sexta-feira, 4 de abril de 2014

DE CORPO PRESENTE





Porto Alegre, bairro Passo D’Areia, Rua Itapeva, n° 51. Neste local encontramos uma casa amarela, de dois pisos, com o jardim bem cuidado e uma pequena grade dividindo o terreno da calçada. Esta não é uma residência comum e a placa no jardim anuncia: Novo Lar, Centro Geriátrico de Assistência e Repouso. É neste endereço onde Edna Selma Mc Mannis Torres, 79 anos, mora desde setembro de 2008.

Ela divide o espaço com outros 20 pacientes, muitos deles acometidos da mesma doença de Edna, o Alzheimer. Enquanto alguns idosos assistem à TV e outra senhora repete, insistentemente, a mesma frase- “vem paizinho, vem”-, Edna caminha no andar de cima acompanhada de seu filho mais velho, Eduardo Torres, de 57 anos. Ela não o reconheceu.

Com seus cabelos grisalhos, vestindo uma calça azul marinho e uma blusa de tom mais claro, Edna caminha pelo corredor apoiada no braço do filho. Seu corpo demonstra fragilidade, a magreza é resultado do avanço da doença. Seus passos são lentos, vacilantes.

Antes do Alzheimer caminhar era uma das atividades favoritas de Dona Edna. A esposa de Eduardo, Iael, conta que a sogra tinha uma rotina bastante ativa. Ela gostava de manter a casa em ordem e de fazer ajustes em roupas com seus apetrechos de costura. Mas a vida de Edna aos poucos foi sendo modificada. A diferença sutil entre esquecimentos e lapsos da idade, fez com que a família não percebeu que as falhas da memória tinham nome científico. Aos poucos esses esquecimentos se tornaram mais aparentes e as caminhadas, mais difíceis.

O filho Fernando, com quem Edna morava na época, fez um crachá com a identificação e endereço de sua residência para ela usar quando saía para caminhar. Sua esposa, Brigitte, diz que certa vez a sogra caminhou de sua casa, no bairro Três Figueiras até o Strip Center, próximo ao Terminal Triângulo na Avenida Assis Brasil, em Porto Alegre, um percurso de quase cinco quilômetros. Graças a identificação, a família foi avisada.

Entretanto, antes da ideia do crachá, outro percalço aconteceu em uma das caminhadas de Dona Edna, quando esta pegou um táxi para voltar à sua casa e não soube dar o endereço ao motorista. Por sorte, o condutor do veículo era do ponto que Eduardo costumava utilizar. Ele se lembrou de Edna e de seu endereço e a levou em segurança para casa.

Eduardo conta ainda que sua mãe podia ficar lendo um jornal durante uma hora e, logo após, não lembrar o que tinha acabado de ler. Em outra situação, Edna foi 15 vezes à mesma loja para escolher o presente de aniversário de Iael, uma compoteira. Ela não lembrava que já tinha estado lá antes. Na própria clínica, minutos depois de fazer seu lanche, Eduardo pergunta se ela já comeu. Edna responde com firmeza: “Não, não comi”. O Alzheimer dificulta o armazenamento de novas informações segundo a neurologista Liana Lisboa Fernandez.

Quando tudo isso começou nem os familiares sabem. A cronologia dos fatos é incerta. Eduardo lembra, porém, que sua mãe sofreu um acidente em meados de 2002, onde, após uma queda, bateu a cabeça. Nessa ocasião ela ficou internada no Hospital Moinhos de Vento, quando os sinais do Alzheimer ficaram mais evidentes. “Ela olhava para a janela e enxergava paisagens dos EUA ou então, achava que estávamos em Passo Fundo, onde morou na juventude”, relata Eduardo.

Edna já não sabia mais onde estava. Daquele instante em diante, a doença foi tomando conta, gradativamente. Ela foi se despedindo de seus afazeres, de sua personalidade, de sua família e de sua vida.

Os familiares se viram obrigados a restringir determinadas atividades. Após esquecer o gás do fogão ligado algumas vezes, cozinhar ficou proibido. As caminhadas sozinhas também. Edna não aceitou muito bem os fatos. Nos momentos de crise, gritava na janela que estava presa e que sua família não a deixava sair. “A polícia chegou a bater na nossa porta para saber o que estava acontecendo”, relata Brigitte.

A nora, que conviveu muitos anos com a sogra, diz que sempre teve uma ótima relação com Edna, mas que, após a doença, passou por momentos difíceis. A casa em que viviam era de dois andares, e Edna insistia em permanecer no segundo piso, o que além de dificultar os cuidados da família, era perigoso para ela. Durante a noite, Edna levantava, mudava os móveis de lugar e acendia todas as luzes. Quando Iael e Brigitte tentavam lhe dar o remédio, Edna xingava e, muitas vezes, tentava agredi-las. Chegara o limite da família. Eles já haviam pesquisado algumas clínicas e resolveram que, naquele momento, era o melhor a se fazer.

Universo particular

Para ela, agora, só resta o que Eduardo chama de “seu mundinho”: um universo particular onde as pessoas que a amam acompanham de fora, sem entender ou serem convidadas para participar. Apesar da fragilidade aparente, quando sentada, Edna mantém uma postura altiva, com a cabeça erguida, uma das mãos pousada no braço da poltrona e a outra deslizando no queixo, como quem reflete sobre a vida. Talvez até esteja refletindo. Só não é possível descobrir com certeza.

Sua fala não é compreensível. Mistura os três idomas que falava com fluência antes da doença: inglês, alemão e o português. Brigitte instiga a sogra falando em alemão: “Frida, was will´st du?” (O que tu queres?). Edna não responde, permanece em silêncio, com o olhar perdido. Eduardo repete a pergunta, num tom mais alto. Edna parece compreender, repete a pergunta e depois responde: “ja, ja” (sim, sim). Logo ela emenda mais algumas expressões desconexas em alemão “alles gut hier” (tudo bem aqui) e alles rot (tudo vermelho). Em seguida volta a falar em português “deixa, deixa…tem que limpar, passar um paninho nela por fora”. Palavras que para os outros provavelmente não fazem sentido algum, mas que, para ela, representam algum fragmento do passado.

O presente não existe, o que quer que ela faça, ou diga, Edna não lembrará no instante seguinte. Tudo que ela tem é o seu passado e alguns raros momentos de lucidez. A Edna como a família a conhecia, já não existe mais. Eduardo acredita já ter se despedido de sua mãe. Iael diz que sentiu muito ao ver a sogra com Alzheimer, pois ela estava há pouco tempo na família e acabou nem tendo a chance de conhecer a Edna na sua essência. Foi com tristeza que a nora acompanhou o avanço da doença e a despedida de Dona Edna de sua personalidade.

Na medida do possível, eles procuram fazer visitas na clínica, ou então, em alguns domingos comemorativos, levam Dona Edna para almoçar com a família. Dos três filhos e noras, oito netos e uma bisneta, nem todos conseguem se fazer presentes. As coisas já não são como antes.

Edna espera pelo desfecho inevitável. Enquanto isso, os familiares convivem com o pouco que resta da pessoa que amam. Seja nos gestos, ao aceitar um carinho e retribuí-lo, seja nas lembranças do passado, ela ainda está lá. Os familiares se despedem de Dona Edna, que é levada pela técnica de enfermagem para a sala de TV, junto com os outros pacientes. Antes de Eduardo descer as escadas, a técnica questiona Edna: “quem é ele?”. Depois de alguns momentos pensativa, ela responde: “Eduardo”. Naquele instante ela o reconheceu. Mas para quem tem Alzheimer como Dona Edna, cada dia é um novo dia, e cada momento como este, é uma conquista. Um reencontro com a lucidez.
http://kellerbarbara.wordpress.com/

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