quinta-feira, 30 de junho de 2016

REALIDADE: DESCONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA DE VIDA


As emoções são tudo na vida e no universo dos cuidadores. Vivemos em um mundo de emoções e cuidar de uma pessoa que amamos e que sofre de uma doença neuro degenerativa, força-nos a movermos por uma terra atormentada com todos os tipos de emoções e sentimentos (positivos e negativos).
Sabemos que a solidão do cuidador é uma realidade de muitos. E isso dói, isso dói muito. Mas como “heróis” que somos, como “guerreiros de amor e luz” que nos tornamos, continuaremos até o fim desta guerra, mesmo sabendo quem é o vencedor.
Imagino os cuidadores como que jogados em uma pista de circo chamada doença de Alzheimer, onde temos de aprender a dominar as situações em que a doença nos confronta. Somos acrobatas, malabaristas, contorcionistas, domadores, palhaços e muitos outros atores para lidar com “as metamorfoses” que o Alzheimer nos obriga passar em todo o seu processo de evolução.
Como cuidador(a) devemos ter a nítida compreensão que na pessoa demenciada, se destrói a linha do tempo que garante a sua continuidade. Esquecendo do presente, dos vínculos atuais, do cotidiano, corta-se o elo entre passado e futuro. Não há como incluir o passado no projeto de futuro, simplesmente porque não há futuro.
Desta maneira, qualquer sentimento, qualquer ligação, qualquer vínculo será excessivo. A pessoa deixará de pensar, não poderá criar um saber sobre sua experiência, nem poderá registrá-lo em sua memória, renunciará a construção de sua história. A perda de memória, qualquer que seja a causa, provoca a perda de fragmentos consideráveis da identidade.
É a desconstrução de uma história de vida na repetição de gestos dos quais, o sujeito que os protagonizou, agora está ausente. É a falta de precisão e lucidez das ideias e do juízo, lacunas de memória e fadiga. A amnésia afeta em primeiro lugar as lembranças mais recentes e depois, progressivamente, as mais antigas, menos aderidas. Esquece-se o nome das coisas e a linha discursiva, ficando entretido nos detalhes e perdendo-se do resto da história.
Aos poucos, as pessoas, das mais distantes as mais próximas, deixam de ser reconhecidas e a desorientação temporo-espacial se instala. Começa então uma "errância" incontinente, como uma estéril procura do espaço e do tempo perdidos. Chegados neste ponto, não haverá mais manifestação de um pensamento coerente e todos os atos mais elementares da vida se tornam impossíveis realizar, comprometendo a autonomia levando ao caminho da deterioração do sujeito.
É a constatação de que seu tempo acabou. 
É o sequestro de toda esperança.
Como te amo, minha mãe

quarta-feira, 29 de junho de 2016

ROSTO ENVELHECIDO É HISTÓRIA

 

“A vida vai deixando através do corpo suas marcas, vai desenhando traços firmes que contornam os rostos abrindo sulcos, como marcas indeléveis que se multiplicam e se acentuam ao longo dos anos.

Vai embranquecendo e rarefazendo os cabelos, vai fazendo o corpo sentir os anos passarem inexoravelmente. A vida vai escrevendo nossa história em nosso próprio corpo, em nossos gestos, em nosso olhar. 
 
Os caminhos percorridos, os anos vividos, as alegrias e sofrimentos, as esperanças, os desejos escondidos parecem confluir todos para o mesmo corpo, agora capaz de revelar uma história, capaz de deixar as rugas falarem, porque elas têm de fato uma história.

O rosto envelhecido é história, permite uma interpretação, provoca interpretações, faz pensar … Envelhecer é perceber esse passar da vida, constante e intenso, como se a gente pudesse se olhar no espelho e, em um minuto, ver a metamorfose do mesmo rosto desfilando sucessivamente diante dos próprios olhos, transformando-se gradativamente de jovem para velho.”
(Ivone Gebara)

terça-feira, 28 de junho de 2016

ALZHEIMER - A DESPEDIDA PARA O MUNDO DO NADA



"Este é o último dia de mim. O dia em que me despeço do que sou tentando carimbar com estas palavras todas as histórias, momentos, sorrisos que ainda cabem na memória do que fomos. Depois do meu segundo fim, esqueçam esta carta. Esqueçam o meu novo lugar. O amanhã é ainda uma porta que não sei muito bem o que está do outro lado.

Sei que num primeiro momento ficarei confusa e não perceberão porquê. Talvez nessa altura resmunguem comigo pela incompreensão do que me tornei e na tentativa vã de me resgatarem de uma viagem sem regresso.

Sei que depois irei esquecer-me de pequenas coisas. Não saberei mais como apertar os cordões destes sapatos ou como segurar nos talheres de um qualquer almoço de família. Nesse dia compreenderão que sou algo diferente do que conheceram. Serei levada a um médico e terão a notícia que hoje escrevo aqui – sou uma doente com Alzheimer. Leio pela primeira vez este veredicto de não existência e é com dificuldade que me aceito num diagnóstico que vai arrancar tudo o que vive em mim. Serei resumida ao meu corpo, como se fosse uma morada sem destinatário. Tenho um bilhete para um mundo que a pouco e pouco fica mais pequeno. Um mundo carente de imagens, de cheiros, de significados e com sentimentos dispersos em flashes da minha história que a cada segundo ficam mais embaciados.

Sei que mais tarde me esquecerei do nome de todos, do meu nome. Assusto-me, quase morro quando pressinto o vosso sofrimento. Gostaria tanto de me lembrar do que fomos um dia. Ficaria tão feliz se as vossas palavras voltassem a ter eco em mim. Nesse dia será o meu primeiro fim. Se me esquecer de vocês não me lembrarei como é amar e quando não sentimos não existimos.

Sei que chegará o dia que estas etapas serão as vossas últimas lembranças de mim. Sei que um dia tudo o que escrevo agora será o vazio absoluto e serei um silêncio ensurdecedor permanente. Nesse dia as palavras, os sons, o mundo serão para mim como quando nos falam numa língua que não conhecemos.
 
Fecho muito os olhos. Imagino um lugar onde este nada em que me tornarei é menos penoso para quem estará aqui ao meu lado e já não verei. Um sítio onde os retalhos de uma vida cruzados com a tela branca em que se tornará a minha memória serão menos perigosos - estar aprisionado num corpo que já não sabemos nosso é um risco constante. Olhamos para o espelho e temos medo da pessoa que o reflexo nos devolve. Caminhamos e não nos lembramos da rua onde moramos nem conhecemos o café onde passámos tantas vezes. Tememos o que gostávamos, uma simples festa de família torna-se numa confusão tão grande que só queremos fugir. Vemos uma janela ou uma varanda e não sabemos como nos proteger.

Entrar num lugar sem memória é ter medo de tudo o que nos rodeia. É fugir de tudo, até daqueles que amamos. Estas novidades exigem mudanças. O lugar que falo não tem janelas ou varandas abertas ou espelhos. Tem caminhos, labirintos sem fim para que possa passear e não me perca. Tem uma rotina que não se quebra com barulhos até aqui conhecidos mas que de repente são um susto que não sei ultrapassar.
 
Nesse lugar há outros filhos e netos que conversam com os meus sobre os seus receios, sobre como é estarem com o meu corpo comigo ausente, como é amarem alguém que já não está cá, que não sorri quando chegam e grita sem sentido. Há médicos e psicólogos que escutam toda a dor dos meus familiares e os ajudam a preencher este meu novo lugar e a aceitar este meu novo Eu. 

Há planos criados entre as famílias e os técnicos que apaziguam a fúria, a minha  inexpressão, as perguntas que me perseguem e nem me apercebo. Nesse lugar há a compreensão da minha ausência e do diagnóstico que serve como aviso do meu segundo fim. Nesse lugar aquilo que sou hoje fica guardado entre as fotografias, as histórias que eternizei em bilhetes, postais.

Se um dia encontrar esta carta não saberei que foi com esta caneta, neste papel e com a minha mão que foi redigida. Não reconhecerei a caligrafia que aparece em todos os documentos com o meu nome. Quando vocês a lerem já não encontrarão o que fui num rosto cravado de um nada que roubou a lucidez. Olhem para mim, reconheçam-me em tudo o que ficou guardado nas gavetas do meu passado, da memória que têm de mim quando sabia tudo sobre vocês e vos contava a nossa história. Depois do meu segundo fim, esqueçam esta carta. Esqueçam o meu novo lugar. Esqueçam o corpo ausente que me transportou nos últimos anos. Lembrem-se apenas de tudo o que vivemos até ao minuto em que escrevi a primeira palavra desta carta".
(Liliana Trigueiros)

segunda-feira, 27 de junho de 2016

AMOR INCONDICIONAL

 amor

A linguagem do amor é bem compreensível entre os homens. Todos falam de amor neste mundo. Do amor que sonham, do amor que têm, do amor que perderam, do amor que de repente virou desamor, ou o  que não era amor, era só paixão. Amor é consequência natural da vida, as pessoas já nascem unidas por vínculos de afeto e de dependência, e então, nunca mais conseguem viver sozinhas. Mas o amor do qual quero falar não é esse amor quase banal que todos dizem sentir, que todos dizem amar num segundo e parecem esquecer no próximo. Eu quero falar do amor que não pede nada em troca, que existe simplesmente por existir, que é incondicional para quem ama e só por isso, é verdadeiro.

O amor incondicional não impõe limites, não estabelece regras, não faz ameaças e nem represálias. Não  carrega esse olhar de censura, nem o ar de suspeita, muito menos a mordaça ou a algema para aprisionar uma alma gêmea à outra. Não precisa de juras no altar  para diante de testemunhas declarar seu  amor eterno e nem exigir diante de Deus que a pessoa amada deverá sempre estar ao seu lado  na saúde e na doença, na pobreza e na riqueza, jurando ser fiel a vida toda. O amor incondicional sobrevive a isso tudo, e mesmo que nada disso aconteça, mesmo que as promessas sejam quebradas, ele permanece lá, guardadinho no coração de quem ama, apesar de todas as decepções. Porque quem ama assim, ama sem esperar nada em troca, ama simplesmente por amar e não precisa de contratos para perpetuar sua existência.

Amar incondicionalmente  é viver livre das amarras e das convenções que o mundo vai criando para envolver  as pessoas. Não exige um corpo perfeito para continuar existindo, nem um rosto bonito, ou que a pessoa amada seja eternamente jovem.  Quem sabe amar assim não descarta a pessoa amada porque os cabelos brancos começaram a brotar, as rugas começaram a realçar mais que o sorriso e aquele corpo tão desejável, de repente, começa a perder as formas. Muito menos deixa de amar quando o dinheiro míngua ou quando o corpo se corrói com  o sofrimento, do qual infelizmente alguns padecem. Quem abandona aquela pessoa que disse amar um dia por causa das intempéries da vida, é porque na realidade nunca amou de verdade. Ou se amou, foi cheio de condições, que infelizmente o tempo muitas vezes não permite que uma pessoa possa cumprir. Amar incondicionalmente está além do tempo, da saúde, da riqueza, da beleza e da paixão, que geralmente sai pela porta quando a velhice chega. Mas para quem ama de verdade, isso realmente não importa, porque a presença da pessoa amada é o que realmente importa, é o que conta para que a vida valha a pena.

São poucas as pessoas que amam incondicionalmente hoje. E muito poucas permanecem juntas no amor pela velhice afora, companheiros eternos até a última hora. Esses são aqueles que realmente entenderam o verdadeiro significado desse sentimento lindo, capaz de mudar o mundo e que está tão banalizado ultimamente. Tanto, que me atrevo a dizer que amor incondicional é raro. Sua presença mais forte encontra-se  no coração de uma mãe e de um pai que amam seus filhos sem pedir nada em troca, que amam apesar dos seus defeitos, de seus erros, de seus desprezos e todas essas coisas, que os pais acham natural que os filhos façam à revelia de suas vidas, porque os amam pelo simples fato de serem apenas seus.    E se  não for o  amor dos  pais, o amor de casais que são para sempre, eu acredito que não foram escolhas do homens. São eternos porque foram escolhas de Deus.
(http://www.recantodasletras.com.br/)

sexta-feira, 17 de junho de 2016

MINHA MÃE, O ALZHEIMER E A NOSSA TRAVESSIA

 

"No ano de 2005, tivemos o diagnóstico definitivo. Nesse mesmo ano, algumas mudanças significativas começaram a acontecer na minha vida, decorrentes da necessidade da minha presença na estrutura de apoio elaborada para os cuidados prestados à minha mãe. Viagens para a cidade onde ela residia, objetivos pessoais e profissionais alterados, com vazios efetivados pela escolha realizada. E, com isso, uma nova agenda foi inaugurada na minha vida e rotina dos meus entes mais próximos. No caso, os meus familiares, que aprenderam a conviver com concessões e adiamentos de planos, num processo no qual o tempo nem sempre nos permitia discutir as decisões, tomadas rapidamente.

Ganhos e perdas instalados, sinalizando para ações nem sempre permeadas de consentimento voluntário, mas sempre a acompanhar as premências de um quadro surpreendentemente voraz, encaminhando para a busca de soluções possíveis. Digo voraz, porque, quando imaginava ter o controle de alguns comportamentos, outros surgiam a impulsionar a nossa capacidade criativa para, entre tentativas, certeiras ou não, prosseguirmos na luta nossa de cada dia.
 
Nesse tempo de relação próxima com o que diz respeito à doença de Alzheimer, registro algumas impressões da trajetória até então vivenciada. Muitos rostos, semblantes, imagens, emoções, sensações e sentimentos compõem e integram esse álbum de recordações, no qual minha mãe ocupa o lugar de destaque.
Dentro desse contexto, a pessoa do cuidador desponta como personagem relevante, pois muito do tempo dedicado ao portador, acontece ao seu lado. Anas, Marias, Luisas, Ninas, Cidas, Franciscas, Martas e tantas outras se encaixam nessa função de cuidador, que podemos considerar como nova na sociedade brasileira, sendo notória a presença predominantemente feminina.

Nesse âmbito, sabemos que há muito para ser realizado, cursos a serem promovidos em continuidade aos que já têm sido desenvolvidos, com foco na questão do autoconhecimento e aquisição de outros saberes especializados. Importante demonstrar sobre a necessidade de um perfil específico para o exercício deste trabalho, já que persiste uma ideia ingênua de que, para ser cuidador, basta gostar do idoso. Esse requisito é bem-vindo, desde que complementado por outros que se encaixam nas exigências de capacitação para tal função.

Também vivenciamos a experiência de novos arranjos familiares e domésticos e, com eles, aprendemos e apreendemos situações com reações bastante diversas. Gente convivendo com gente que traz, nas suas histórias, bagagens diferentes, impregnadas de valores e significados, pondo-nos à prova, cotidianamente.

Nesse fluxo, sinalizo que, quando discutimos sobre a doença de Alzheimer, e suas implicações, o adjetivo cruel encaixa-se com adequação. No seu enfrentamento surgem as limitações dos envolvidos, direta e indiretamente, às exigências e especificidades da patologia. As fragilidades ficam expostas, visões simplistas e instantâneas são elaboradas para minimizar impotências individuais e coletivas. Um exemplo disso consiste na afirmação de que o portador nada sente e que, por isso, não existem motivos para modificar uma rotina estabelecida.

Na contrapartida, sempre se destaca uma pessoa que se responsabiliza pela estrutura, com envolvimento e comprometimento, assumindo o seu comando. Pessoa esta que, se revestida de vontade e propósito, obterá aprendizado e instantes de criação no ciclo inaugurado. Em paralelo, aparecem as frustrações, desencantos e outros sentimentos previsíveis no processo. Inclusive, com períodos em que sair de cena significa autoproteção, fortalecimento, respeito e renovação de energias para dar seguimento ao ato de cuidar e de se cuidar.

No passar dos meses, efetuamos várias adaptações, buscando obter posturas adequadas a elas. A dependência se intensificou, objetos desconhecidos foram introduzidos na rotina diária, como no caso da cadeira de rodas, a cama hospitalar, o colchão casca de ovo, os canudinhos para a ingestão de líquidos em geral, a colher, todos como elementos auxiliares na qualidade de vida da minha mãe. Nela, o fator segurança tem primazia sempre! E a manutenção de uma rotina voltada para sua saúde e conforto tem sido o foco principal.

Nessa direção, a oralidade tem sido estimulada nas suas diversas manifestações: conversas curtas, com dicção clara e simples, frases pequenas, continuamente sedimentadas nos seus aspectos positivos. O passado da minha mãe tem sido revisitado todos os dias, pois o repertório de lembranças diminui. Com ele, buscamos o que ainda se encontra preservado, que pode ser encontrado nas evocações da sua infância e de todos os seus protagonistas.

O velho aparelho de som permanece e perpassa todas as mudanças efetuadas até então. Ouvir canções do seu tempo tem se revelado uma atividade constantemente prazerosa E, ao som de canções como Índia, Maringá, Luar do Sertão, e outras, assistimos a alegria manifestada na sua expressão e participação. Em dias ensolarados, passeamos, contemplamos os monumentos do entorno, o céu, as árvores e, nelas, acompanhamos os ciclos das estações do ano. Os ipês, orquídeas, rosas, cravos e outras espécies de flores têm sido admirados, frequentemente, nos passeios que realizamos.

O aniversário da minha mãe se aproxima e me emociono muito quando abordo sobre este evento para ela, que, com o vocabulário e som possíveis, escolhe o bolo de chocolate com cobertura entre as opções que lhe ofereço para celebrarmos a data.

Pondero que na trajetória construída até o momento, o tripé possibilidade, aprendizado e crescimento tem se mantido vigoroso e vivo na relação com minha mãe querida.

Hoje, o que possuo como resposta materna reside na vitalidade e força do seu olhar que me acompanha, nos dias em que a voz não consegue ser pronunciado, o sorriso sereno esboçado na minha chegada e partida, o aceno de mão, e as bênçãos possíveis. Também, o calor do abraço no qual só os meus braços se mobilizam. Mais ainda, o nosso amor terno e eterno, entrecortado pelo silêncio que traduz as nossas vozes de tempos atuais, idos e vindouros!".
(Vera Helena Zaitune)

segunda-feira, 13 de junho de 2016

DIAGNÓSTICO: ALZHEIMER - RELATO




"Quis respirar fundo e não consegui. Tinha as mãos do mundo todo a sufocar-me, e sentia a ausência de um suporte para os meus pés. Passou pela minha memória uma série de sinais estranhos, que eu vinha observando nos últimos meses. Mais grave que os desequilíbrios sucessivos, falhas de memória, desorientação espacial, afigurava-se o meu registro, o olhar demente com que um dia, me fixou o rosto, no meio de um sorriso sem controle.

Os seus olhos amendoados, com a íris entre o verde-azeitona e o castanho claro, que aconchegavam a minha existência, que me davam segurança, quando menina, e que julgara eternos, pousaram em mim sem nexo, sem lógica, sem profundidade, descoordenados do pensamento, descontextualizados de tudo e de nada, despropositados, dementes, perdidos da postura racional e coerente de toda uma vida.

O meu cordão umbilical foi violentamente cortado nesse instante, e sangrei … sem qualquer intimidade, sem preparativos, sem cuidados assépticos, na presença de todos, completamente alheados, da gravidade da situação. Um dia após outro, a perda da atividade, de faculdades, de afetos, entrelaçava-se, com perda sucessiva do ser humano que me gerou, progressivamente incapaz de exercer autocrítica, de tomar decisões de se organizar minimamente, e eu incapaz de me reorganizar, de estabelecer metas e objetivos, de renovar afetos, fortalecer empatias …

A autonomia, passou lentamente a dependência total. A frescura da minha conduta converteu-se em amargura constante. Os afetos formais foram-se desconstruindo, desmaterializando, numa dialética estranha de viver, perseguindo teimosamente um rumo com sentido negativo de involução.

Os papéis, estranhamente inverteram-se; de protegida passei a protetora, sem a mínima preparação, não conseguindo vestir bem essa roupagem, que assistia ao esvaziar de conteúdos de uma alma, que eu julgava e queria crer como inalterável.

As perdas sucessivas caracterizavam-se por uma bilateralidade de proporcionalidade inversamente descontrolada, tocando-se por vezes num eixo de simetria que eu tinha dificuldade em sustentar, levando-me a cometer erros de avaliação, permanentes e insuportáveis.

A minha sobrevivência diária a depressão, verifica-se apenas pela impossibilidade de enveredar por esse caminho. Nem esse caminho me restava.

Cada dia se tornou mais cinzento que o anterior, numa paleta monocromática, onde cada vez mais, predominava a ausência de luz, numa existência cada vez mais vegetal e dependente. Os negros cada vez mais negro ou vice-versa …, e a primavera não despontou durante seis longos e marcantes anos, que se converteram em décadas de sofrimento, de perdas irrecuperáveis, num processo impossível de inverter, sem fim determinado, que nos invadia até aos ossos, até a alma, até ao centro dos nossos centros.

O olhar … esse passou a ser de um estranho, mudou de cor, de forma, de tamanho, de textura, de tempo, de amplitude, de configuração…., e um dia gelou-me os dedos de mão, com a rigidez marmórea do último dia".
(Anabela Quelhas).

domingo, 5 de junho de 2016

REALIDADE - ALZHEIMER : TEMPESTADE, AREIA MOVEDIÇA, CICLONE ...


Os avanços da medicina conferem aos seres humanos uma expectativa de vida cada vez maior. Todos querem viver mais, viver bem, viver com integridade. Todos querem chegar a idades avançadas com suas capacidades de pensar, sentir e agir preservadas e íntegras.

São os momentos mais simples e inesperados que queremos guardar para sempre. São as imagens de rara beleza ou emoção aquelas que instantaneamente o nosso cérebro registra fotograficamente, e arquiva no infinito “disco rígido” da memória humana. Recordações que, no final de uma vida, constituem a história de cada um de nós. E sem as quais perderíamos o sentido da vida. Instantes em que queremos guardar para sempre, quase sempre ligados à infância e à família. Ao amor. Aos outros em nós.

A memória pode ser manipulada e expandida. Recordar é, em grande parte, reinventar, reorganizar nosso passado e inseri-lo em uma narrativa que compõe nossa subjetividade. Não há ninguém de nós que esteja preparado para apagar suas memórias, suas conquistas afetivas e cognitivas como se fossem um texto provisório traçado a lápis. 

Queremos nossa história alicerçada e protegida em solo firme e seguro. Queremos nosso passado bem guardado, a salvo de ser tragado pela areia movediça do esquecimento, ou seja, pelo Alzheimer.

E quando isso acontece... Esse mal estranho nos causa medo porque atinge nosso fundamento e nosso indivíduo: nosso espírito, nosso discernimento, nossa identidade. A doença se nutre de tudo, engolindo com ela as lembranças de uma vida. Tudo se torna diáfano: um esquecimento de si, uma dissolução existencial.

É nesse sentido que o Alzheimer se torna muito mais devastador do que a doença do esquecimento. Ele compromete a coerência necessária para que tenhamos um “self” e, com isso, faz que a própria subjetividade entre em colapso.

Minha amada mãe está sendo cada dia mais tragada pela areia movediça do esquecimento. O fluxo de suas memórias está cada vez mais acelerado para um vazio total. Elipses temporais, já não consegue diferenciar entre o passado, presente e futuro. O tempo começou a se fundir em uma única peça. 

O Alzheimer vem para ficar, permanece com as famílias, marcando suas vidas e tomando cuidado para que você nunca se esqueça o caos que esta doença faz ao nosso amado (a) e em nossos corações. É como a chegada de um ciclone (tempestade, vendaval, areia movediça, ….), mudando totalmente a rotina dos familiares: seu cotidiano, seus projetos e sonhos, se os tem, são mexidos e remexidos não deixando pedra sobre pedra. Modifica o espaço físico e temporal e tonteia fortemente o psiquismo. Os afetos são “bulidos e remexidos”.

Há uma frase que eu admiro e amo: “Deus nos deu memórias para que pudéssemos crescer flores no inverno de nossas vidas”. Para um doente de Alzheimer é sempre inverno, por isso temos de tentar ser um pequeno raio de luz, regando aquelas flores que não podem crescer”.
Como te amo amada mãe.

A MENTE HUMANA É COMO UM PÊNDULO

    

" A mente humana é como o pêndulo de um relógio, que flutua entre a razão e a emoção. A nossa capacidade de tolerar, de empatizar, de nos entregarmos, de nos divertirmos, de intuir, de sonhar, é uma das maravilhas que surgem deste complexo movimento. O amor é o seu melhor fruto. Cuidado com os desvios desse pêndulo."
(Augusto Cury)