domingo, 7 de agosto de 2016

UMA HISTÓRIA DE AMOR



Sentados à lareira, alimentam a chama com pequenos lenhos, enquanto ateiam o silêncio. Pelas paredes brancas escorre a humidade e o tempo. Em cima da cómoda as fotografias dos casamentos dos dois filhos vão amarelecendo. Ela cose uma velha camisola. Ele contempla a chama, alheado e vazio. Há muito que o diálogo se perdeu, dissolvido na cinza da doença, mas permanece bem aceso o amor que sempre os uniu.

Já a meio dos setenta, apanhou-o a doença de Alzheimer. Fez-se anunciar por pequenos esquecimentos que pareciam quase sem importância, considerados no início como meras distrações. Afinal, ele lembrava-se tão bem das coisas antigas: cada fato da infância e da juventude parecia ter ficado bordada laboriosamente no tecido da sua memória.

No ano passado, ainda ele se recordava muito bem do baile, na Vidigueira, onde a conhecera. Tinha sido amor à primeira vista, embora depois contrariado pelas duas famílias. Ele era pobre, ela remediada, mas os pais destinavam-lhe um bom casamento com um latifundiário abastado de Beja.

A situação acabou por se resolver através da fuga e de um casamento em segredo, que cortou o convívio com ambas as famílias durante quase uma dezena de anos, sendo reatado apenas após o nascimento do primeiro filho. Foram-se habituando a viver um para o outro.

Os anos foram passando. Mais de uma vez, as dificuldades lhes bateram à porta: as doenças, a pobreza, os azares... mas de mãos dadas enfrentavam o mundo e a vida, sempre com o sorriso da esperança a pairar-lhes no íntimo. No fundo, haveria sempre uma solução para tudo, desde que estivessem juntos.

Contudo, agora, ela começara a sentir-se mais só do que nunca. Começara a temer o dia em que o seu companheiro partiria de corpo e alma e a abandonaria para sempre. Rezava para que tal não sucedesse, para que fosse ela a primeira a desaparecer... Não obstante, sabia que essa oração transportava em si vestígios de egoísmo. Que seria dele se fosse ela a primeira a falecer? Um dos filhos vivia em Lisboa, o outro emigrara para o Canadá. Nenhum deles teria disponibilidade para receber em casa o pai senil e demente. Provavelmente, ficaria esquecido num qualquer lar de terceira idade até que o fantasma da morte o resgatasse num golpe de misericórdia.

- Mãe, a que horas jantamos? E o Toino, quando chega do trabalho? – perguntava ele, com frequência. Recuara a um mundo onde a infância, as recordações e os raciocínios sem sentido se mesclavam. Há dois meses que insistia em chamar-lhe “mãe” e em perguntar pelo irmão mais novo, falecido havia mais de dez anos.

- Ela respondia-lhe pacientemente. No início, ficou desesperada, queria mostrar-lhe que era a esposa dele, que a mãe já morrera havia muitos anos. Depois desistiu. Apercebeu-se que o seu mundo era outro e seria melhor integrar-se nele, visto que ele jamais voltaria a tocar a realidade, a não ser por breves instantes em que a lucidez espreitava quase por milagre, para logo se dissipar. Era aquela a sua mais recente prova de amor. Segui-lo pelos meandros da inconsciência turbulenta. Era isso o que restava ainda do homem que sempre amara, que fora o centro da sua existência.

- Mãe, amanhã vais para a ceifa? Vou ficar sozinho? – insistia, amarrotando o cobertor que lhe cobria as pernas.
- Não, meu filho, meu amor, vou ficar sempre aqui contigo, para te fazer companhia. Nunca mais vou para a ceifa... – respondia em tom maternal – E se quiseres damos um passeio até à horta.
- O que é o almoço hoje?
- Querido, acabaste mesmo agora de jantar...
- E o Tejo, já comeu? Sobrou comida para ele?

O Tejo era o cão que lhe pertencera durante a juventude. Morrera envenenado, semanas depois de terem casado. Muitos outros haviam partilhado depois o espaço doméstico com eles, aquecendo-lhes os dias com a sua fidelidade e a alegria das brincadeiras. No entanto, só aquele lhe ficara esculpido na memória.

- Mãe, achas que o avô vai morrer? Ele parece pior...
- Não, querido, ela já está quase bom. – e assim lhe vai alimentando as ilusões, pintando-lhe um mundo agradável, com as cores da fantasia,  adequado ao seu ser anoitecido. Só deste modo, o sofrimento não o tocará  no seu reino de imagens e vidas perdidas. Afinal ela é tudo para ele: a mãe, a esposa, a razão, a consciência.

Ao anoitecer das duas vidas, é essa a sua generosa dádiva: amá-lo, independentemente do mundo onde ele se encontre, pois  não é o tempo, nem a idade, nem a doença que dizem a verdade sobre as almas, mas sim o amor.
(Dora Nunes Gago - Novembro de 2015, Assesta (Associação de Escritores do Alentejo))

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