Diagnóstico: ALZHEIMER/ESCLEROSE MÚLTIPLA
"Quis respirar fundo e não consegui.
Tinha as mãos do mundo todo a sufocar-me, e sentia a ausência de um suporte para os meus pés.
Passou
pela minha memória uma série de sinais estranhos, que eu vinha
observando nos últimos meses. Mais grave que os desequilíbrios
sucessivos, falhas na memória, desorientação espacial, afigurava-se o
meu registo que ficou eterno, de olhar demente com que um dia, me fixou o
rosto, no meio de um sorriso sem contrôle.
Os seus olhos amêndoados, com a íris raiada, entre o verde azeitona e
o castanho claro, que aconchegavam a minha existência, que me davam
segurança, quando menina, e que julgara eternos, poisaram em mim sem
nexo, sem lógica, sem profundidade, descoordenados do pensamento,
descontextualizados de tudo e de nada, despropositados, dementes,
perdidos da postura racional e coerente de toda uma vida.
O
meu cordão umbilical foi violentamente cortado nesse instante, e
sangrei…sem qualquer intimidade, sem preparativos, sem cuidados
assépticos, na presença de todos, completamente alheados, da gravidade
da situação.
Um dia após outro, a perda de actividade, de faculdades, de afectos,
entrelaçava-se, com a perda sucessiva do ser humano que me gerou,
progressivamente incapaz de exercer autocrítica, de tomar decisões, de se organizar minimamente, e eu incapaz de me reorganizar, de estabelecer metas e objetivos, de renovar afetos, fortalecer empatias ...
A autonomia, passou lentamente a dependência total.
A frescura da minha conduta converteu-se em amargura constante.
Os afetos formais foram-se desconstruindo, desmaterializando, numa dialéctica estranha de viver, perseguindo teimosamente um rumo com sentido negativo de involução.
Os papéis, estranhamente inverteram-se; de protegida passei a
protectora, sem a mínima preparação, não conseguindo vestir bem essa
roupagem, que assistia ao esvaziar de conteúdos de uma alma, que eu
julgava e queria crer como inalterável.
As perdas sucessivas caracterizavam-se por uma bilateralidade de
proporcionalidade inversamente descontrolada, tocando-se por vezes num
eixo de simetria que eu tinha dificuldade em sustentar, levando-me a cometer erros de avaliação, permanentes e insuportáveis.
A minha sobrevivência diária à depressão, verificava-se apenas pela
impossibilidade de enveredar por esse caminho. Nem esse caminho me
restava.
Cada dia se tornou mais cinzento que o anterior, numa paleta
monocromática, onde cada vez mais, predominava a ausência de luz, numa
existência cada vez mais vegetal e dependente. Os negros cada vez mais negros, como se fosse possível alguma distinção entre eles, ou como se fosse possível o preto ser mais escuro que o negro ou vice-versa ..., e a primavera não despontou durante seis longos e marcantes anos, que se converteram em décadas de sofrimento, de perdas irrecuperáveis, num processo impossível de inverter, sem fim determinado, que nos invadia até aos ossos, até a alma, até ao centro dos nossos centros.
O olhar… esse passou a ser de um estranho, mudou de cor, de forma,
de tamanho, de textura, de tempo, de amplitude, de configuração…
…e um dia gelou-me os dedos da mão, com a rigidez marmórea do último dia".
(In "Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado" - Anabela Quelhas)
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