quinta-feira, 31 de março de 2016

SENTI O MUNDO A DESABAR ...


Diagnóstico: ALZHEIMER/ESCLEROSE MÚLTIPLA

"Quis respirar fundo e não consegui.
Tinha as mãos do mundo todo a sufocar-me, e sentia a ausência de um suporte para os meus pés.
Passou pela minha memória uma série de sinais estranhos, que eu vinha observando nos últimos meses. Mais grave que os desequilíbrios sucessivos, falhas na memória, desorientação espacial, afigurava-se o meu registo que ficou eterno, de olhar demente com que um dia, me fixou o rosto, no meio de um sorriso sem contrôle.
Os seus olhos amêndoados, com a íris raiada, entre o verde azeitona e o castanho claro, que aconchegavam a minha existência, que me davam segurança, quando menina, e que julgara eternos, poisaram em mim sem nexo, sem lógica, sem profundidade, descoordenados do pensamento, descontextualizados de tudo e de nada, despropositados, dementes, perdidos da postura racional e coerente de toda uma vida.
O meu cordão umbilical foi violentamente cortado nesse instante, e sangrei…sem qualquer intimidade, sem preparativos, sem cuidados assépticos, na presença de todos, completamente alheados, da gravidade da situação.
Um dia após outro, a perda de actividade, de faculdades, de afectos, entrelaçava-se, com a perda sucessiva do ser humano que me gerou, progressivamente incapaz de exercer autocrítica, de tomar decisões, de se organizar minimamente, e eu incapaz de me reorganizar, de estabelecer metas e objetivos, de renovar afetos, fortalecer empatias ...
A autonomia, passou lentamente a dependência total.
A frescura da minha conduta converteu-se em amargura constante.
Os afetos formais foram-se desconstruindo, desmaterializando, numa dialéctica estranha de viver, perseguindo teimosamente um rumo com sentido negativo de involução.
Os papéis, estranhamente inverteram-se; de protegida passei a protectora, sem a mínima preparação, não conseguindo vestir bem essa roupagem, que assistia ao esvaziar de conteúdos de uma alma, que eu julgava e queria crer como inalterável.
As perdas sucessivas caracterizavam-se por uma bilateralidade de proporcionalidade inversamente descontrolada, tocando-se por vezes num eixo de simetria que eu tinha dificuldade em sustentar, levando-me a cometer erros de avaliação, permanentes e insuportáveis.
A minha sobrevivência diária à depressão, verificava-se apenas pela impossibilidade de enveredar por esse caminho. Nem esse caminho me restava.
Cada dia se tornou mais cinzento que o anterior, numa paleta monocromática, onde cada vez mais, predominava a ausência de luz, numa existência cada vez mais vegetal e dependente. Os negros cada vez mais negros, como se fosse possível alguma distinção entre eles, ou como se fosse possível o preto ser mais escuro que o negro ou vice-versa ..., e a primavera não despontou durante seis longos e marcantes anos, que se converteram em décadas de sofrimento, de perdas irrecuperáveis, num processo impossível de inverter, sem fim determinado, que nos invadia até aos ossos, até a alma, até ao centro dos nossos centros.
O olhar… esse passou a ser de um estranho, mudou de cor, de forma, de tamanho, de textura, de tempo, de amplitude, de configuração…
…e um dia gelou-me os dedos da mão, com a rigidez marmórea do último dia".
(In "Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado" - Anabela Quelhas)

segunda-feira, 28 de março de 2016

FELIZ PÁSCOA

TEMPESTADE EXISTENCIAL

Perigos de uma tempestade 



ALZHEIMER : 
" TEMPESTADE EXISTENCIAL QUE DEIXA O INDIVÍDUO À DERIVA, SEM PORTO SEGURO, SEM PARÂMETRO PARA PENSAR, E SEM VONTADE DE FAZÊ-LO. É A PRESENÇA DE UMA AUSÊNCIA" .

domingo, 20 de março de 2016

REALIDADE - ASSIM É O ALZHEIMER ...

Risco de Alzheimer

Ao envelhecer, despertamos alguns fantasmas. O mais temível é o da perda da razão, da consciência, da memória, da identidade. Tudo porque somos seres que vive de memórias. Graças a ela temos todos os nossos sentimentos mais latentes: amor, alegrias, crescimento pessoal, tristezas… Tudo isso é diretamente ligado às nossas lembranças; e presenciar alguém próximo perdendo isso pode ser uma experiência dolorosa...
 
A vida oferece situações que nem mesmo uma mente fértil e ativa tem o poder de imaginar como é levar uma  vida sem lembranças, sem presente, sem passado e  sem futuro tendo como companheiro de jornada até o fim da vida apenas a solidão e o silêncio das emoções.
 
Assim é o Alzheimer … É uma doença que chega devagar, Pequenas falhas de memória, esquecimentos, destruindo aos pucos a nossa relação com as pessoas que amamos, e com o mundo a nossa volta. Incapazes de lembrar quem somos, de que vale a condição humana? A família acha que é distração. Ser distraído, desatento, é uma coisa. Perder a memória é diferente. É esquecer o que comeu no almoço, largar as tarefas pela metade, ficar perdido no caminho de casa, repetir a mesma pergunta várias vezes.
 
Além da memória, também a capacidade de localização no tempo e no espaço é afetada. E, de um dia para o outro, os doentes deixam de conseguir encontrar caminhos. Perdem-se na própria casa, na vizinhança. E desenvolvem comportamentos estranhos como a deambulação errática. 
 
O que dizer então de uma mente sem lembranças que não é mais capaz de recordar de suas peraltices, suas pequenas maldades e brincadeiras inocentes da infância? O que dizer de uma mente sem história e sem lembranças de sua juventude, do primeiro amor, do primeiro beijo, das primeiras frustrações e das grandes e pequenas alegrias vividas? 
 
Como será não se lembrar do aqui e agora, da última canção que embalou sua alma, do último sorriso e carinho recebidos? Como será não ter nenhum sentido de orientação, de raciocínio e passar a ver o mundo com aquele olhar opaco, sem brilho, sem emoção?
 
Assim é o mundo da pessoa acometida pelo mal de Alzheimer. Este é o mundo daqueles que vivem a desventura de sofrerem dessa doença silenciosa, destruidora de sentimentos, sonhos, emoções e, pior, sem cura. Quando perguntado sobre a maior dificuldade que o Alzheimer impõe ao cuidador familiar, posso afirmar que o cansaço e o desgaste físico ficam em segundo plano, “sem dúvida, o maior obstáculo é conviver com a dor e com o sofrimento do paciente, pois nunca estamos preparados para a degradação das pessoas que muito amamos”.  
 
O tempo perdido, este parece ser o tempo do Alzheimer. Da perda gradual, mas inexorável, até o momento no qual nada é lembrado: datas, fotos, nomes, rostos, significados. Até o tempo do esquecimento de si. Dor maior. O tempo perdido, a mais forte das marcas do Alzheimer, não pode ser recuperado pela pessoa demenciada. Restam as fotos e fatos vivos na memória de sua comunidade afetiva, e nela permanece tudo vivido, mas é a que salva. Nela a vida ainda é plena. 
 
Quanto tempo perdemos com futilidades, sentimentos desagradáveis, lutas sem vencedor, ingênuas pretensões de poder, de saber. Ser tragado pelo tempo que gira, gira… Perder o tempo assim dói. 
 
Em minha experiência como cuidadora de minha amada mãe, estou a vivenciar uma troca de rotina, tendo que reensinar, pouco a pouco, tudo aquilo que a outra pessoa sabia anteriormente, mas sequer lembra mais. De repente, uma inversão de papéis : estou perdendo a posição de filha e assumindo a de mãe. Perdendo o abraço forte, o afago terno e carinhoso. Perdendo os meus parâmetros, os meus caminhos, o ombro amigo, o meu modelo.
 
Ela não deixou de existir. Está se despersonalizando. Esquecendo aos poucos a sua história, estou perdendo a minha mãe, mas ela não morreu. Perdendo o papel de filha. Ela é minha mãe, mas eu não sou sua filha. Ela está para mim, mas eu não estou para ela. Vivencio um luto diário.

No entanto, através do amor, o Alzheimer não precisa se tornar um fardo tanto para o enfermo quanto para seus familiares. Muitos que convivem com a doença costumam dizer que o idoso se torna criança de novo, retornando a um status mental onde não sabe de nada, e precisa ser ensinado às coisas básicas novamente.
 
A melhor maneira de se lidar com um Alzheimer é mesmo o amor, principalmente quando o enfermo começa a esquecer nomes e rostos. Pode ser frustrante não ser reconhecido por uma pessoa que viveu muito tempo conosco; mas um pouco de paciência e amor já ajudam a tornar o processo menos doloroso para todo mundo.
 
O amor nos mostra que mesmo doenças complexas podem ser combatidas com práticas simples. Resta a nós apenas o conhecimento, deixar a ignorância de lado e travar uma luta diária com o esquecimento. Porque mesmo que um idoso esqueça boa parte da sua vida, nós ainda lembraremos de todos os bons momentos vividos junto com eles.
 
Com minha mãe, aprendi a usufruir de momentos indescritíveis. Tenho a recompensa da alegria do brilho de seus olhos.  Acaricio sua face, beijo seu rosto e ela retribui com um amor imenso. A nossa cumplicidade ainda permanece, apesar da evolução do Alzheimer.
Como te amo amada mãe.

terça-feira, 15 de março de 2016

FILOSOFANDO COM ALZHEIMER




Pode parecer um devaneio, uma defesa da consciência, uma exacerbada forma de viver sempre procurando enxergar o lado bom das coisas que nos acontecem (e é dessa forma mesma que eu vivo)… o fato é que tenho observado, agora ainda mais, já que ela se aproxima da sua fase final, algo importante, que chama atenção na doença de Alzheimer inicialmente apresentada por minha mãe há quase 10 anos atrás.

É fato que começamos a morrer logo quando nascemos. E se não morremos de morte “matada” morremos de morte “morrida”. A probabilidade de morrermos de uma doença é muito maior. É a máquina humana que perece, diante das suas limitações e do tempo.

Entre tantos tipos de mortes comuns da velhice, a morte pela doença do Alzheimer parece ser sui generis
1 ) Começa com um simples esquecimento…natural…
Um processo que faz fugir aos poucos das preocupações da vida. Sim. Essas mesmas preocupações que nos exigem drogas (álcool e tantas outras) para fazê-las esquecê-las, nem que seja por curtos falsos momentos, sabendo que elas virão à tona depois da mais cruel ressaca física e moral…

2 )Lembrando sempre e cada vez mais apenas do passado…
Como se andasse à contravento dessa modernidade que não valoriza as coisas antigas, despreza aqueles já se foram e trata de valorizar voraz e cegamente tudo que é novo, o paciente de Alzheimer chama a todo tempo seus pais, seus irmãos que já se foram, como se os fizesse uma homenagem diária…pedem diariamente para ir para a casa, como se tivesse criado um cordão umbilical com a sua história…

3) Retorna seu comportamento ao de uma criança e parece ao ventre retornar…
Quanto mais a doença avança, o paciente evolui como se tivesse retornando da velhice ao ventre da mãe. Em algumas das fases da doença as evidências dessa trajetória ficam muito claras ainda. Passa pela rebeldia da adolescência, pela teimosia infantil, a dificuldade de falar, balbuciando como uma criança e exerce diariamente as incontinências de um bebê, o que lhe devolve as fraldas. Rejeita comidas. Deixa de andar e assume sobre a cama uma postura fetal, com a coluna curvada, como se realmente tivesse completamente voltando a ser um feto.

Trata-se de um processo muito exato, recheado de sinais!!!! É como se devolvesse aos filhos, que com muito amor foram criados quando criança, a oportunidade de criá-los como criança também, e de retribuir todo aquele amor.
Vivemos cercados por respostas que estão por aí…
Basta perceber!
(http://pedrobrazil.com/)

DOENÇA DE ALZHEIMER