quarta-feira, 20 de maio de 2015

ALZHEIMER

A criatura vivia escondida num canto muito escuro, muito ermo, muito esquecido. Já há tanto tempo morava ali, abandonada, sozinha, sem voz, sem expressão, que não se lembrava sequer de outra realidade. Devia ter nascido naquele lugar, pois nem ao menos sonhava com uma mudança, não morria de tristeza pela sua condição, não era desejosa de uma existência diferente. Se algum dia já teve um nome, não se lembrava. Aceitava naturalmente as coisas como elas eram porque desconhecia outras possibilidades. 
Até que um dia uma porta se abriu. Uma porta que estava ali o tempo todo, mas nunca havia sido notada, já que a criatura não imaginava para que serviam as portas. E com a abertura da porta surgiu um mundo novo. E a criatura sentiu curiosidade pela primeira vez na vida e, movida por esse sentimento, atravessou a porta e explorou o novo mundo, tão mais interessante que o seu canto habitual. E por um tempo ela foi feliz. E com a felicidade surgiu a esperança de encontrar uma outra porta, outra passagem, outra possibilidade. E ela veio. 
Num momento, numa hora qualquer, eis que outra porta se abriu. O novo mundo que se mostrava era muito maior, mais bonito, mais aconchegante, mais interessante. E a criatura explorou seus domínios, já ansiosa de encontrar outra saída. Existiriam outras criaturas? Existiriam outras possibilidades? Começou a se lembrar de um outro ser, muito vagamente, e percebeu que aquele ambiente não era totalmente desconhecido. Um sentimento de vitória explodiu dentro de si quando percebeu que, de alguma maneira, sabia onde estava a saída daquela prisão. 
Não foi difícil encontrar a outra porta. Ela estava muito bem escondida, mas achou-a com tanta facilidade que é como se o caminho estivesse gravado em sua memória desde tempos remotos. O novo ambiente era ainda mais familiar. E foi ali que uma lembrança surgiu em sua mente. Ela se lembrou de uma casa. Uma casa onde morava uma família. Uma casa que era verdadeiramente um lar. Como tinha se esquecido disso? Como podia ter perdido essa imagem tão valiosa? Com passos rápidos seguiu diretamente para a próxima porta, já tão mais visível que suas antecessoras. 
Entrar no próximo cômodo foi como despertar para a vida. Mil memórias invadiram seu ser. Como pôde esquecer da sua família? Como pôde esquecer do seu próprio nome. Como pôde esquecer das únicas coisas que importavam? 
O caminho agora era claro. Ainda existiam muitas portas para serem cruzadas, mas sabia exatamente para onde direcionar seus passos. Desatou a correr e a abrir passagens... inúmeras... e a cada caminho aberto, uma nova revelação. Seu marido, seus filhos, seus netos, seus bisnetos... as imagens de todos eles surgiam à sua frente. (Mais uma porta). Seus amigos mais queridos, uma fazenda, uma música tão familiar. (Mais uma porta). O dia do seu casamento, a primeira gravidez e tantas outras que vieram depois, as viagens num carro antigo verde-e-branco, uma casa com jardim numa cidade do interior. (Mais uma porta). Sua mãe, que morreu tão velhinha, tão lúcida. Uma filha, que morreu de meningite. Rosas num quintal, missa de domingo, rancho no jardim. (Muitas portas). 
Até que soube que o caminho estava quase no fim. Só restava mais uma porta. Enquanto se dirigia a ela, tentava se lembrar porque estava ali. Porque abandonaria uma vida tão completa. Porque desistiria de tudo e de todos para viver esquecida, num canto, sem consciência, oca por dentro. Mas a resposta com certeza estaria lá, do outro lado da porta que estava tão próxima. E então ela estaria ciente de tudo. E então ela estaria de volta à vida. E então ela saberia o que aconteceu. 
Atravessou a porta com um misto de ansiedade e medo. Piscou algumas vezes. Percebeu que não estava mais naquele labirinto. Reconheceu o quarto. Seu quarto! Sua casa! Seu lar! Sua vida! A explosão de sentimentos encheu seu coração. Mas algo estava muito, muito errado. Percebeu o soro pingando, a cama de hospital, o corpo dolorido, tão magro, inerte. Conseguiu balbuciar uma frase. Então, compreendeu que não estava sozinha. Nunca esteve. Na caverna da sua mente algo espreitava. Lembrou-se da doença no momento em que a coisa escura tão odiada estendia os seus braços e a empurrava, vertiginosamente, de volta para aquele canto muito escuro, muito ermo, muito esquecido. 
Ao seu lado, a enfermeira percebeu quando os olhos daquela senhora, há tantos anos doente, recuperou um brilho momentâneo, como se tomando ciência do mundo. Ouviu-a murmurar “Onde está Ele?” e então voltaram ao mesmo torpor de sempre.
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