"Minha mãe, soube no meio desta semana, não sabe mais beijar. Ela morde quando lhe pedem um beijo, embora desconheça, também, o que significa morder.
Maria José, a Zezé, que sempre foi alegre e amorosa, tem Alzheimer. E se escrevo isso com os olhos marejados é de saudade de quem ela foi e gratidão pelo bem que nos faz. Minha mãe não sabe mais beijar – e este fato por si só traduz todo contraste que pode haver na vida –, mas o amor sobrevive nela sem necessidade de gestos.
Palavras, pelo menos as que se articulam para fazer sentido, não existem mais em sua boca, mas não há quem se aproxime de Zezé e não sinta a ternura que vem dela e está em torno dela.
Se a memória pudesse ser transformada em fotografias que não foram feitas, certamente haveria uma em que ela está sentada em uma pedra descascando laranjas para um bando de crianças – os filhos e os sobrinhos. Em outra, divide a mesa com os filhos, os sobrinhos e nossos amigos, tomando uma caipirinha para acompanhar nossa cerveja, rindo seu riso solto. Em uma terceira, está triste, digladiando com os fantasmas do seu passado, do seu jeito franco e aberto de lidar com as dificuldades, o que mataria de fome os terapeutas se dela dependesse seu sustento.
Minha mãe não trancava segredos em gavetas, não ruminava mágoas nos cantos da casa. Sempre rebelde, falava deles abertamente, dispensava as cerimônias. São fotografias, claro, tiradas por mim. Outros poderiam enquadrá-la de outra forma. A memória é apenas um jeito de dobrar e guardar a realidade para que não se perca no tempo. É desta forma que a trago comigo.
O Alzheimer é assim: a pessoa que era não existe mais. Morre, insepulta. No lugar dela, chega a surpresa, outra pessoa muito diferente, trazendo uma mala de dificuldades. Minha irmã Lúcia, que mora com ela, mais de uma vez me ligou pedindo socorro para ajudar a contê-la em suas crises de terror e ira. Outras vezes, teve que lidar com os delírios sozinha, ao lado da filha Sarah, madrugadas adentro. Tradutora de francês, perdeu trabalhos importantes porque não conseguia conciliar as funções. Antes dela, outra irmã, Paula, viveu dificuldades ao cuidar de nossa mãe. Derramaram, todas elas, muitas lágrimas, a vida transformada em uma prova de resistência, das mais difíceis, sem pausa para descanso. Uma infinidade de remédios testados e substituídos, uns após os outros, incapazes de eliminar o medo e os delírios e trazer a vida de volta ao padrão das dificuldades rotineiras.
O tempo – sempre ele – nos ensinou, porém, que o Alzheimer, além de uma doença, é um processo de cura. Ao cortar os laços com a realidade e perder a memória, minha mãe encontrou o tempo e a necessária ausência das velhas referências para encontrar-se em essência. É o que está fazendo agora, embora dias de angústia ainda amanheçam em sua vida. Acalmou-se.
Nós aprendemos desde o início que só há um jeito de lidar com a demência: o amor. Todas as vezes que a impaciência venceu e o perdemos como referência, a situação ficou incontrolável e perturbadora. Lidar com nossa mãe, desde que a doença começou a se manifestar, exigiu que entrássemos em contato com o que temos de melhor.
E, cuidando dela, curávamos a nós mesmos. Tudo o que amor toca, transforma, e isso vale, claro, para tudo na vida.
Hoje, para nós não existe mais Zezé, mas Zezinha ou “meu bebê”, como prefere Lúcia. Minha irmã me contou, do alto da pessoa em que vem se transformando, que Zezinha, na verdade, não desaprendeu a beijar. A alma dela é que não precisa mais da boca ou de gestos para manifestar o que é. "
( Chico Mendonça é Editor-Chefe do jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte.)
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