Fala-se
muito sobre o drama enfrentado por pacientes com doenças típicas da
velhice. A mais emblemática e terrível delas, o Alzheimer, destrói
a capacidade de pensar, de se comunicar e de compreender a realidade.
O doente se torna dependente, distante do mundo e de si mesmo. Não
bastasse, há outro lado cruel da doença ainda pouco discutido. É
vivido pelo parente – em geral, filha ou esposa – designado para
cuidar do pai, da mãe ou do cônjuge doente.
Trata-se de uma
situação dificílima, não só pelas razões práticas como pelas
emocionais. Essas pessoas, em um ato de estoica devoção, costumam
abdicar de parte de sua vida, de seus sonhos e projetos para cuidar
de um paciente que só tende a piorar. Estudos mostram que a maioria
delas costuma sofrer da chamada “síndrome do cuidador”. Os
sintomas mais comuns são depressão e stress em alto grau. Nos casos
mais extremos, a ideia de suicídio se torna uma constante.
“Enquanto os pacientes, muitas vezes, nem se dão conta de sua
doença, os ‘cuidadores’ se sentem cansados e deprimidos na maior
parte do tempo. São batalhadores invisíveis de uma tarefa árdua e
muito pesada”, afirma o geriatra Norton Sayeg, ex-presidente da
Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia.
Estudos
apontam que, até 2050, o número de idosos deve triplicar em todo o
mundo, chegando a 2 bilhões de pessoas. Ainda que não sofram de um
mal degenerativo, o processo natural de envelhecimento – confusões
de memória, alterações sutis de comportamento e dificuldades
motoras e de expressão – vai limitar sua existência. No caso do
Alzheimer, o cenário é alarmante. Com o aumento da expectativa de
vida e a perspectiva distante de cura, os casos tendem a proliferar.
Uma pesquisa da Federação Internacional de Alzheimer prevê que
dentro de trinta anos cerca de 80 milhões de pessoas no mundo
sofrerão desse mal – número três vezes maior do que o registrado
hoje. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea), 27% dos idosos brasileiros precisam de ajuda diária. Entre
os que passaram dos 80 anos, cerca de 90.000 mulheres e 184.000
homens são incapazes de andar ou subir poucos degraus de uma escada.
A conseqüência disso é que cada vez mais famílias terão de lidar
com a difícil tarefa de assumir seus doentes. E, sobretudo, de
escolher quem irá fazê-lo.
A
falta de orientação adequada, segundo os especialistas, é o maior
problema para quem cuida de um doente. Lidar com ataques de
agressividade, mudanças de personalidade e o apagar total da memória
é uma situação assustadora sobre a qual se fala muito pouco. “A
pessoa que cuida não tem ideia do que fazer. Não sabe se corrige o
doente que diz absurdos, o que faz diante da negativa expressa de
tomar banho ou da chocante cena de ver seu pai se comportar como um
bebê”, afirma a jornalista paranaense Marleth Silva, ela própria
às voltas com cuidados com sua mãe, que tem Alzheimer, e autora do
livro Quem
Vai Cuidar dos Nossos Pais? (Editora
Record), lançado nesta semana. Nele, Marleth relata a experiência
de pessoas que dedicaram parte da vida a cuidar de um familiar
doente. O maior mérito do livro é funcionar como uma espécie de
guia, orientando sobre como agir diante das dificuldades impostas à
família pela situação do idoso, mas também lembrando que a pessoa
que cuida precisa continuar a viver.
A
maioria dos médicos afirma ser usual entre os responsáveis pelos
doentes abandonar a própria rotina. O indivíduo passa a viver como
enfermeiro, babá, empregado e se esquece das próprias necessidades.
A complexidade de sentimentos vividos nesse período é grave. Ao
mesmo tempo em que a pessoa se sente satisfeita por tratar o doente
com carinho, a culpa por querer ver-se livre ou dar fim àquela
situação é recorrente. Também é comum se sentir negligente com
filhos, marido, mulher, que também precisam de sua atenção.
Somam-se a isso o fato de ter de enfrentar críticas dos parentes e o
peso de executar sozinho tarefas complicadas como dar banho,
alimentar, vestir e lidar com a incapacidade do outro de controlar
até mesmo as necessidades fisiológicas mais básicas. Sem falar na
dolorosa experiência de acompanhar de perto a decadência física do
ente querido.
A
questão dos conflitos com irmãos é uma das mais desgastantes, seja
por discordâncias sobre a maneira de tratar o doente, seja pela
divisão das despesas. Quem fica com o ônus da vigília reclama que
os outros não cooperam, não reconhecem seus esforços e o criticam
na maior parte do tempo. E os que estão de fora em geral argumentam
que o outro faz papel de vítima, adora propalar o próprio drama e
costuma recusar ajuda. “É um jogo em que ninguém está certo ou
errado. A prioridade é negociar todos os passos do tratamento entre
os irmãos. Todos têm igual responsabilidade”, afirma o geriatra
Norton Sayeg.
Estudos mostram que a tarefa normalmente cai no colo
das mulheres. Uma pesquisa da Universidade de Cleveland revelou que o
perfil de quem cuida é a filha, que mora na mesma cidade dos pais, é
solteira ou tem um emprego em que não ganha muito. Filhos homens são
raríssimos. Como a maioria das famílias não tem como pagar
ajudante ou uma casa de repouso de qualidade – que pode custar até
7.000 reais por mês –, quando a situação chega ao limite deve-se
repensá-la. Ou reorganizando as tarefas com os demais parentes ou
mesmo se afastando por um período para recuperar as energias.
É
consenso entre os especialistas que quem toma conta de um doente
precisa de sólido suporte emocional. Um alto índice de stress pode
refletir de maneira negativa no doente. Agressões físicas são
comuns. No Brasil, em 70% dos casos registrados em delegacias e
serviços de saúde, a agressão contra o idoso partiu de um
familiar. Em geral, um filho homem. É por isso que grupos de ajuda
terapêutica são recomendáveis aos parentes. Nos últimos anos,
dezenas desses grupos se espalharam pelo país. Em geral, são
ligados a hospitais públicos e universidades. É lá que os
familiares podem expressar dúvidas, medos e frustrações. Os
encontros fazem tremenda diferença na maneira como eles lidam com
pressões e adversidades. “Não é aceitável se isolar.
É preciso
estar bem para dar o melhor de si ao outro. Não abandonar os amigos,
tentar se divertir e, sobretudo, dormir. Como? Peça ajuda. A maioria
não o faz por medo de parecer ter fracassado na tarefa de cuidar do
doente”, diz o geriatra Carlos Fratini, coordenador de um programa
de apoio a parentes de doentes de Alzheimer, do Hospital Regional do
Gama, em Brasília.
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