Sentados
à lareira, alimentam a chama com pequenos lenhos, enquanto ateiam o
silêncio. Pelas paredes brancas escorre a humidade e o tempo. Em
cima da cómoda as fotografias dos casamentos dos dois filhos vão
amarelecendo. Ela cose uma velha camisola. Ele contempla a chama,
alheado e vazio. Há muito que o diálogo se perdeu, dissolvido na
cinza da doença, mas permanece bem aceso o amor que sempre os uniu.
Já
a meio dos setenta, apanhou-o a doença de Alzheimer. Fez-se anunciar
por pequenos esquecimentos que pareciam quase sem importância,
considerados no início como meras distrações. Afinal, ele
lembrava-se tão bem das coisas antigas: cada fato da infância e da
juventude parecia ter ficado bordada laboriosamente no tecido da sua
memória.
No
ano passado, ainda ele se recordava muito bem do baile, na
Vidigueira, onde a conhecera. Tinha sido amor à primeira vista,
embora depois contrariado pelas duas famílias. Ele era pobre, ela
remediada, mas os pais destinavam-lhe um bom casamento com um
latifundiário abastado de Beja.
A
situação acabou por se resolver através da fuga e de um casamento
em segredo, que cortou o convívio com ambas as famílias durante
quase uma dezena de anos, sendo reatado apenas após o nascimento do
primeiro filho. Foram-se habituando a viver um para o outro.
Os
anos foram passando. Mais de uma vez, as dificuldades lhes bateram à
porta: as doenças, a pobreza, os azares... mas de mãos dadas
enfrentavam o mundo e a vida, sempre com o sorriso da esperança a
pairar-lhes no íntimo. No fundo, haveria sempre uma solução para
tudo, desde que estivessem juntos.
Contudo,
agora, ela começara a sentir-se mais só do que nunca. Começara a
temer o dia em que o seu companheiro partiria de corpo e alma e a
abandonaria para sempre. Rezava para que tal não sucedesse, para que
fosse ela a primeira a desaparecer... Não obstante, sabia que essa
oração transportava em si vestígios de egoísmo. Que seria dele se
fosse ela a primeira a falecer? Um dos filhos vivia em Lisboa, o
outro emigrara para o Canadá. Nenhum deles teria disponibilidade
para receber em casa o pai senil e demente. Provavelmente, ficaria
esquecido num qualquer lar de terceira idade até que o fantasma da
morte o resgatasse num golpe de misericórdia.
-
Mãe, a que horas jantamos? E o Toino, quando chega do trabalho? –
perguntava ele, com frequência. Recuara a um mundo onde a infância,
as recordações e os raciocínios sem sentido se mesclavam. Há dois
meses que insistia em chamar-lhe “mãe” e em perguntar pelo irmão
mais novo, falecido havia mais de dez anos.
-
Ela respondia-lhe
pacientemente. No início, ficou desesperada, queria mostrar-lhe que
era a esposa dele, que a mãe já morrera havia muitos anos. Depois
desistiu. Apercebeu-se que o seu mundo era outro e seria melhor
integrar-se nele, visto que ele jamais voltaria a tocar a realidade,
a não ser por breves instantes em que a lucidez espreitava quase por
milagre, para logo se dissipar. Era aquela a sua mais recente prova
de amor. Segui-lo pelos meandros da inconsciência turbulenta. Era
isso o que restava ainda do homem que sempre amara, que fora o centro
da sua existência.
-
Mãe, amanhã vais para a ceifa? Vou ficar sozinho? – insistia,
amarrotando o cobertor que lhe cobria as pernas.
- Não, meu filho, meu amor,
vou ficar sempre aqui contigo, para te fazer companhia. Nunca mais vou
para a ceifa... – respondia em tom maternal – E se quiseres damos
um passeio até à horta.
- O que é o almoço hoje?
- Querido, acabaste mesmo
agora de jantar...
- E o Tejo, já comeu?
Sobrou comida para ele?
O Tejo era o cão que lhe
pertencera durante a juventude. Morrera envenenado, semanas depois de
terem casado. Muitos outros haviam partilhado depois o espaço
doméstico com eles, aquecendo-lhes os dias com a sua fidelidade e a
alegria das brincadeiras. No entanto, só aquele lhe ficara esculpido
na memória.
- Mãe, achas que o avô vai morrer? Ele parece pior...
- Não, querido, ela já está quase bom. – e assim lhe vai
alimentando as ilusões, pintando-lhe um mundo agradável, com as
cores da fantasia, adequado ao seu ser anoitecido. Só deste
modo, o sofrimento não o tocará no seu reino de imagens e
vidas perdidas. Afinal ela é tudo para ele: a mãe, a esposa, a
razão, a consciência.
Ao anoitecer das duas
vidas, é essa a sua generosa dádiva: amá-lo, independentemente do
mundo onde ele se encontre, pois não é o tempo, nem a idade,
nem a doença que dizem a verdade sobre as almas, mas sim o amor.
(Dora Nunes Gago - Novembro de 2015, Assesta (Associação de Escritores do Alentejo))