Minha mãe está com Alzheimer. Ela, que se separou de meu
pai há muito anos, foi pega, de novo, pelo alemão. Não é exatamente
igual ao filme “Para sempre Alice”. Não há um desespero
permanente de que se está perdendo as faculdades mentais, porque também o
diagnóstico é esquecido. Imagino que existam muitos percursos de
apagamento. E suponho que tais trajetos mantenham alguma relação com a
vida que se levou até então.
Hughling Jackson foi o neurologista que
mostrou como nas doenças degenerativas do cérebro perdemos as funções
mentais na ordem inversa àquela pela qual as adquirimos. Se andamos
primeiro e falamos depois, primeiro virá a perda da fala, depois a da
motilidade. Este princípio pode ser reconduzido até a embriogênese. O
que por último se forma é o que primeiro se perde. Minha mãe consegue
reconstruir detalhes de uma conversa ocorrida há 40 anos, mas não lembra
onde está a chave do armário. Não sei se o princípio de Jackson
funciona para nossas conquistas desejantes também.
Na
clínica, acompanhei muitas vezes esse doloroso processo de inversão
gradual, no interior da qual vamos cuidando mais e mais de nossos pais,
até que em irônica troca, eles se tornam equivalentes de nossos filhos.
De um lado a negação dos filhos que querem manter seus pais no lugar em
que eles sempre estiveram, e com isso, continuarem a serem filhos. Do
outro a luta pela autonomia e independência, que vejo em minha mãe, para
manter-se como sujeito. O ato de guardar as contas de banco ou o
dinheiro na bolsa torna-se um símbolo da soberania ameaçada. A irritação
e a agressividade, a depressão e o isolamento parecem os últimos
bastiões do desejo de ficar.
No caso do
Alzheimer esta luta se dá aos solavancos. Depende do dia, depende da
hora, parece tudo normal. No segundo seguinte a mesma pergunta se repete
sete ou oito vezes. Como se a pessoa vivesse uma espécie de bolha
temporal que, uma vez descontinuada, a posiciona diante de um novo
reinício. Isso pode dar margem a uma sequência repetida de boas novas ou
a uma interminável tortura em torno de lembranças penosas.
As pontes
que se abrem entre os abismos temporais de existência são garantidas
pelos sentimentos. Na ausência das últimas palavras e na perda do
penúltimo contexto, o sentimento desencadeia uma espécie de continuidade
do humor. Ela lê nossas faces, e responde ao nosso cenho, mesmo que não
se lembre dos motivos ou razões. Ela nos perde de uma vez e nós a
perdemos aos poucos. Ela nos recupera como se nada tivesse acontecido.
Nós pressentimos a dor de sua partida, mais uma vez, também na sua
presença.
Tudo seria um pouco menos inquieto
para todos se pudéssemos compartilhar a forma como ela sofre. Se ela
pudesse contar a incrível história que está vivendo. Mas tudo que ela
consegue é dizer que a cabeça não é mais a mesma e anda “meio
esquecida”. Lembro-me de meus pacientes que com o “mundo caindo” às
vezes só conseguem dizer que se sentem um pouco “desconfortáveis” na
vida.
Esse sofrimento mudo, sem memória, deslocado de suas palavras, sem
consciência de seu progresso ou evolução, é a última história da qual
fomos privados. Por outro lado, não sei se gostaria mesmo de ouvi-la
reclamando, a plenos pulmões, da trapaça que a vida lhe impôs.
(Christian Ingo Lenz Dunker)
Este artigo foi publicado originalmente na edição de janeiro de Mente e Cérebro, disponível na Loja Segmento: http://bit.ly/1UVmo8j
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