sentir retemperada.
Num dia de
outono de 2011, José ao sair de casa não fechou o portão, prevendo
demorar-se pouco. Ao voltar e apesar do pouco tempo decorrido,
procurou-a no lugar habitual
-E agora,
onde a vou encontrar? Para onde terá ido? – questionava-se. - Deve
ter ido procurar a casa dos pais.
A casa onde
Dulce vivera toda a infância e juventude até casar ficava ao fundo
da rua, pelo que as suas deslocações a essa casa na tentativa
de procurar os pais eram rápidas. Mas não estava lá. Aterrado e
sem conseguir pensar, correu toda a vila. Perguntava a quem
encontrava se alguém a tinha visto. Rapidamente várias pessoas se
voluntariaram para a procurar. Percorreram as ruas, viram os poços
e terrenos nas proximidades da casa que pudessem ter valas onde
poderia ter caído… Depois de alguns longos, melhor dizendo
longuíssimos, minutos de procura, José . foi procurar
na direção da casa onde vivera alguns meses depois do
casamento. Encontrou-a finalmente! Conversava ela animadamente com
uma amiga que, sabendo do seu problema de saúde, a retivera um
pouco. Nada de mal lhe acontecera, felizmente!
A confusão
de papéis familiares tornou-se muito frequente. Dirigia-se a José ,
seu marido, dizendo ser seu padrinho ou pai. Cristina por sua vez,
era apelidada de mãe ou irmã. Pensando bem, ao chamar mãe à sua
filha até fazia algum sentido, porque os papéis há muito que se
tinham invertido.
As
dificuldades de linguagem aumentaram: as frases começaram a
ficar truncadas ou em aberto, dizia por exemplo: “Viste a …,
a…, a…, aquela mulher?”), o que prejudicava muito a capacidade
de comunicação e não possibilitava aos outros entenderem o que ela
pensava ou precisava.
O ser
humano é um ser em constante mudança e adaptação. Perante esta
dificuldade, Cristina
passou a observar os gestos e as expressões enquanto
ela falava. Essa comunicação não-verbal dava-lhe pistas do que ela
queria comunicar. Se é verdade que a vida é uma aprendizagem
constante, maior verdade adquire esta premissa para os cuidadores de
doentes de Alzheimer. A doença exige uma aprendizagem diária
de novas formas de relacionamento, a descoberta de outros meios de
comunicação possíveis independentes da fala ou da razão,
como sejam o olhar ou o toque.
A linguagem
passou também a ficar comprometida. As dificuldades
de compreensão, de nomeação e de associação decorrentes da falta
de memória marcavam cada vez mais frequentemente o discurso de
Dulce, um discurso desorganizado, vazio, muitas vezes
incoerente.
Vítima de
Alzheimer, Dulce experimentou talvez a mais temível de todas
as perdas: a perda de si mesma e o esquecimento do seu mundo de
afetos, e, em decorrência disso, momentos de ostracismo, de
isolamento, de solidão… Diversas vezes Cristina percebera que
algumas pessoas vizinhas ou que se diziam amigas de Dulce a
visitavam ou perguntavam pela sua saúde, no entanto, quando
não recebiam notícias animadoras ou quando dela não recebiam uma
reação clara e visível de interesse e agrado, afastavam-se num
ápice, sem terem em conta se a sua atuação não estaria a ser
cruel, quando pretendiam ser (ou parecer) misericordiosas.
Desde 2012
a dependência aumentou, bem como as suas ausências. Até aí
tinham acontecido, sim, mas momentaneamente, recuperando algum
tempo depois. Tornaram-se evidentes e arrepiantes os momentos em que
apresentava um olhar vazio, um olhar perdido e
confuso. Começou também a ter lugar incontinência urinária
e fecal. Novo redobrar de vigilância, cuidados e preocupações.
Dulce, que sempre fora muito recatada, púdica até, nunca
ousara mostrar um pouco mais do decote ou qualquer transparência na
saia, neste momento permite que a dispam e a lavem. Sem usar as
palavras reconhece que precisa dessa ajuda.
A
mobilidade diminuiu, obrigando-a a ficar longos períodos no sofá.
Não reconhece a sua própria casa, negando-a até.
Verificou-se alteração dos padrões do sono, sendo frequente ter
alucinações em que via muita gente na casa e refugiava-se em
qualquer lugar, às escuras, até que alguém a encontrasse. José
encontrou-a algumas vezes a meio da noite sentada nalgum lugar
da casa, com frio, e sem saber como voltar para a cama. Encontrou-a
também diversas vezes a vestir-se a meio da noite e a preparar-se
para sair de casa. As chaves de casa já tinham sido há algum tempo
retiradas das fechaduras e guardadas num local de difícil acesso. A
vida deixou de seguir o fluir natural oferecendo apenas em todos os
momentos um terreno árido.
Registou-se
um declínio neurológico mais rápido, sendo frequentes gestos
obsessivo-compulsivos como o de
esfregar as mãos uma na outra ou o de puxar a
ponta de um qualquer pano ou toalha que estivesse perto e rasgar
até o desfazer em tiras. Não sabia porque o fazia. Ficava até
com um olhar interrogativo por não entender a razão da pergunta
“Porque fizeste isso?”.
Cristina
tinha saudades do seu sorriso, do seu sentido de humor, do seu
altruísmo e da sua prontidão para ajudar quem pudesse. Mas sentia
saudades, sobretudo, da sua voz!
A demência
é sempre profundamente trágica, quer para os doentes, quer para a
família e amigos mais próximos. Existe, porém uma enorme diferença
entre uma tragédia na qual as pessoas estão ativamente envolvidas e
a submissão cega e sem esperança às leis do destino.
Com a
exigência crescente dos cuidados a ter, é difícil à família
não perder a noção de que o seu papel não é o de um
profissional, mas sim o de filha, marido, sobrinhos, amigos...
É importante não se deixar absolver na totalidade. Há que
reaprender a ser, reaprender a adormecer e acordar. Há dias em que
se quer dormir para que o tempo passe. Há dias em que se quer ficar
acordado com medo dos maus sonhos. Por vezes, o passado recente
torna-se longinquamente distante, como se fizesse parte
de outra vida, tal a rapidez das mudanças provocadas pela degradação
neurológica. O que se fazia até há dois ou três dias, agora já
não é possível, é preciso mais, mais, sempre mais.
Percebia-se
a olho nu a sua ausência, a ausência de si mesmo como se de um
ácido corrosivo se tratasse. A perda gradual da memória é
também o apagar da própria identidade.
Na
primavera de 2012 começou a ser necessário tornar as rotinas mais
funcionais, nomeadamente as relacionadas com o banho e
a higiene diária. José pensou então partir um lagar de vinho
e aproveitar esse espaço para uma casa de banho adaptada (com
poliban , apoios laterais nas paredes, maior espaço onde fosse
possível circular em cadeira de rodas, se necessário, etc.).
O lagar já
não tinha utilidade. Tempos houve em que se produzia
vinho (entre muitas outras coisas: batatas, couve , feijão…) em
grande quantidade, chegando-se até a contratar pessoas para a
vindima, pagando-se-lhes o dia de trabalho. Havia também
o espírito de ajuda e economia trocando mão-de-obra por
mão-de-obra. Cristina lembrava-se das vindimas como uma festa, com
cantigas, anedotas e o sumo das uvas a escorrer das mãos e a manchar
a roupa. José, como sempre gostara de fazer tudo o que pudesse pela
sua própria mão, pôs mãos à obra. Tarefa imensa, trabalho
hercúleo, moroso e quase infindável, paulatinamente
realizado.
Dulce não
chegaria a usar a casa de banho, tal a rapidez dos acontecimentos que
se seguiram.
Vertigem
As férias
de verão de 2012 de Cristina não tiveram o mar como fundo nem
os tons da serra como cenário constante, foram antes um verdadeiro
corrupio. Dividiu sempre o tempo entre a companhia de amigos que
tradicionalmente a visitavam no verão, em sua casa, e a
casa dos pais onde tinha de cuidar da higiene da mãe, das refeições,
da roupa… A pouco e pouco foi percebendo maior rigidez
muscular, maior apatia, menos interação da mãe com tudo o que a
rodeava. E assim continuou inexoravelmente.
Setembro
aproximava-se a passos largos quando pediu apoio domiciliário. Urgia
tomar medidas para que pudesse iniciar mais um ano letivo. O centro
social que escolheu foi inexcedível: atento, esclarecedor e
diligente. As funcionárias eram, além de muito profissionais,
afetivas e cuidadosas, requisitos fundamentais.
Os últimos
dias de agosto e os primeiros de setembro foram vertiginosos!
Dulce deixou de conseguir comer sozinha e até de mastigar, deixou de
conseguir andar, embora apoiada por duas pessoas…
Foi feita a
inscrição na lista de espera do lar. Nessa mesma semana
surgiu uma vaga. Nem sabia o que dizer! Dulce nunca fizera
sequer um internamento hospitalar e, de um momento para o outro teria
de lhe fazer a mala para sair da casa onde vivera quase toda a vida,
e onde não sabe se tornaria. Passou a tarde toda arranjando
pretextos para adiar essa tarefa.
No dia
seguinte, a manhã foi agitadíssima. Dulce, deitada na cama, recebeu
a visita da enfermeira, do médico e de pessoas amigas e alguns
familiares. Os amigos opinavam, uns a favor do ingresso no lar,
outros não. Resolutamente, Cristina e o pai mantiveram a
decisão tomada e a confiança na instituição que a iria acolher.
Vieram
visitá-la todos os elementos da família, como se de uma despedida
se tratasse, e era-o efetivamente. À tarde, uma tarde de sol, Dulce
entrou na cadeira de rodas na carrinha que a levaria. Cristina
acompanhou-a com Laura, a prima presente em todos os momentos,
e chorou todo o caminho.
Nos dias
que se seguiram, os lugares vazios, as roupas que permaneciam
penduradas ou a escova na casa de banho desafiavam a lucidez.
A mesa com um lugar a menos, tenebrosamente diminuta, o silêncio, a
falta da agitação dos últimos dias, das inúmeras tarefas, do
tempo cronometrado… Imperava um sentimento de vazio, no
coração sobretudo. Valia a certeza de que Dulce era bem cuidada.
Todas as
dores vividas e até as imaginadas são degraus no nosso crescimento
pessoal, no fortalecimento da nossa robustez. E cada nova dificuldade
permite olhar do cimo desse degrau e sentir, como o fazem os anciãos
com impressionante serenidade, que essa dificuldade passará e dará
lugar a uma outra.
A
presença
As
primeiras manifestações da doença de Alzheimer são sempre
desafiantes, insidiosas. Inicialmente pequenos lapsos de memória,
passando por vezes despercebidos, evoluíram até Dulce
esquecer o endereço de casa ou estranhar as fisionomias daqueles com
quem sempre viveu.
Preservar a
vida é o mais arraigado dos instintos, todavia, será sensato
mantê-la a qualquer custo? A perda irreversível da memória
configura uma dessas situações. Incapazes de lembrar quem somos e
de entender o que se passa a nossa volta, de que vale a condição
humana? Estas questões, de violência atroz, povoam a mente.
A
doença de Alzheimer provoca-nos, desafia-nos a, numa primeira
instância, a entender; depois, a viver com ela, conduzindo-nos a
descobertas várias, dos outros e de nós mesmos.
O céu
pinta-se de um tom cinzento um pouco mais escuro do que o habitual.
As folhas das árvores que rodeiam a casa libertam-se dos ramos e
viajam pelo ar numa dança sem destino. Sabe bem estar em casa, no
conforto. Lá fora, o contraste de um ambiente agreste. Enquanto o
vento assobia lá fora, Cristina lembra imagens de sua mãe no lar,
da sua pele envelhecida e enrugada, primeiramente na sala de
convívio, depois no quarto, já acamada, muitas vezes ausente de si
mesma. Recorda, em câmara lenta, a passagem da vida que Dulce
tinha até ao estado vegetativo em que
se encontra, sem poder fazer nada.
E percebe
que há elos que se mantêm e que se ela não lhe dá um abraço
é porque os seus braços não lhe obedecem. E que se não
expressa reconhecimento pela dedicação e pelo amor é porque a
ponte se partiu e ela se perdeu no caminho. http://folhasasolta.blogspot.com.br/
11 nos de convivência com o Alzheimer, em Diva, minha mãe.
ResponderExcluirSemblante caído - É assim que hoje vejo o aspecto e a aparência no rosto da minha mãe.
Fico mais próxima de seu rosto ao pegar em seu braço para conduzi-la onde quiser ir.
Fico mais próxima de seu rosto cada vez que tento entender o que ela quer dizer ou que quero falar com ela.
Seu olhar já não é mais o mesmo. É vago, longe. Já é um olhar frente a finitude.
A confusão mental é cada vez maior.
Muitas vezes fico triste e a vejo angustiada, quando quer falar alguma coisa e não encontra as palavras.
Guardo a tristeza para mim... e calmamente vou conversando com ela e, as vezes certo o que ela quer dizer.
Proteção e vigilância com minha mãe, passaram a fazer "mais" parte dos meus dias.
De manhã, quando ela se levanta e vejo seu rosto, já desejo o meu Bom Dia... ela sorri e fica feliz. Eu também.
A noite, ao se deitar, sempre estou com ela... eu que a cubro. AH! Detalhe, ela não esquece de rezar. Faz o sinal da cruz e não diz mais nada. Então, não sei qual é a oração que ela faz. Não faz mal. Algumas vezes até conduzo a oração... digo o nome de algumas pessoas, de algum agradecimento, etc.
Vejo que minha mãe já não tem o sentido do envelhecer.
Mãe, continuo te dando o meu abraço e te dizendo: Eu te amo.
Célia
SP/maio/2016