A criatura vivia escondida num
canto muito escuro, muito ermo, muito esquecido. Já há tanto tempo
morava ali, abandonada, sozinha, sem voz, sem expressão, que não se
lembrava sequer de outra realidade. Devia ter nascido naquele lugar,
pois nem ao menos sonhava com uma mudança, não morria de tristeza pela
sua condição, não era desejosa de uma existência diferente. Se algum dia
já teve um nome, não se lembrava. Aceitava naturalmente as coisas como
elas eram porque desconhecia outras possibilidades.
Até
que um dia uma porta se abriu. Uma porta que estava ali o tempo todo,
mas nunca havia sido notada, já que a criatura não imaginava para que
serviam as portas. E com a abertura da porta surgiu um mundo novo. E a
criatura sentiu curiosidade pela primeira vez na vida e, movida por esse
sentimento, atravessou a porta e explorou o novo mundo, tão mais
interessante que o seu canto habitual. E por um tempo ela foi feliz. E
com a felicidade surgiu a esperança de encontrar uma outra porta, outra
passagem, outra possibilidade. E ela veio.
Num momento, numa hora
qualquer, eis que outra porta se abriu. O novo mundo que se mostrava
era muito maior, mais bonito, mais aconchegante, mais interessante. E a
criatura explorou seus domínios, já ansiosa de encontrar outra saída.
Existiriam outras criaturas? Existiriam outras possibilidades? Começou a
se lembrar de um outro ser, muito vagamente, e percebeu que aquele
ambiente não era totalmente desconhecido. Um sentimento de vitória
explodiu dentro de si quando percebeu que, de alguma maneira, sabia onde
estava a saída daquela prisão.
Não foi difícil encontrar a outra
porta. Ela estava muito bem escondida, mas achou-a com tanta facilidade
que é como se o caminho estivesse gravado em sua memória desde tempos
remotos. O novo ambiente era ainda mais familiar. E foi ali que uma
lembrança surgiu em sua mente. Ela se lembrou de uma casa. Uma casa onde
morava uma família. Uma casa que era verdadeiramente um lar. Como tinha
se esquecido disso? Como podia ter perdido essa imagem tão valiosa? Com
passos rápidos seguiu diretamente para a próxima porta, já tão mais
visível que suas antecessoras.
Entrar no próximo cômodo foi como
despertar para a vida. Mil memórias invadiram seu ser. Como pôde
esquecer da sua família? Como pôde esquecer do seu próprio nome. Como
pôde esquecer das únicas coisas que importavam?
O caminho agora
era claro. Ainda existiam muitas portas para serem cruzadas, mas sabia
exatamente para onde direcionar seus passos. Desatou a correr e a abrir
passagens... inúmeras... e a cada caminho aberto, uma nova revelação.
Seu marido, seus filhos, seus netos, seus bisnetos... as imagens de
todos eles surgiam à sua frente. (Mais uma porta). Seus amigos mais
queridos, uma fazenda, uma música tão familiar. (Mais uma porta). O dia
do seu casamento, a primeira gravidez e tantas outras que vieram depois,
as viagens num carro antigo verde-e-branco, uma casa com jardim numa
cidade do interior. (Mais uma porta). Sua mãe, que morreu tão velhinha,
tão lúcida. Uma filha, que morreu de meningite. Rosas num quintal, missa
de domingo, rancho no jardim. (Muitas portas).
Até que soube que
o caminho estava quase no fim. Só restava mais uma porta. Enquanto se
dirigia a ela, tentava se lembrar porque estava ali. Porque abandonaria
uma vida tão completa. Porque desistiria de tudo e de todos para viver
esquecida, num canto, sem consciência, oca por dentro. Mas a resposta
com certeza estaria lá, do outro lado da porta que estava tão próxima. E
então ela estaria ciente de tudo. E então ela estaria de volta à vida. E
então ela saberia o que aconteceu.
Atravessou a porta com um
misto de ansiedade e medo. Piscou algumas vezes. Percebeu que não estava
mais naquele labirinto. Reconheceu o quarto. Seu quarto! Sua casa! Seu
lar! Sua vida! A explosão de sentimentos encheu seu coração. Mas algo
estava muito, muito errado. Percebeu o soro pingando, a cama de
hospital, o corpo dolorido, tão magro, inerte. Conseguiu balbuciar uma
frase. Então, compreendeu que não estava sozinha. Nunca esteve. Na
caverna da sua mente algo espreitava. Lembrou-se da doença no momento em
que a coisa escura tão odiada estendia os seus braços e a empurrava, vertiginosamente, de volta para aquele canto muito escuro, muito ermo,
muito esquecido.
Ao seu lado, a enfermeira percebeu quando os
olhos daquela senhora, há tantos anos doente, recuperou um brilho
momentâneo, como se tomando ciência do mundo. Ouviu-a murmurar “Onde
está Ele?” e então voltaram ao mesmo torpor de sempre.
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