“O
real não está na chegada: ele se dispõe para a
gente
é no meio da travessia”. (Guimarães Rosa).
Nosso
percurso completa quase oito anos.
No
ano de 2005, tivemos o diagnóstico definitivo. Nesse mesmo ano
algumas mudanças significativas começaram a acontecer na minha
vida, decorrentes da necessidade da minha presença na estrutura de
apoio elaborada para os cuidados prestados à minha mãe. Viagens
para a cidade onde ela residia, objetivos pessoais e profissionais
alterados, com vazios efetivados pela escolha realizada. E, com isso,
uma nova agenda foi inaugurada na minha vida e rotina dos meus entes
mais próximos. No caso, os meus familiares, que aprenderam a
conviver com concessões e adiamentos de planos, num processo no qual
o tempo nem sempre nos permitia discutir as decisões, tomadas
rapidamente.
Ganhos
e perdas instalados, sinalizando para ações nem sempre permeadas
de consentimento voluntário, mas sempre a acompanhar as premências
de um quadro surpreendentemente voraz, encaminhando para a busca de
soluções possíveis. Digo voraz, porque, quando imaginava ter o
controle de alguns comportamentos, outros surgiam a impulsionar a
nossa capacidade criativa para, entre tentativas, certeiras ou não,
prosseguirmos na luta nossa de cada dia.
Nesse
tempo de relação próxima com o que diz respeito à doença de
Alzheimer, registro algumas impressões da trajetória até então
vivenciada. Muitos rostos, semblantes, imagens, emoções, sensações
e sentimentos compõem e integram esse álbum de recordações, no
qual minha mãe ocupa o lugar de destaque.
Dentro
desse contexto, a pessoa do cuidador desponta como personagem
relevante, pois muito do tempo dedicado ao portador, acontece ao seu
lado. Anas, Marias, Luisas, Ninas, Cidas, Franciscas, Martas e
tantas outras se encaixam nessa função de cuidador, que podemos
considerar como nova na sociedade brasileira, sendo notória a
presença predominantemente feminina.
Nesse
âmbito, sabemos que há muito para ser realizado, cursos a serem
promovidos em continuidade aos que já têm sido desenvolvidos, com
foco na questão do autoconhecimento e aquisição de outros saberes
especializados. Importante demonstrar sobre a necessidade de um
perfil específico para o exercício deste trabalho, já que persiste
uma ideia ingênua de que, para ser cuidador, basta gostar do idoso.
Esse requisito é bem-vindo, desde que complementado por outros que
se encaixam nas exigências de capacitação para tal função.
Também
vivenciamos a experiência de novos arranjos familiares e domésticos
e, com eles, aprendemos e apreendemos situações com reações
bastante diversas. Gente convivendo com gente que traz, nas suas
histórias, bagagens diferentes, impregnadas de valores e
significados, pondo-nos à prova, cotidianamente.
Nesse
fluxo, sinalizo que, quando discutimos sobre a doença de Alzheimer,
e suas implicações, o adjetivo cruel encaixa-se com adequação. No
seu enfrentamento surgem as limitações dos envolvidos, direta e
indiretamente, às exigências e especificidades da patologia. As
fragilidades ficam expostas, visões simplistas e instantâneas são
elaboradas para minimizar impotências individuais e coletivas. Um
exemplo disso consiste na afirmação de que o portador
nada sente e que, por isso, não existem motivos para modificar uma
rotina estabelecida.
Na
contrapartida, sempre se destaca uma pessoa que se responsabiliza
pela estrutura, com envolvimento e comprometimento, assumindo o seu
comando. Pessoa esta que, se revestida de vontade e propósito,
obterá aprendizado e instantes de criação no ciclo inaugurado. Em
paralelo, aparecem as frustrações, desencantos e outros sentimentos
previsíveis no processo. Inclusive, com períodos em que sair de
cena significa autoproteção, fortalecimento, respeito e renovação
de energias para dar seguimento ao ato de cuidar e de se cuidar.
No
passar dos meses, efetuamos várias adaptações, buscando obter
posturas adequadas a elas. A dependência se intensificou, objetos
desconhecidos foram introduzidos na rotina diária, como no caso da
cadeira de rodas, a cama hospitalar, o colchão casca de ovo, os
canudinhos para a ingestão de líquidos em geral, a colher, todos
como elementos auxiliares na qualidade de vida da minha mãe. Nela,
o fator segurança tem primazia sempre! E a manutenção de uma
rotina voltada para sua saúde e conforto tem sido o foco principal.
Nessa
direção, a oralidade tem sido estimulada nas suas diversas
manifestações: conversas curtas, com dicção clara e simples,
frases pequenas, continuamente sedimentadas nos seus aspectos
positivos. O passado
da minha mãe tem sido revisitado todos os dias, pois o repertório
de lembranças diminui. Com ele, buscamos o que ainda se encontra
preservado, que pode ser encontrado nas evocações da sua infância
e de todos os seus protagonistas.
O
velho aparelho de som permanece e perpassa todas as mudanças
efetuadas até então. Ouvir canções do seu tempo tem se revelado
uma atividade constantemente prazerosa E, ao som de canções como
Índia, Maringá, Luar do Sertão, e outras, assistimos a alegria
manifestada na sua
expressão e participação. Em dias ensolarados, passeamos,
contemplamos os monumentos do entorno, o céu, as árvores e, nelas,
acompanhamos os ciclos das estações do ano. Os ipês, orquídeas,
rosas, cravos e outras espécies de flores têm sido admirados,
frequentemente, nos passeios que realizamos.
O
aniversário da minha mãe se aproxima e me emociono muito quando
abordo sobre este evento para ela, que, com o vocabulário e som
possíveis, escolhe o bolo de chocolate com cobertura entre as opções
que lhe ofereço para celebrarmos a data.
Pondero
que na trajetória construída até o momento, o tripé
possibilidade, aprendizado e crescimento tem se mantido vigoroso e
vivo na relação com minha mãe querida.
Hoje,
o que possuo como resposta materna reside na vitalidade e força do
seu olhar que me acompanha, nos dias em que a voz não consegue ser
pronunciado, o sorriso sereno esboçado na minha chegada e partida, o
aceno de mão, e as bênçãos possíveis. Também, o calor do abraço
no qual só os meus braços se mobilizam. Mais ainda, o nosso amor
terno e eterno, entrecortado pelo silêncio que traduz as nossas
vozes de tempos atuais, idos e vindouros!
(Vera
Helena Zaitune)
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