Com a maturidade, a chegada dos quarenta e tantos anos, uma
dolorosa realidade se nos apresenta: a perda de memória. Aquela
rapidez de lembranças que outrora se fazia presente dá lugar ao
esquecimento de coisas básicas. Vivemos nos perguntando: “Onde
estão os óculos, qual é o nome da mulher do amigo de infância,
quando é a consulta médica?”.
Não é difícil vermos amigos conversando uma linguagem que se
entende só quando se está envolvido: “É a…mulher do…que mora
na…lá na…”. Parece conversa de loucos, mas todos entendem quem
é quem na história. É algo mágico de um pensamento truncado que
faz sentido naquele cenário dos encontros.
Não é difícil aparecerem brincadeiras em torno do famoso primo
Alzhe, numa referência à doença de Alzheimer que tanto assombra.
Gargalhadas abertas entre os amigos cinquentões; certa complacência
entre os pares, uma profunda compreensão da perda da memória
recente. Estamos todos juntos neste barco da vida, pensam os amigos.
As gargalhadas diminuem, o susto aparece, a negação se faz
presente, e a constatação vem pesada quando o primo Alzhe não é
mais uma brincadeira – ele se transformou em Alzheimer, a doença.
Ela é sorrateira. Vem devagar e mansa se instalando e destruindo
o cérebro. O primeiro ataque, no hipocampo, onde as memórias são
arquivadas, seguido por outros: perda da articulação de palavras;
associação de palavra/significado, pessoa/nome,
emoções/sentimentos; nas fases mais avançadas, o comprometimento
da coordenação motora. Por fim, a regulação da respiração e do
coração que leva à morte.
Um cérebro vivo e capaz se transforma numa massa sem viço, sem
cognição. Em vida, o cérebro é transformado num órgão
praticamente morto. Conviver com o princípio da doença é angustiante para a pessoa.
Ela sabe que está perdendo a memória: o acesso às suas lembranças
já se transformou em transtorno. A vergonha estampa-se nos olhos dos
filhos quando o pai ou a mãe não reconhece uma pessoa próxima, ou
quando pergunta pela milionésima vez a mesma questão. É
massacrante.
Que doença é essa? Por que ela não só leva embora a memória
recente das pessoas como também toda sua memória? Um amigo querido contou-me a dor que sentiu ao ver o desespero nos
olhos da mãe quando foi anunciado que ele estava na casa para
visitá-la. Ela procurou o filho criança pela casa, amparada por
aquele “senhor” que ela nunca havia visto. “Cadê meu filho,
moço?”. Foi a pergunta angustiada de uma mãe que se fechou em
silêncio. Por que essa doença leva embora meu pai, minha mãe, meu grande
amigo? Por que ela não leva embora apenas a memória recente?
“Cadê meu pai? Cadê minha mãe? Cadê meu marido?” Onde eles
estão, para onde vão e como vão? Uma viagem angustiante, triste, escura tanto para o doente como
para a família. A doença é violenta, ingrata e severa.
Existem casos de psicoses que são desenvolvidos não apenas pela
herança genética como também pelo padrão, muitas vezes paradoxal,
da dinâmica familiar. O não reconhecimento no olhar da mãe pelo
filho é destrutivo. É o olhar vazado, sem reflexo que o faz não
existir.
E na fase madura, quando filho vive essa situação? Ele vê no
olhar da mãe o vazio do não reconhecimento. É opaco, sem reflexo.
Apesar de ter mais instrumentos emocionais e racionais para lidar com
o vazio e sem a ressonância do olhar apaixonado da mãe, não é
menos desesperador. É um tormento. Naquele olhar de outrora, não me reconheço mais e nem reconheço
o outro. Fisicamente é meu ente querido, todavia cadê a alma, cadê
o amor, cadê minha mãe, meu pai ou meu querido? Foram embora? Foram roubados? Simplesmente se foram…
Atualmente já não me interesso tanto pelo olhar vergonhoso dos
familiares; interesso-me pela angústia de não ser mais visto. Se eu
pudesse ver os familiares de minha primeira paciente com Alzheimer,
talvez pudesse ajudá-los, tratando não só da vergonha que sentiam
da idosa demente como também do fato de não existirem mais para
ela. A vergonha de não serem mais nada além de cuidadores que davam
condições para ela viver.
Ela não os via e nem os conhecia. E eles, familiares,
também não reconheciam aquela idosa que havia ido embora há anos
de suas vidas. Era um corpo que precisava ser tratado com a maior
dignidade possível, mas a alma, já havia ido para outro lugar.
Ainda não consegui fechar um pensamento sobre a simbologia do Mal
de Alzheimer, o porquê de ele vir roubar a alma do nosso querido. O
que ele quer dizer psiquicamente? Por que essa violência com as
relações familiares?
Até recentemente, o único que roubava almas era o Diabo, em
troca de favores. O Alzheimer não. Ele não dá nada em troca, chega
manso, estabelece-se confortavelmente sem fazer barulho. Quando
os familiares percebem sua presença, parte do cérebro já foi
destruída. E a alma do idoso foi levada embora.
Quem é o primo Alzhe? Se alguém souber, por favor, me avise.
(http://sbpa.org.br/portal/quem-e-o-primo-alzhe/)
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