Quero abrir os olhos mas eles parecem grudados,
como se eu tivesse dormido por muitas e muitas horas seguidas.Na
verdade, não me lembro quando fui para a cama, nem de ter ido
dormir. Não percebo a presença de André ao meu lado, já deve ser
tarde. Meu corpo pesa e só com muita dificuldade consigo abrir os
olhos. E tomo o susto da minha vida. Esse não é o meu quarto! Sinto
minha espinha gelar e quero gritar, mas minha voz também parece
assustada demais para sair. Decido observar tudo devagar e me sinto
meio drogada. Qualquer movimento custa muito esforço e dói. Será
que fui sequestrada? Será que sofri um acidente e estou no hospital?
Quero levantar, mas as pernas parecem mesmo feitas de chumbo. E por
que não consigo nem enxergar direito?
“Você já acordou? Está muito frio aqui para
você?” A voz que conversa comigo é carinhosa, mas isso não evita
que me assuste e tenha medo. Quem é esse rapaz, e o que faz aqui no
meu quarto? Puxo o lençol espontaneamente para me cobrir, não me
lembro o que vesti antes de dormir.
Aliás, não consigo me lembrar de muita coisa: o
que aconteceu e como vim parar aqui? Não tenho a menor ideia. O
rapaz, ao me ver puxar o lençol, entende que estou com frio, vem até
a minha cama e inclina-se sobre mim. Num impulso, quero esbofeteá-lo
para me defender, mas meu movimento é tão devagar que não o
surpreende, e ele segura meu braço no ar.
“Não comece de novo com isso, Nana. Sem
violência, vamos ter um dia bom, não é? Quer tomar o seu café da
manhã agora?” Tenho então certeza de que fui sequestrada e
drogada. Não me lembro de nada e me sinto muito mal e sem forças.
Me sinto tão confusa que não consigo articular
nenhuma frase. E porque ele me chamou de Nana? Será que me
confundiram com alguém e me sequestraram? Afinal de contas, não
existiria nenhum motivo aparente para um sequestro. Não somos uma
família de posses, André não tem inimigos e seu trabalho na
Companhia é uma atividade sem riscos e entediante.
Junto todas as minhas forças e tento me
comunicar. Até minha voz soa estranha e muito nervosa quando emito
os primeiros sons, mas tomo coragem e continuo: “O que está acontecendo aqui? O que você fez
comigo?” O rapaz me olha com um sorriso debochado. Sinto vontade de
apertar o pescoço dele.
“Como assim, Nana? Você acordou e eu te
perguntei se você já quer seu café da manhã, só isso. Nada
demais. Não se preocupe. Está tudo bem.” Ele sorri e apesar do meu medo, meu coração se
aquece ao vê-lo sorrindo. Não sei quem ele é, mas sei que o amo.
Meu Deus! O que está acontecendo comigo? Sinto minhas bochechas
queimarem e tenho vergonha dos meus pensamentos.
Como posso amar outro homem, se sou casada com
André e temos uma vida de casados boa, feliz e tranquila? Embora,
pensando bem, no turbilhão dos sentimentos que despertam dentro de
mim, sei que o que sinto por esse homem é diferente. É uma espécie
de…. Gratidão? Mas como, se minha suspeita é a de ele me
sequestrou?
“Onde está André? Quero falar com ele.” O
sorriso no rosto do rapaz desaparece. Tenho medo dessa reação.
Tenho medo de sua resposta, mas preciso ouvir. Um sexto sentido
arrepia minha pele, as lágrimas vêm e não as impeço. O rapaz me
olha agora com piedade e senta-se à beira de minha cama:
“Nana, eu sofro tanto todas as vezes que você
chora por ele. Acho que você nunca vai esquecê-lo!”
Se antes tinha dúvida, agora tenho certeza que
algo aconteceu com André. Minhas lágrimas viram soluços e o rapaz
me abraça. Eu quero repelir seu abraço no começo, mas depois ele é
bem-vindo. Sei que confio nesse rapaz e não sei por quê. Quero
abraçá-lo também e somente então percebo o estado do meu corpo
fragilizado: meus braços estão só pele e osso. Minha espinha gela
outra vez.
Eu o empurro e entre lágrimas, imploro uma explicação. “Pelo amor de Deus, me explique o que está
acontecendo. Eu fui sequestrada? Há quanto tempo estou aqui? E o que
de fato aconteceu com André? Eu preciso falar com alguém, com meus
pais! Eles devem estar preocupados comigo! Por favor, se você tem
algum carinho por alguém na sua vida, me deixe falar com alguém de
minha família!” Meu choro é intenso.
“Você primeiramente precisa se acalmar. Vou
buscar um copo de água. Ele se levanta e sai do quarto, com uma
calma que destoa do meu estado de espírito. Será que ele não
entende a gravidade da situação? O rapaz volta com um copo de água
e seu sorriso estampa sua alma para quem quiser ver. Eu confio nele.
Tenho certeza disso. Mas isso não muda a tempestade dos meus
pensamentos. Tomo a água e ele afaga meus cabelos. Em outras
circunstâncias eu recusaria esse carinho, mas não luto mais. Aceito
o que ele tem para me oferecer. No momento é tudo o que eu tenho. As
lágrimas, que tinham feito uma pausa, voltam a descer, mas um pouco
mais contidas. Eu tomo coragem e pergunto:
“Me diga com sinceridade…”
Ele me interrompe:
“Primeiro você tem que me dizer o meu nome. Senão não
respondo nada com sinceridade.”
Ele não está bravo. Pelo contrário, sua voz vem aveludada de
carinho. Isso me encoraja:
“Como eu vou saber seu nome? Nunca te vi antes na minha vida!”
“Puxa, Nana, assim você me magoa. Quer dizer
que tudo que aconteceu entre nós não significou nada para você?”
Seu sorriso chega meio debochado e eu não sei o que pensar. Sim,
alguma coisa me diz que já nos vimos antes. De repente, não sei o
motivo, mas um nome me vem à mente.
“Ricardo.”
Ele abre mais um sorriso encantador e por um segundo, esqueço que
estou com medo e confusa, e sorrio junto com ele.
“Muito bem!
Agora sim, temos uma base para começar nossa conversa.”
“E por que você me chama de Nana? Ninguém me chama assim! Meu
nome é Mariana!”
“Eu sempre chamei você de Nana. Já faço isso há muitos anos
e não vou mudar isso agora.”
“Mas como assim, há muitos anos? Por favor, me
ajude! Eu sei que posso confiar em você, me explique o que está
acontecendo!”
Eu queria ter gritado com ele, mas minha voz sai
como um fiozinho de som…. Eu devo realmente estar muito doente.
Não domino praticamente nada do meu corpo, que
parece ter deixado de obedecer aos comandos de minha mente, fazendo
com que minhas reações sejam lentas, pesadas, enfraquecidas. Sinto
minha cabeça explodir e Ricardo se levanta mais uma vez, entretanto
não diz nenhuma palavra. Ele me deixa a sós e fecho os olhos. Se eu
dormir novamente, pode ser que acorde em uma outra realidade. Posso
estar no meio de um pesadelo!
“Pronto, trouxe seu café da manhã, do jeito
que você gosta.” Ricardo senta-se de novo à beira da cama e traz
uma bandeja com café com leite e pão com manteiga, além de uma
vasilha pequena com salada de frutas e iogurte. “Você está com
dor de cabeça, não é? Ontem dormiu sem jantar. Deve estar com
fome.”
Ontem… Não me lembro de ontem. No máximo me
lembro de antes de ontem, quando André e eu fomos visitar nossos
amigos Laura e Daniel em seu novo apartamento na Cidade Alta, e
voltamos tarde para casa, eu descalça pelas ruas de Vitória, nós
dois rindo alto e perturbando os bons moradores de nosso bairro, que
queriam dormir seu sono justo de uma terça-feira qualquer. Não me
lembro de um dia de ontem, quando fui dormir sem jantar.
Não discuto com ele. Realmente estou morrendo de
fome. Ele me ajuda a sentar e colocar a bandeja sobre meu colo. Em
seguida, me estende um par de óculos, que assento sem discutir
imediatamente e o que já me faz sentir melhor, apesar de nunca ter
usado óculos. Olho com mais atenção à minha volta e reparo em seu
rosto. Ricardo é lindo!
Tomo um gole do café mas continuo fascinada com
seu rosto. Seus olhos me lembram alguém…. Algo em sua fisionomia é
tão familiar, mas, ao mesmo tempo, tão estranha!
“Você quer me perguntar alguma coisa?” Ele afaga novamente
meus cabelos e me sinto bem. Tomo coragem para enfrentar a verdade.
“Há quanto tempo estou aqui?”.
Ele parece pensar demais para uma pergunta tão
simples. Sua resposta vem em forma de outra pergunta.
“Você sabe onde você está?”
“Não”, respondo com sinceridade.
“Você está em casa, Nana. Aqui, você já mora há dez anos.”
Dez anos! Ele só pode estar brincando. Dez anos!
Ele diz isso como se falasse em dez minutos. Se tivesse dito dez dias
eu poderia até acreditar, pois acho que dormir realmente por muito
tempo. Mas… dez anos? Eu não posso e nem quero acreditar, mas
preciso continuar perguntando.
“E quem é você? Por que está cuidando de mim? E que diabos
aconteceu?”
“Meu nome é Ricardo, mas disso você se lembra.
Mas vejo que está na hora de você ler seu diário. Termine o seu
café da manhã que eu já o trago. Me dê cinco minutos.”
Como sabe do meu diário eu não sei, mas quando
ele fala disso, meu coração se acalma. Ele sai novamente do quarto
e continuo a comer, ansiosa para rever meu diário, que escrevo desde
os 13 anos. Não escrevo todos os dias, mas os acontecimentos mais
importantes de minha vida estão lá.
Sinto de repente muita falta de André. Meu peito
dói de saudade. Preciso sentir sua mão em meu rosto, preciso de seu
abraço. Quem sabe ele está em algum lugar assim, como esse onde
estou? Se eu puder encontrá-lo, podemos juntos descobrir o que nos
aconteceu. As lágrimas voltam e não consigo terminar de comer.
Ricardo volta com o diário em suas mãos. E quando me vê chorando,
tira a bandeja de minha frente e me abraça novamente: “Nana, Nana! Hoje teremos mais um dia cinza, não
é mesmo? Olha, fique calma! Já você vai se sentir melhor.” Ele
me dá um beijo na testa, me entrega o diário, um envelope com
lenços de papel e sai do quarto.
Respiro fundo. Tomo coragem e olho resoluta para
meu diário, finalmente algo familiar, embora pareça mais pesado que
o normal. Vou abrindo pelas estações de minha vida: lá estão as
fotos do meu baile de aniversário de 15 anos. As férias com meus
pais em Cabo frio. Aos 18, as primeiras fotos com André, ao lado da
moto – onde nunca me carregou, apesar de todos os meus milhões de
pedidos.
Sempre quis andar de moto, André tinha medo de
que me machucasse, e nunca, nem durante nosso namoro, nosso noivado e
mesmo depois do casamento, permitiu que eu subisse na garupa de sua
motocicleta. Tomo um susto ao ver que o diário não para por
aí. Estranhamente, depois do casamento, em 1960, ele continuava bem
mais longo do que o normal. Afinal, sou casada há dois anos com
André e estamos no ano de 1962…. Ou será que não?
“18 de setembro de 1963. Hoje descobri que estou
grávida. André chorou de alegria com a notícia e disse que quer
que eu engorde pelo menos 30 quilos. Eu disse que só se ele também
for engordar. Ele levou a sério. Comprou dois litros de sorvete e
comemos tudo no almoço. Vomitei uns três litros logo depois. Desse
jeito, acho que vou emagrecer em vez de engordar na gravidez”.
Grávida? Num impulso, afago minha barriga. Como
assim? E como não me lembro? Não quero continuar a ler, quero
devorar rapidamente as informações que encontro e prefiro me
concentrar nas datas das postagens e as fotos que vou encontrando.
Sou assaltada por relatos e imagens de coisas que nunca vivi. Mas nas
fotos, aquela sou eu: eu com um bebê no colo em 1964. Depois, André
me abraçando e segurando uma menina no colo em 1968, enquanto eu
afago outro bebê no colo. 1972, nós quatro em férias numa praia na Bahia. 1979, a menina
com traje de gala e embaixo da foto a legenda “Gabriela. Nossa
debutante”.
Estou muito confusa. Ainda há muitas páginas
depois daquela. Se as fotos não estiverem mentindo, a vida passou
sem que eu tivesse vivido nenhum daqueles momentos retratados ali.
Faço uma pausa para respirar. Sou mãe. Há muitos anos. E não me
lembro dos meus filhos. Por alguma razão acredito em todos esses
absurdos e sinto … saudade dos meus filhos? Ricardo! Agora sim, eu
sei de onde reconheço suas feições! Ricardo é meu filho!
“Ricardo!” – eu junto todas as forças que tenho para
chamá-lo.
“O que foi, Nana?” – ele vem correndo, mas
parece se acalmar ao ver que está tudo bem. Ele se aproxima: “Ah,
o diário, Em que parte você está? Quer que eu veja junto com
você?”.
“Você é meu filho?” – eu pergunto sem rodeios, e ele ri.
“Não, Nana. O nome de seu filho também é Ricardo, mas eu sou
bem mais bonito que ele. E tenho mais cabelos.”
A verdade vem como uma bomba, difícil de acreditar, mas, de
repente, eu sei. Ricardo é meu neto.
E de súbito me lembro de Ricardo Júnior,
pequeno, em cima da goiabeira, com seus sete, oito anos de idade. “Nana, olha, eu sei voar!”, ele diz, enquanto
eu tento correr, mas chego tarde demais. O menino despenca lá de
cima, na queda bate o rosto numa pedra, o sangue jorra de sua testa.
“Ai minha perna!”, ele grita, enquanto eu grito para dentro de
casa: “André, rápido, Júnior caiu! Vamos para o
hospital, corre!” Na pressa, olho para os pés de Júnior – é
assim que o chamamos: Júnior, e não Ricardo! – e vejo que suas
unhas estão grandes demais. Tenho raiva da esposa de Ricardo – até
me lembro de seu nome, é Cretina. Não, na verdade, o nome é
Cristina, mas eu sempre a chamava de Cretina quando falava com André
sobre ela. Tenho raiva da Cretina, porque ela não cortou suas unhas
do pé de seu único filho. “A Cretina não cortou suas unhas, e você
quebrou a perna”, eu falo como se Júnior pudesse saber para onde
meus pensamentos haviam me levado. Saber ele não sabia, mas sua
risada já mostrava que sabia de quem eu estava falando.
“Puxa, Nana, você sempre foi cruel com a minha mãe. Tadinha,
ela gostava tanto de você!” Gostava. Não gosta mais. Eu me lembro. Cristina
morreu num acidente de carro. Ela foi enterrada com um vestido
azul-claro. Eu comprei Lírios para ela. Chorei de arrependimento por
muitos dias, por ter feito de sua vida um inferno, por ter tido tanto
ciúme.
“Ela morreu, não é?”. Eu pergunto mas já
sei a resposta. Onde estavam todas essas lembranças, meu Deus.
Queria tomar um Martíni. Mas eu acho que já era uma mulher com mais
de 60 anos. Pelo jeito com mais de 70. Acho que meu neto não iria me
dar um Martíni. Não deixo ele responder sobre a morte de sua mãe,
eu preciso muito de um gole, agora.
“Você me dá um Martíni?”.
Júnior olha no relógio e ri mais uma vez.
“Nana, de uns tempos para cá você está
virando cachaceira. Vive me pedindo Martini, Vodka, Gin Tônica…
Além do mais, eu já te dei sua dose de hoje, não lembra?” Não, eu não lembrava, mas pela primeira vez,
tenho certeza de que ele está mentindo. Sei que não bebi nenhuma
gota de álcool hoje, e pelo jeito, tem muitos anos que não bebo
nada.
Folheio o diário mais um pouco. Eu sei o que
estou procurando. Preciso saber o que aconteceu com André. Sei que
vou achar ali a resposta, e já começo a chorar. Júnior acaricia de
novo meus cabelos, e abre na página que sabe que procuro: “Eu não consigo mais te dar essa notícia. Você
parte meu coração todas as vezes com o seu sofrimento”. Lanço os
olhos sobre o papel e encontro a certeza da minha suposição: “4
de maio de 1990. Hoje perdi minha alma gêmea. Não sei como vou
poder viver sem você, André, meu amor. Não quero continuar a viver
num mundo onde não veja seu sorriso todos os dias. Por favor, Deus,
me leve junto com o meu amor”.
Eu caio num choro tão desesperador, que começo a
perder o ar. De repente eu sei. É aquela dor, tão forte que parece
que vai rasgar cada centímetro de meu corpo. André se foi, e
poderia jurar que isso acabou de acontecer. Como vou viver sem ele?
Não consigo dormir sem que ele já esteja na cama. Não sei viver
sem suas piadas, sem seu carinho, sem sua implicância com meu
cabelo. “Não vou conseguir viver sem ele! Meu Deus,
como isso dói!” .
Eu vou me desfazendo em choro e Júnior segura
minha mão. Seus olhos estão úmidos. Ele não fala mais nada, e sou
eu quem deveria consolá-lo, mas estou muito destruída para isso.
Ele me ampara: “Nana, isso foi há quase 20 anos. Você vai
conseguir, como conseguiu todos esses anos. Estou com você.”
Fecho
o diário. Não sei se quero saber de mais nada. Antes de ontem,
quando dormi, minha vida estava segura. Hoje, acordei 50 anos mais
velha. De tudo o que vivi, só trago as dores do que perdi. Não
entendo o que aconteceu. Estou confusa. E muito triste.
“Por que eu não me lembro, Júnior? É tudo o
que eu quero saber.” Por algum motivo, eu fui julgada e condenada,
mas não sei por quê. Que tipo de pecado eu cometi, para que fosse
castigada dessa forma – perdendo a consciência de minha vida
inteira? Perdendo todos os que amo… E meus pais, meus irmãos, meus
amigos…. o que aconteceu com eles durante esse tempo?
Júnior segura minha mão. Tira do bolso um
pequeno aparelho e me entrega, apesar de meu olhar confuso e depois
de apertar algumas teclas. E numa tela, eu apareço ao seu lado, ali, naquele
quarto. Meu rosto eu reconheço, por trás de rugas e sulcos advindos
de experiências das quais não me recordo, emoldurado por cabelos
brancos, ao invés dos cachos negros de que André tanto gostava. Mas
essa sou eu. Os olhos são meus e o sorriso – como eu posso estar
sorrindo? – é todo meu.
Eu, na tela, começo a falar:
“Hoje estou aqui do lado do meu neto Júnior
para falar para mim mesma que tudo vai acabar bem. Às vezes eu
acordo muito confusa, não me lembro de nada, as vezes não me lembro
de ninguém. Mas isso é porque há alguns anos sofro de uma doença
chamada Alzheimer. Ela me faz esquecer às vezes de coisas muito
importante, como as pessoas que amo e o que vivi em vida”.
A minha imagem naquela tela é a de uma mulher
segura e confiante. Alzheimer. Esse é o nome do ladrão que roubou
minha vida. Enquanto falo, Júnior está ao meu lado e me olha com o
mesmo carinho com que me olhou desde o momento que acordei. O Júnior
da tela motiva a Mariana da tela a falar mais.
“E conta para nós, Nana, o que são dias de cor e o que são
dias cinzas?” “Dias cinzas”, eu digo dentro do aparelho, com
segurança, “são dias em que me esqueço do presente e só me
lembro de coisas que aconteceram há muitos anos. Aí tudo o que
passei de tristeza em minha vida dói do mesmo jeito outra vez.”
“Já os dias de cor”, o Júnior da tela sorri
enquanto o Júnior de aqui e agora continua abraçado comigo- “são
os dias em que você se lembra das coisas importantes e só se
esquece das menos importantes. Ah, e os dias em que não me bate, não
me chama de tarado ou oportunista ou mesmo me faz um pedido de
casamento. Se bem que os pedidos de casamento eu acho sempre
engraçados.”
A eu da tela dá uma gargalhada antes de continuar
a falar, e eu do lado de cá sou obrigada a rir. Hoje mesmo quis
esbofeteá-lo. Se tivesse tido forças, o teria feito com certeza. “Mas nem tudo é ruim com essa doença. Ela
trouxe um anjo para minha vida e seu nome é Júnior. Ele é meu
neto, mas cuida de mim como se fosse meu pai”. “De vez em quando você me chama de pai mesmo”.
Rimos, do lado de lá e do lado de cá da tela.
Imagino quantas vezes Júnior já me mostrou esse vídeo e esse
diário, quantas vezes já teve que consolar pela morte de André,
que provavelmente dói da mesma forma todas as vezes na minha alma.
Abraço o meu neto e me sinto agradecida. Eu não me lembro de nada
do que vivi, sinto uma grande tristeza pelo que perdi, mas sei que
sou amada e só isso vale a pena. Por um rapaz, que não deve ter 30
anos e escolheu cuidar de sua avó doente e maluca em vez de viver
sua vida.
Ele segura as minhas mãos e me olha com muito carinho.
“Está mais calma, Nana?”
“Estou sim, Júnior. Obrigada mais uma vez”.
“E o que vamos fazer hoje? Vamos conquistar o mundo?”
Eu penso numa resposta. O que fazer quando se
esqueceu do que aconteceu nos últimos 50 anos de sua vida? De
repente, uma luz. Eu sei bem o que queria fazer há 50 anos. Não
podia, não tinha oportunidade, mas agora, quem sabe?
“Será que conseguimos dar um passeio de moto? Eu sempre quis
andar de moto. André nunca quis me carregar”.
Pela gargalhada de Júnior, eu já havia feito a mesma pergunta
outras vezes. Ele se abaixa aos pés da cama e tira de lá um
capacete rosa, com as palavras NANA gravadas com letras douradas.
“Vamos lá, Nana. Nossa moto está à sua espera.”
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