"No
ano de 2005, tivemos o diagnóstico definitivo. Nesse mesmo ano, algumas
mudanças significativas começaram a acontecer na minha vida, decorrentes
da necessidade da minha presença na estrutura de apoio elaborada
para os cuidados prestados à minha mãe. Viagens para a cidade onde
ela residia, objetivos pessoais e profissionais alterados, com vazios efetivados
pela escolha realizada. E, com isso, uma nova agenda foi inaugurada
na minha vida e rotina dos meus entes mais próximos. No caso, os meus
familiares, que aprenderam a conviver com concessões e adiamentos de planos,
num processo no qual o tempo nem sempre nos permitia discutir as decisões,
tomadas rapidamente.
Ganhos
e perdas instalados, sinalizando para ações nem sempre permeadas de
consentimento voluntário, mas sempre a acompanhar as premências de
um quadro
surpreendentemente voraz, encaminhando para a busca de soluções possíveis.
Digo voraz, porque, quando imaginava ter o controle de alguns comportamentos,
outros surgiam a impulsionar a nossa capacidade criativa para,
entre tentativas, certeiras ou não, prosseguirmos na luta nossa de
cada dia.
Nesse tempo de relação próxima com o que diz respeito à doença de Alzheimer,
registro algumas impressões da trajetória até então vivenciada. Muitos
rostos, semblantes, imagens, emoções, sensações e sentimentos compõem
e integram esse álbum de recordações, no qual minha mãe ocupa o lugar
de destaque.
Dentro
desse contexto, a pessoa do cuidador
desponta como personagem relevante,
pois muito do tempo dedicado ao
portador, acontece ao seu lado. Anas,
Marias, Luisas, Ninas, Cidas, Franciscas,
Martas e tantas outras se encaixam
nessa função de cuidador, que
podemos considerar como nova na sociedade
brasileira, sendo notória a presença
predominantemente feminina.
Nesse
âmbito, sabemos que há muito para
ser realizado, cursos a serem promovidos
em continuidade aos que já têm sido desenvolvidos, com foco na questão
do autoconhecimento e aquisição de outros saberes especializados. Importante
demonstrar sobre a necessidade de um perfil específico para o exercício
deste trabalho, já que persiste uma ideia ingênua de que, para ser cuidador,
basta gostar do idoso. Esse requisito é bem-vindo, desde que complementado
por outros que se encaixam nas exigências de capacitação para
tal função.
Também
vivenciamos a experiência de novos arranjos familiares e domésticos e,
com eles, aprendemos e apreendemos situações com reações bastante diversas.
Gente convivendo com gente que traz, nas suas histórias, bagagens diferentes,
impregnadas de valores e significados, pondo-nos à prova, cotidianamente.
Nesse
fluxo, sinalizo que, quando discutimos sobre a doença de Alzheimer,
e suas
implicações, o adjetivo cruel encaixa-se com adequação. No seu enfrentamento
surgem as limitações dos envolvidos, direta e indiretamente, às exigências
e especificidades da patologia. As fragilidades ficam expostas, visões
simplistas e instantâneas são elaboradas para minimizar impotências individuais
e coletivas. Um exemplo disso consiste na afirmação de que o portador
nada sente e que, por isso, não existem motivos para modificar uma rotina
estabelecida.
Na
contrapartida, sempre se destaca uma pessoa que se responsabiliza
pela estrutura,
com envolvimento e comprometimento, assumindo o seu comando. Pessoa
esta que, se revestida de vontade e propósito, obterá aprendizado e instantes
de criação no ciclo inaugurado. Em paralelo, aparecem as frustrações,
desencantos e outros sentimentos previsíveis no processo. Inclusive,
com períodos em que sair de cena significa autoproteção, fortalecimento,
respeito e renovação de energias para dar seguimento ao ato de
cuidar e de se cuidar.
No
passar dos meses, efetuamos várias adaptações, buscando obter
posturas adequadas
a elas. A dependência se intensificou, objetos desconhecidos foram introduzidos
na rotina diária, como no caso da cadeira de rodas, a cama hospitalar,
o colchão casca de ovo, os canudinhos para a ingestão de líquidos em
geral, a colher, todos como elementos auxiliares na qualidade de vida
da minha
mãe. Nela, o fator segurança tem primazia sempre! E a manutenção
de uma
rotina voltada para sua saúde e conforto tem sido o foco principal.
Nessa
direção, a oralidade tem sido estimulada nas suas diversas manifestações:
conversas curtas, com dicção clara e simples, frases pequenas, continuamente
sedimentadas nos seus aspectos positivos. O passado da minha
mãe tem sido revisitado todos os dias, pois o repertório de
lembranças diminui.
Com ele, buscamos o que ainda se encontra preservado, que pode ser encontrado
nas evocações da sua infância e de todos os seus protagonistas.
O
velho aparelho de som permanece e perpassa todas as mudanças
efetuadas até
então. Ouvir canções do seu tempo tem se revelado uma atividade constantemente
prazerosa E, ao som de canções como Índia,
Maringá,
Luar
do Sertão,
e
outras, assistimos a alegria manifestada na sua expressão e participação.
Em dias ensolarados, passeamos, contemplamos os monumentos do
entorno, o céu, as árvores e, nelas, acompanhamos os ciclos das
estações do
ano. Os ipês, orquídeas, rosas, cravos e outras espécies de flores
têm sido admirados,
frequentemente, nos passeios que realizamos.
O
aniversário da minha mãe se aproxima e me emociono muito quando
abordo sobre
este evento para ela, que, com o vocabulário e som possíveis,
escolhe o bolo
de chocolate com cobertura entre as opções que lhe ofereço para celebrarmos
a data.
Pondero
que na trajetória construída até o momento, o tripé
possibilidade, aprendizado
e crescimento tem
se mantido vigoroso e vivo na relação com minha
mãe querida.
Hoje,
o que possuo como resposta materna reside na vitalidade e força do
seu olhar
que me acompanha, nos dias em que a voz não consegue ser pronunciado,
o sorriso sereno esboçado na minha chegada e partida, o aceno de
mão, e as bênçãos possíveis. Também, o calor do abraço no qual
só os meus
braços se mobilizam. Mais ainda, o nosso amor terno e eterno, entrecortado
pelo silêncio que traduz as nossas vozes de tempos atuais, idos e vindouros!".
(Vera Helena Zaitune)