terça-feira, 31 de janeiro de 2017

MINHA MÃE, O ALZHEIMER E A NOSSA TRAVESSIA


O real não está na chegada: ele se dispõe para a
gente é no meio da travessia”. (Guimarães Rosa).

Nosso percurso completa quase oito anos.
No ano de 2005, tivemos o diagnóstico definitivo. Nesse mesmo ano algumas mudanças significativas começaram a acontecer na minha vida, decorrentes da necessidade da minha presença na estrutura de apoio elaborada para os cuidados prestados à minha mãe. Viagens para a cidade onde ela residia, objetivos pessoais e profissionais alterados, com vazios efetivados pela escolha realizada. E, com isso, uma nova agenda foi inaugurada na minha vida e rotina dos meus entes mais próximos. No caso, os meus familiares, que aprenderam a conviver com concessões e adiamentos de planos, num processo no qual o tempo nem sempre nos permitia discutir as decisões, tomadas rapidamente.

Ganhos e perdas instalados, sinalizando para ações nem sempre permeadas de consentimento voluntário, mas sempre a acompanhar as premências de um quadro surpreendentemente voraz, encaminhando para a busca de soluções possíveis. Digo voraz, porque, quando imaginava ter o controle de alguns comportamentos, outros surgiam a impulsionar a nossa capacidade criativa para, entre tentativas, certeiras ou não, prosseguirmos na luta nossa de cada dia.

Nesse tempo de relação próxima com o que diz respeito à doença de Alzheimer, registro algumas impressões da trajetória até então vivenciada. Muitos rostos, semblantes, imagens, emoções, sensações e sentimentos compõem e integram esse álbum de recordações, no qual minha mãe ocupa o lugar de destaque.

Dentro desse contexto, a pessoa do cuidador desponta como personagem relevante, pois muito do tempo dedicado ao portador, acontece ao seu lado. Anas, Marias, Luisas, Ninas, Cidas, Franciscas, Martas e tantas outras se encaixam nessa função de cuidador, que podemos considerar como nova na sociedade brasileira, sendo notória a presença predominantemente feminina.

Nesse âmbito, sabemos que há muito para ser realizado, cursos a serem promovidos em continuidade aos que já têm sido desenvolvidos, com foco na questão do autoconhecimento e aquisição de outros saberes especializados. Importante demonstrar sobre a necessidade de um perfil específico para o exercício deste trabalho, já que persiste uma ideia ingênua de que, para ser cuidador, basta gostar do idoso. Esse requisito é bem-vindo, desde que complementado por outros que se encaixam nas exigências de capacitação para tal função.

Também vivenciamos a experiência de novos arranjos familiares e domésticos e, com eles, aprendemos e apreendemos situações com reações bastante diversas. Gente convivendo com gente que traz, nas suas histórias, bagagens diferentes, impregnadas de valores e significados, pondo-nos à prova, cotidianamente.

Nesse fluxo, sinalizo que, quando discutimos sobre a doença de Alzheimer, e suas implicações, o adjetivo cruel encaixa-se com adequação. No seu enfrentamento surgem as limitações dos envolvidos, direta e indiretamente, às exigências e especificidades da patologia. As fragilidades ficam expostas, visões simplistas e instantâneas são elaboradas para minimizar impotências individuais e coletivas. Um exemplo disso consiste na afirmação de que o portador nada sente e que, por isso, não existem motivos para modificar uma rotina estabelecida.

Na contrapartida, sempre se destaca uma pessoa que se responsabiliza pela estrutura, com envolvimento e comprometimento, assumindo o seu comando. Pessoa esta que, se revestida de vontade e propósito, obterá aprendizado e instantes de criação no ciclo inaugurado. Em paralelo, aparecem as frustrações, desencantos e outros sentimentos previsíveis no processo. Inclusive, com períodos em que sair de cena significa autoproteção, fortalecimento, respeito e renovação de energias para dar seguimento ao ato de cuidar e de se cuidar.

No passar dos meses, efetuamos várias adaptações, buscando obter posturas adequadas a elas. A dependência se intensificou, objetos desconhecidos foram introduzidos na rotina diária, como no caso da cadeira de rodas, a cama hospitalar, o colchão casca de ovo, os canudinhos para a ingestão de líquidos em geral, a colher, todos como elementos auxiliares na qualidade de vida da minha mãe. Nela, o fator segurança tem primazia sempre! E a manutenção de uma rotina voltada para sua saúde e conforto tem sido o foco principal.

Nessa direção, a oralidade tem sido estimulada nas suas diversas manifestações: conversas curtas, com dicção clara e simples, frases pequenas, continuamente sedimentadas nos seus aspectos positivos. O passado da minha mãe tem sido revisitado todos os dias, pois o repertório de lembranças diminui. Com ele, buscamos o que ainda se encontra preservado, que pode ser encontrado nas evocações da sua infância e de todos os seus protagonistas.

O velho aparelho de som permanece e perpassa todas as mudanças efetuadas até então. Ouvir canções do seu tempo tem se revelado uma atividade constantemente prazerosa E, ao som de canções como Índia, Maringá, Luar do Sertão, e outras, assistimos a alegria manifestada na sua expressão e participação. Em dias ensolarados, passeamos, contemplamos os monumentos do entorno, o céu, as árvores e, nelas, acompanhamos os ciclos das estações do ano. Os ipês, orquídeas, rosas, cravos e outras espécies de flores têm sido admirados, frequentemente, nos passeios que realizamos.

O aniversário da minha mãe se aproxima e me emociono muito quando abordo sobre este evento para ela, que, com o vocabulário e som possíveis, escolhe o bolo de chocolate com cobertura entre as opções que lhe ofereço para celebrarmos a data.

Pondero que na trajetória construída até o momento, o tripé possibilidade, aprendizado e crescimento tem se mantido vigoroso e vivo na relação com minha mãe querida.

Hoje, o que possuo como resposta materna reside na vitalidade e força do seu olhar que me acompanha, nos dias em que a voz não consegue ser pronunciado, o sorriso sereno esboçado na minha chegada e partida, o aceno de mão, e as bênçãos possíveis. Também, o calor do abraço no qual só os meus braços se mobilizam. Mais ainda, o nosso amor terno e eterno, entrecortado pelo silêncio que traduz as nossas vozes de tempos atuais, idos e vindouros!
(Vera Helena Zaitune)

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

SEXALESCENTES OU… SEXYGENÁRIOS?



Se estivermos atentos, podemos notar que está a aparecer uma nova classe social: a das pessoas que andam à volta dos sessenta anos de idade. 

Os sexalescentes: é a geração que rejeita a palavra “sexagenário”, porque simplesmente não está nos seus planos deixar-se envelhecer.

Trata-se de uma verdadeira novidade demográfica – parecida com a que, em meados do século 20, se deu com a consciência da idade da adolescência, que deu identidade a uma massa de jovens oprimidos em corpos desenvolvidos, que até então não sabiam onde meter-se nem como vestir-se.

Este novo grupo humano que hoje ronda os sessenta teve uma vida razoavelmente satisfatória. São homens e mulheres independentes que trabalham há muitos anos e que conseguiram mudar o significado tétrico que tantos autores deram durante décadas ao conceito de trabalho. Que procuraram e encontraram há muito a atividade de que mais gostavam e que com ela ganharam a vida.

Talvez seja por isso que se sentem realizados… Alguns nem sonham em aposentar-se. E os que já o fizeram gozam plenamente cada dia sem medo do ócio ou da solidão, crescem por dentro quer num, quer na outra. Desfrutam a situação, porque depois de anos de trabalho, criação dos filhos, preocupações, fracassos e sucessos, sabem bem olhar para o mar sem pensar em mais nada, ou seguir o vôo de um pássaro da janela de um 5.º andar…

Neste universo de pessoas saudáveis, curiosas e ativas, a mulher tem um papel destacado. Traz décadas de experiência de fazer a sua vontade, quando as suas mães só podiam obedecer, e de ocupar lugares na sociedade que as suas mães nem tinham sonhado ocupar.

Por exemplo, não são pessoas que estejam paradas no tempo: a geração dos “sessenta”, homens e mulheres, lida com o computador como se o tivesse feito toda a vida. Escrevem aos filhos que estão longe (e vêem-se), e até se esquecem do velho telefone para contatar os amigos – mandam e-mails com as suas notícias, ideias e vivências.

De uma maneira geral estão satisfeitos com o seu estado civil e quando não estão, não se conformam e procuram muda-lo.Raramente se desfazem em prantos sentimentais.

Ao contrário dos jovens, os sexalescentes conhecem e pesam todos os riscos. Ninguém se põe a chorar quando perde: apenas reflete, toma nota, e parte para outra…

Os maiores partilham a devoção pela juventude e as suas formas superlativas, quase insolentes de beleza; mas não se sentem em retirada.Competem de outra forma, cultivam o seu próprio estilo…

Os homens não invejam a aparência das jovens estrelas do esporte.Nem as mulheres sonham em ter as formas perfeitas de um modelo.Em vez disso, conhecem a importância de um olhar cúmplice, de uma frase inteligente ou de um sorriso iluminado pela experiência.

Hoje, as pessoas na década dos sessenta, como tem sido seu costume ao longo da sua vida, estão a estrear uma idade que não tem nome.

Antes seriam velhos e agora já não o são. Hoje estão de boa saúde, física e mental, recordam a juventude mas sem nostalgias tolas, porque a juventude ela própria também está cheia de nostalgias e de problemas.

Celebram o sol em cada manhã e sorriem para si próprios…Talvez por alguma secreta razão que só sabem e saberão os que chegam aos 60 no século 21…”  (Por Tita Teixeira)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

QUEM É O PRIMO ALZHE?

 Resultado de imagem para quem é o primo alzhe

Com a maturidade, a chegada dos quarenta e tantos anos, uma dolorosa realidade se nos apresenta: a perda de memória. Aquela rapidez de lembranças que outrora se fazia presente dá lugar ao esquecimento de coisas básicas. Vivemos nos perguntando: “Onde estão os óculos, qual é o nome da mulher do amigo de infância, quando é  a consulta médica?”.

Não é difícil vermos amigos conversando uma linguagem que se entende só quando se está envolvido: “É a…mulher do…que mora na…lá na…”. Parece conversa de loucos, mas todos entendem quem é quem na história. É algo mágico de um pensamento truncado que faz sentido naquele cenário dos encontros.

Não é difícil aparecerem brincadeiras em torno do famoso primo Alzhe, numa referência à doença de Alzheimer que tanto assombra. Gargalhadas abertas entre os amigos cinquentões; certa complacência entre os pares, uma profunda compreensão da perda da memória recente. Estamos todos juntos neste barco da vida, pensam os amigos.

As gargalhadas diminuem, o susto aparece, a negação se faz presente, e a constatação vem pesada quando o primo Alzhe não é mais uma brincadeira – ele se transformou em Alzheimer, a doença.

Ela é sorrateira. Vem devagar e mansa se instalando e destruindo o cérebro. O primeiro ataque, no hipocampo, onde as memórias são arquivadas, seguido por outros: perda da articulação de palavras; associação de palavra/significado, pessoa/nome, emoções/sentimentos; nas fases mais avançadas, o comprometimento da coordenação motora. Por fim, a regulação da respiração e do coração que leva à morte.

Um cérebro vivo e capaz se transforma numa massa sem viço, sem cognição. Em vida, o cérebro é transformado num órgão praticamente morto. Conviver com o princípio da doença é angustiante para a pessoa. Ela sabe que está perdendo a memória: o acesso às suas lembranças já se transformou em transtorno. A vergonha estampa-se nos olhos dos filhos quando o pai ou a mãe não reconhece uma pessoa próxima, ou quando pergunta pela milionésima vez a mesma questão. É massacrante.

Que doença é essa? Por que ela não só leva embora a memória recente das pessoas como também toda sua memória? Um amigo querido contou-me a dor que sentiu ao ver o desespero nos olhos da mãe quando foi anunciado que ele estava na casa para visitá-la. Ela procurou o filho criança pela casa, amparada por aquele “senhor” que ela nunca havia visto. “Cadê meu filho, moço?”. Foi a pergunta angustiada de uma mãe que se fechou em silêncio. Por que essa doença leva embora meu pai, minha mãe, meu grande amigo? Por que ela não leva embora apenas a memória recente?

“Cadê meu pai? Cadê minha mãe? Cadê meu marido?” Onde eles estão, para onde vão e como vão? Uma viagem angustiante, triste, escura tanto para o doente como para a família. A doença é violenta, ingrata e severa.

Existem casos de psicoses que são desenvolvidos não apenas pela herança genética como também pelo padrão, muitas vezes paradoxal, da dinâmica familiar. O não reconhecimento no olhar da mãe pelo filho é destrutivo. É o olhar vazado, sem reflexo que o faz não existir.

E na fase madura, quando filho vive essa situação? Ele vê no olhar da mãe o vazio do não reconhecimento. É opaco, sem reflexo. Apesar de ter mais instrumentos emocionais e racionais para lidar com o vazio e sem a ressonância do olhar apaixonado da mãe, não é menos desesperador. É um tormento. Naquele olhar de outrora, não me reconheço mais e nem reconheço o outro. Fisicamente é meu ente querido, todavia cadê a alma, cadê o amor, cadê minha mãe, meu pai ou meu querido? Foram embora? Foram roubados? Simplesmente se foram…

Atualmente já não me interesso tanto pelo olhar vergonhoso dos familiares; interesso-me pela angústia de não ser mais visto. Se eu pudesse ver os familiares de minha primeira paciente com Alzheimer, talvez pudesse ajudá-los, tratando não só da vergonha que sentiam da idosa demente como também do fato de não existirem mais para ela. A vergonha de não serem mais nada além de cuidadores que davam condições para ela viver.

Ela não os via e nem os conhecia.  E eles, familiares, também não reconheciam aquela idosa que havia ido embora há anos de suas vidas. Era um corpo que precisava ser tratado com a maior dignidade possível, mas a alma, já havia ido para outro lugar.

Ainda não consegui fechar um pensamento sobre a simbologia do Mal de Alzheimer, o porquê de ele vir roubar a alma do nosso querido. O que ele quer dizer psiquicamente? Por que essa violência com as relações familiares?

Até recentemente, o único que roubava almas era o Diabo, em troca de favores. O Alzheimer não. Ele não dá nada em troca, chega manso,  estabelece-se confortavelmente sem fazer barulho. Quando os familiares percebem sua presença, parte do cérebro já foi destruída. E a alma do idoso foi levada embora.
Quem é o primo Alzhe? Se alguém souber, por favor, me avise.
(http://sbpa.org.br/portal/quem-e-o-primo-alzhe/)