quarta-feira, 9 de abril de 2014

A DOENÇA DE QUE ME LEMBRO POR MEDO DE ESQUECER



De todos os meus medos, o maior é o esquecimento. Temo olhar para alguém que amo e não me lembrar do seu nome, pegar uma fotografia e não me recordar do estava vivendo naquele instante, ler uma dedicatória em um livro e não entender suas entrelinhas. Temo o destino que alguns de meus familiares estão trilhando. É o mesmo destino trilhado por muitos idosos de um tempo em que a Medicina já consegue multiplicar o número de centenários, mas ainda não é capaz de lhes oferecer tratamentos para curar as doenças ocasionadas pela idade, como o Mal de Alzheimer, a doença do esquecimento. Também é a doença que, ao que parece, está no código genético de minha família, apagando nosso passado e sendo legada de geração em geração.

Frequentemente, pego-me diante do espelho, olhando meu rosto e temendo um dia não entender o significado de cada expressão que carrego. É como se eu me colocasse na iminência de perder tudo aquilo que passo os dias tentando descobrir: quem sou eu. Em vão. O Mal do esquecimento parece não ser “evitável”. Embora sua causa ainda não tenha sido totalmente explicada, fortes são as evidências genéticas. Não há explicações definitivas sobre a doença, tampouco remédio para curá-la. Há medicamentos que retardam a perda de memória. Diminuem a velocidade com que cada história, cada pessoa, cada lugar será tirado do paciente.

Enquanto isso, cerca de 900 mil pessoas, apenas no Brasil, já foram identificadas com Alzheimer pelo Ministério da Saúde. Nesses, minha familiar, que passa os dias olhando para o nada, sem se lembrar de qualquer coisa. Para ela, é como se nada existisse, se nada tivesse existido, se não houvesse futuro. Lembro-me de que, certo dia, olhando pessoas a rodeando e ela não respondendo a nada conscientemente, concluí que a vida não é só o momento que se vive, é também a lembrança que carregamos dele. A vida é o tremor do primeiro beijo e o arrepio de sua recordação; é enfrentar uma rua de terra pela primeira vez em uma bicicleta sem rodinhas e ter a habilidade para não cair mais depois dali; é a dor de perder alguém que amamos e a saudade que levaremos dela. É um agora, somado ao que carregamos dele. Um acumulado de histórias e de suas emoções. É ação e representação.

Salvador Dali

Perder a memória é ir se desfazendo da própria história. Do arrepio do primeiro beijo, da habilidade de andar de bicicleta sem rodinhas, da dor de se despedir de alguém. É ir deixando de ser sensível ao mundo, ao passado, a si mesmo. É abdicar de qualquer recordação do que está pela frente. É ir se apagando de si mesmo, diante de todos. 

É, inconscientemente, ir desconstruindo todo o mundo ao seu redor até chegar a um momento em que não há fronteiras entre o passado, o presente e o futuro, entre a realidade e o sonho, entre o mundo e a alucinação.

No fim, despido de qualquer recordação, tudo é uma lousa em branco, um mundo sem sentido, diante do qual, sem razão, emite-se um grito ou uma risada ou se mantém em silêncio. E a pessoa ao lado diz, sem se importar: é loucura.
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