quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O PASSADO ESFARINHADO

 

 " Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo" 
(George Santavana)

" A nossa duração não é apenas um instante a seguir ao outro; se fosse, nunca haveria mais nada além do presente - nenhum prolongamento do passado na atualidade, nenhuma evolução, nenhuma duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que morde o futuro e vai inchando à medida que avança. E, como o passado cresce sem parar, não há nenhum limite à sua preservação".

As palavras acima foram proferidas pelo filósofo e  prêmio Nobel de 1927, Henri Bergson. Dentro do conceito de duração o passado coexiste com o presente. O tempo vivido não se confunde com o tempo cronometrado dos relógios, sequer tem ele a mesma regularidade. Podemos, inclusive, tecer distintos tempos: o tempo da natureza e o tempo da alma. O último é, por excelência, um tempo subjetivo. 

Por isto inclino a pensar no que escreve o também filósofo e escritor André Comte-Sponville:

 " é por isso que há um tempo para a espera e outro para a saudade, um tempo para a angústia e outro para a nostalgia, um tempo para o sofrimento e outro para o prazer, um tempo para a paixão e outro para a união, um tempo para ação ou para o trabalho, outro ou vários, para o descanso".

Objetivamente poder-se-á dizer que o passado é a parte do tempo que se refere ao período anterior ao tempo presente. Objetivamente o tempo pertence a todos. Já subjetivamente, podemos dizer que o passado é o tempo que não passa. O tempo subjetivo é, portanto, o tempo da intimidade que pertence a cada sujeito, que embora conviva com outros sujeitos o tempo subjetivo de cada um é não compartilhável enquanto temporalidade psíquica e pessoal. 

Humanamente o passado está intrinsecamente relacionado  à memória. E porque temos memória, assim como percebemos o caminhar dos dias e sonhamos com o amanhã, é que o ser humano é um ser absolutamente mergulhado na temporalidade. Passado e memória, um não existiria subjetivamente sem o outro, pois ambos estão entrelaçados e ambos são indissociáveis.

O passado não passa porque temos memória. O passado não passa porque o presente é consequencial. Nosso passado de hoje - que já foi o presente de ontem - foi como aquela pedrinha lançada em um lago cujo impacto gerou ondulações circulares que se propagaram pela superfície. Sim, nossas vidas são um grande e enorme lago existencial. 

O presente de ontem movimenta o presente de hoje, assim como o presente de hoje move o presente do porvir. O passado está, pois, embutido no presente, afinal o presente de agora foi construido de vários e incontáveis instantes que no instante imediato são passados. Inexiste presente sem passado. 

Nisto reside, por exemplo, a força destes versos do notável poeta americano, T.S.Eliot, retirado do poema East Coker:

" Em meu princípio está meu fim. Umas após as outras 
As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas,
Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu ligar
Irrompe um campo aberto, uma usina, um atalho.
Velhas pedras para novas construções, velhos lenhos para novas chamas,
Velhas  chamas em cinzas convertidas, e cinzas sobre a terra semeadas,
Terra agora feita carne, pele e fezes,
Ossos de homens e bestas, trigais e folhas.
As casas vivem e morrem: há um tempo para construir
E um tempo para viver e conceber.
E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças
E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre
E sacudir as tapeçarias em farrapos tecidas com a silente legenda"

     

Há passados que se tornam lembranças. Há passados que se esquecem. Há passados que cicatrizam o corpo e a alma. Há passados que não se superam e que ficam como se fossem eternos. Lembranças, cicatrizes e esquecimentos, corpo e alma, fazem parte do baú de quem somos. Relembrando ou não somos sempre feitos com barros de outrora. 

Assim é criada e feita a nossa história, e não há pessoa, personalidade ou identidade sem história. Todavia, o que nos importa é o passado que não vira memória, que por não ter sido digerido permanece vivo e incomodamente no atual. É um passado que não se transformou ainda em passado.

Passado, como palavra, vem do latim "passus" (passo). Daí a ideia da existência como um caminhar, passo a passo, até o "praesens" (presente). "Praesens", por sua vez, como termo também latino se origina de "praeesse", que significa estar à frente, estar à mão. Porém, quando o passado vira um "passus aetermus", o que está a nossa frente é o nosso atrás.

Somos feitos de aniversários. Mas os anos dentro de nós não se acumulam sobrepostamente, porém se misturam, amalgamam-se  e se  embolam em uma massa ajuntada e disforme que chamamos de mente. Em qualquer tempo, em qualquer hora, em qualquer momento, o passado nos influencia, mas é no presente que ele toma forma e se referencia. O presente não é uma fronteira que se separa o fim e o início de dois tempos, como se fatiássemos o bolo dos nossos dias. O bolo somente apaga quando se apaga a vela do último instante da vida.

Há passado que vai... há passado que fica. Assim como há passado que se lembre e há passado que se dói. Seja lá como for, o que seria do passado se não houvesse o presente? 

Ou como poetiza Fernando Pessoa:  

" Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia".

(http://literalmente-literalmente.blogspot.com.br)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

CRÔNICA DE UMA FILHA QUE PERDEU A MÃE PARA O ALZHEIMER

Virar mãe de nossas mães talvez seja uma das experiências mais dolorosas da vida. Nada, mas nada mesmo, nos prepara pra isso. Passar a ser a protetora de quem nos protegia, assumir a tutela de quem nos amparava: é todo um script que tem de ser refeito, todo um roteiro a ser recriado. Eu acompanhei a perda gradual de lucidez da minha. São dores diferentes, mas vividas com a mesma intensidade. E quantas mulheres passam por essa orfandade precoce, esse ensaio da perda, ou essa morte antes da morte, quando tudo em nós diz que ainda somos filhas.

Nunca vou me esquecer de uma tarde em que eu estava lendo no quarto da minha mãe e ela pediu que buscasse um café na cozinha. Quando voltei com a xícara de café, ela estava chorando, aquele choro que faz sacudir o corpo todo, e começou a me perguntar repetidamente onde é que a gente estava, que lugar era aquele que ela não conhecia, e me pedia, com uma tristeza tão profunda que parecia uma dor física: “Me leva para a minha casa, minha filha… Me tira daqui…”. Eu explicava que ali era a casa dela, mas não adiantava.

Aí, tentei dizer que mais tarde eu levaria, mas, com a tristeza cortante na voz, ela voltava a pedir: “Me leva agora…Eu não agüento mais ficar aqui”. Ela queria uma casa que já não existia. Eu queria a mãe que já não havia. E ficamos ali chorando,as duas, desconcertadas e impotentes diante do que não fazia sentido, ensaiando palavras que não diziam nada e depois nos encontrando no silêncio.

O nosso cotidiano: pentear seus cabelos, convencê-la a trocar o vestido com manchas de café, lembrar a hora de tomar o remédio, lembrá-la de sentir sede, lembrar o aniversário dos filhos e o próprio aniversário, lembrar, lembrar… E eu me obrigava a esquecer que ainda precisava tanto dela, que suas palavras, sempre precisas e justas, tinham deixado de pontuar minha vida e que sem elas eu me via sem mapa e sem rumo.

Ah, que falta ela já me fazia então e que falta que ela me faz hoje… Não consegui desaprender o papel de filha a tempo e hoje tenho saudades de ser, a um só tempo, sua filha e sua mãe. Já peguei o telefone tantas vezes para falar com ela depois que ela se foi. Já entrei numa loja de aeroporto para comprar um presente para ela e saí atordoada quando me lembrei que já não haveria presentes. Penso em contar tantas coisas para ela, penso em fazer uma mágica qualquer e dar a ela a neta (minha filha) que ela não teve. Seria tão bom estarmos as três juntas… Esta mãe que eu amava tanto e esta filha que não houve, mas que eu sei que amaria mais que tudo… conversando, rindo, tomando café, falando de alegrias, de perdas, de amores…Porque a gente falava de tudo. A gente sentia, ria e chorava juntas. E com a minha filha também seria assim.

As perdas nos deixam sem ar, sem ter onde pisar – e dói o mesmo tanto perder o que tivemos e o que nunca chegamos a ter. Uma perda nos arranca o passado. A outra nos rouba o que viria. Resta o presente, claro, e é nele que temos que viver. Aproveitar o momento.

Continue sonhando desavergonhadamente com o amor. Há sonhos que são delírios. Este não. Você ainda vai encontrar mãos que passearão sem pressa por suas tatuagens, segurar amorosamente as mãos do seu filho e envelhecer juntinho das suas.

Eu vou continuar sonhando com a leveza que vem da ausência do medo. Nossas mães estão nos olhando, de onde estiverem. Voltaram a ser mães, tenho certeza, e vão nos ajudar a encontrar o caminho.
Trecho do livro “Que ninguém nos ouça”, de Leila Ferreira e Chris Guerra, Editora Planeta

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

CUIDE-SE CUIDADOR. CUIDE-SE!

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Assim como a criança chega ao mundo ‘de corpo e alma’, praticamente sem entender nada, porque entender é uma função cognitiva, ligada ao desenvolvimento das áreas racionais, do pensamento humano, um paciente com Alzheimer – desde a fase inicial da doença – passa a não entender mais, algumas coisas. Daí que começa a agir diferente e nem sabe explicar o porquê das suas mudanças. Parece ficar ‘mais implicante’ e menos atento. Como se diz, torna-se uma pessoa ‘mais difíceis’ de lidar.

Esta é uma transformação que vai se instalando gradualmente, na medida em que a doença progride. Mas não se trata de uma progressão linear. Ela acontece ‘aos saltos’. E, também suas manifestações oscilam, o que leva a mudanças de estado de humor ‘sem causa aparente’, parecendo ‘birra’.

Isso confunde muito aqueles que convivem com o paciente, porque ‘nunca sabem o que vão encontrar’ pela frente. O que foi feito de acordo ontem, hoje poderá gerar uma briga e, mais tarde tudo volta ao normal. Então, causa a impressão de que o paciente está querendo provocar, que está ‘fazendo de propósito’, que quer nos testar, que está manipulando. Além disso, o paciente pode achar divertidas, as nossas reações e, é aí que entorna o caldo.

O que é preciso entender de uma vez por todas – mas esta é uma forma de falar, porque leva um bom tempo até que se entenda – é que o cérebro dessa pessoa não está mais funcionando como funcionava antes. E daqui para frente, o doente vai surpreender cada vez mais. E isso vai requerer uma longa aprendizagem da parte daqueles que cuidam.

Uma das valiosas dicas: reaprenda a linguagem emocional. Este vai ser um grande trunfo em suas mãos para poder cuidar sem se estressar tanto. Lembre-se de que, ao perder parte de suas funções cognitivas, o doente de Alzheimer vai passar a reagir – e a agir – mais intuitiva e emocionalmente. Assim como os bebês captam desde cedo as emoções dos pais, os doentes de Alzheimer vão captar mais apuradamente as intenções dos filhos. Dos seus cuidadores.

Você poderá represar sua raiva. Mas o doente vai captar a sua raiva e, pior, vai pensar que é dirigida a ele e sentirá medo. Oras, o que uma pessoa com medo faz? Ou ataca ou se encolhe. De alguma forma, a pessoa tenta fugir da situação. Se a pessoa ataca, você vai sentir mais raiva ainda. Se ele se encolhe, você vai tentar ‘tirá-lo’ da toca, do seu mutismo, de sua recusa a fazer as coisas que você quer que ele faça e que, na maior parte das vezes, ele precisa fazer. Mas não na hora, nem do jeito que você escolheu que ele faça.

E como a pessoa vai fugir? Sua atenção vai derivar ainda mais, poderá ficar alheada e parecer não entender nem colaborar com mais nada. Difícil? Sim, muito difícil. Então, não adianta tentar esconder a raiva na frente dele, porque as emoções são vibrações que se transmitem à distância. Nosso corpo vibra e a mente do doente capta. Isso não quer dizer que o paciente voltou a ser criança, mas que passou a utilizar-se dos mesmos mecanismos intuitivos e sensíveis que, desde bebês todos usamos. É com estes mesmos mecanismos que começamos a decifrar o mundo e as nossas relações com as coisas e, principalmente, com as demais pessoas.

É assim com os doentes com Alzheimer. Reagem com seus sentidos, mais do que com seus pensamentos. Respondem mais ao conteúdo emocional das nossas falas, dos nossos gestos, das nossas intenções, do que àquilo que conversamos. Nossas palavras deixarão de fazer sentido, mas nossos gestos, nossos afetos impressos no tom nossa voz serão logo decifrados. E quanto mais a doença avançar, mais assim será. Sua vulnerabilidade crescente será também a sua força crescente sobre nós.

E, com certeza, o paciente de Alzheimer vai espelhar muito da sua pessoa! Você vai aprender mais sobre você própria. Ou próprio. Você será chamada a ser gentil, quando desejaria esganar. Será chamada a ser paciente, quando estará morrendo de pressa. Será chamada a ser muito mais respeitosa, quando você gostaria é de resolver tudo logo, de uma vez e sem consultar ninguém. 

Isso assusta muito. Você também terá que ser mais intuitiva. O paciente estará desesperadamente sofrendo o desgaste, a falência de suas capacidades: de se comunicar, de pronunciar o nome correto das coisas que deseja dizer ou demonstrar. Suas frases serão interrompidas pela fuga de suas ideias. Seus gestos serão mais duros e desastrados e, chegará um dia em que as mãos dessa pessoa deixarão de saber de acariciar. Seus lábios não mais irão sorrir e ela, ou ele, deixará até de saber engolir.

Você vai se sentir só e abandonada. E vai brigar com o mundo e com Deus, também. Vai se sentir pequenininha e carente, sem ter com que dividir. Por que somente aqueles que passam e passaram por isso, sabem do que você vive e sente. Sabem da perplexidade e da desolação causada em seu peito e em sua mente. De suas horas de silêncio, cansaço e agonia pela brutalidade da doença e pela vulnerabilidade daquele de quem você cuida ou cuidou.

Você terá sido tudo para aquela pessoa, assim como a mãe é tudo para seu bebê. Você terá sido empossada de todos os poderes, porque você terá o paciente, seja quem for em suas mãos. Você poderia tê-lo envenenado. E não o fez. Você poderia tê-lo empurrado escada abaixo. E não o fez. Você poderia tê-lo abandonado sujo, sob o sol ou ao relento, mas você o trouxe para dentro. Não só de volta a casa, mas para dentro de si.

Você terá aprendido a amar, tanto quanto a odiar. A aceitar, tanto quanto a se revoltar. A implorar por novas forças, tanto quanto a querer sumir. Terá tocado todas as notas e cores do amplo espectro das emoções humanas. E terá elegido aquelas que têm significado e propósito para você. E sairá desta louca experiência muito mais sábia do que jamais imaginaria. Nem tudo são flores, mas nem tudo são horrores. Seja cuidadosa com o paciente, que estes cuidados também se voltarão para você. Cuide-se, cuidador. Cuide-se.
(Ana Fraiman)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

ENTARDECER




Era tarde de Domingo e no horizonte a policromia tomou conta da natureza, enfeitando-a com mesclas de vermelho, raios laranja iluminados, tons de cinza sisudo, e traços lilases. Era bonito de se ver aquele quadro em meio ao qual o sol se despedia. Deslizando para o outro lado da Terra, deixava a impressão de seu dever cumprido: havia iluminado o dia. A paisagem rapidamente se desfez e guardou o sol no manto da noite. É generoso o espetáculo que o entardecer proporciona. Sensibilidade, serenidade e intimidade, nos possibilitam descortinar a beleza do fim do dia, como também perceber as faces encantadas do final de um percurso.

O pôr do sol é bonito, porque é efêmero. Se fosse permanente nos cansaria. Nada permanece belo definitivamente. Tudo pede para terminar, até mesmo um beijo ardente. A vida pulsa em direção ao fim. Imaginemos por um instante, que o sol jamais vai se pôr, ou que nossa vida jamais terminará. Como nos comportaríamos, como nos sentiríamos em relação a este dia e-t-e-r-n-o e em relação à vida sem fim. O que neles poderíamos apreciar em sua definitiva repetição? É a alternância que nos possibilita tanto o amanhecer como o anoitecer. Assim também é a vida. Ela é bela em sua diversidade e temporalidade. É nessa provisoriedade que nos esforçamos para lhe dar sentido e estética.

A vida também entardece. Inevitavelmente caminhamos todos nessa direção, e, como o sol, nos guardaremos no manto da noite. A sombra que avança para a noite, nos dá notícia do tempo; do tempo que passou, e do tempo que está aí, diante de nós. Descobrir esse tempo tem algo de medo, mas também de parto, de nascimento. É no tempo que dispomos que teremos de construir sentido para nosso estar-no-mundo. Não importa quanto tempo teremos, importa torná-lo precioso. Isso se faz renascendo em direções cada vez mais humanizadas e significativas. O pôr do sol tem cheiro de saudade sim, mas é um privilégio ter do que sentir saudade. “O que a memória ama, fica eterno” diz Adélia Prado. Fica eternizado em nossa memória, aquilo que construímos amorosa, ética e dignamente em nosso existir.

Convivemos com o mito da “eterna juventude”. Esse mito nos aliena quando nos submetemos aos imperativos da cultura que superestimam o visual, o lado de fora, o padrão teen de ter um corpo jovem e bonito Mas, haverá uma “eterna juventude” interior se mantivermos uma atitude aberta para a vida, se renovarmos nosso gestual humano, se atualizarmos o gozo de estar vivos, se ressignificarmos sempre nossa presença no Mundo. É infinita a possibilidade de se rever os próprios gestos e crescer em sabedoria. Assim, o corpo pode estar maduro e portar uma alma menina. Essa vida interna é nutrida pelo encontrar-se e encontrar os outros, pelo produzir e participar da vida em sua diversidade.

Como o pôr do sol, o entardecer da vida pode ter muitos encantos. A construção que fizermos nessa passagem pela vida, é que dará sustentabilidade, alegria e beleza ao amadurecer. Isso não se improvisa, a gente constrói desde a infância, porque não há alegria do nada, mas do saldo de uma construção cuidadosa do sentido de nossa vida. Os valores que alicerçamos, darão tons poli crômicos com os quais poderemos colorir o envelhecer. Isso não significa ausência de sofrimentos e inquietações no trajeto do existir. No cenário do entardecer, o pôr do sol fica mais bonito quando há nuvens a transpor, o que lhe proporciona uma beleza inédita. Quanto mais nuvens, maior a beleza. As nuvens são como nossas angústias, elas apenas tentam anuviar nossa alegria, mas se tentarmos compreendê-las, se pudermos acolhê-las, se soubermos lidar com elas, aprenderemos a encontrar força e confiança para a experiência única e fantástica de estarmos no Mundo, de forma bonita, corajosa e construtiva.
(Texto da professora da Unicap, Amparo Caridade)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O PESO DAS MEMÓRIAS ESQUECIDAS

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Sento-me na raiz grossa da árvore que irrompe pela calçada até chegar ao degrau em que te sentaste. Vi-te de costas sentado, um cotovelo em cada joelho, o olhar que poderia adivinhar estar meio despercebido, com um sorriso inevitável debaixo do monte de barba de deixaste crescer. Poderia adivinhar tudo isso só de te ver de costas. 

Agora arranjaste uma nova, sacas do cigarro que escondes num frasco transparente e inspirar como se fosse ar do alto dos himalaias. O tempo para quando te posso olhar assim, certa de que sei o que se passa por detrás das tuas costas, incerta do que vai na tua cabeça. 

"Se soubesses o que me vai na cabeça, não teria piada", outro daqueles momentos em que não consigo disfarçar o encanto que tem ver a luz a refletir os teus olhos que ninguém sabe se são verdes, se são mel, se o que dizem. Dizes isto com o teu típico sorriso de entrega imensa sem te entregares a ninguém e voltas à tua posição de homem que caminha sozinho na vida.

Estou aqui ao lado. A ver-te caminhar sozinho pela vida, e como gosto desse teu caminhar. Da paz que tinhas há dois anos quando eras inocente, com menos mágoas no coração, com mais certezas que agora, gosto da paz que ainda transmites agora quando consigo ouvir a música que passa na tua cabeça. O dia é feito disto. 

Destes trinta minutos em que tentei abrir o coração sem saber para onde abria e destes trinta minutos que pude olhar para ti e viver a tua presença, a tua existência. O tempo é relativo quando existem forças mais pesadas que a gravidade que fazem o tempo mais pesado. Pesado porque fica marcado no coração e na memória. 

Como se a memória tivesse alzheimer e resta apenas o peso das vivências mais significantes. E, ao fim de dois anos, quando me lembro das memórias do alzheimer, lembro-me de ti. Lembro-me do meu coração quente, das minhas mãos a tremer, do sorriso que tento forçar e os olhos que tento fazer não brilhar quando penso em ti. 

Da alegria que me dá pensar que tive a oportunidade de estar contigo e ver-te crescer, ver que evoluis e não perdes a tua peculiar perfeição, não perfeição daquelas que são perfeitas, é uma perfeição à tua maneira. Porque perfeição que é perfeita não me faz amar-te e odiar-te ao mesmo tempo. Como me lembro de sentir o vento na cara e olhar para ti e estares pensativo, tinhas acabado de vir da terra, estavas tranquilo, encontrado contigo mesmo, sentado no sofá a aproveitar a brisa da noite como eu.

E também de quando consegues pegar em tudo o que tens e atirar ao ar como se fossem pedaços de papel rasgado, e consegues perder-te de ti próprio e afogares-te no teu riso viciado, aquele que te faz doer os abdominais mas nunca admitirias a ninguém porque não há abdominais mais fortes que os teus. 

Lembro-me daquele em que estavas com as mãos roxas a morrer de frio como sempre estás e te puseste a dançar como quem quer conquistar todo o ar que o rodeia. São estas as minhas memórias de alzheimer. Cada vez mais longe, algumas cada vez mais perto. Que não sejam só memórias daqui para a frente. Que não precise ter alzheimer para me lembrar do peso do amor que tenho por ti e que seja no agora que o sinta. Quem sabe, contigo. 
 http://romeoejulieta.blogs.sapo.pt/o-peso-das-memorias-esquecidas-2401

O TEMPO ESTÁ DOENTE

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Falta quase um dia para fazer 20 anos. Há 12 anos atrás estava a escrever este mesmo texto onde tropeçava por querer conhecer palavras para expressar a minha alegria e gratidão pela vida. Conseguia cheirar o papel, já sujo de pó, com suores de excitação por querer que o sol se pusesse e se levantasse e se pusesse e se levantasse para eu correr, que nem um cão pela areia molhada, pela vida e sentir o vento a passar, as minhas pernas a correr e o sorriso no seu limite, sabe-se lá pelo excesso de velocidade ou pela euforia.

A consciência apresentou-se cedo em mim. Veio como um senhor de gravata preta e um smoking branco com um ar gentil, muito alto e esguio. Apresentou-se com um guardanapo no braço fletido como que ao meu serviço. Qualquer criança faria o que eu fiz com a consciência, abracei-lhe as pernas, dada a limitação de altura, e tirei-lhe o guardanapo da curva do braço. Criava uma certa distância achava eu. Que senhor tão estático e formal, pensava eu. Vou mostrar-lhe que a vida é feliz, sorria-lhe eu. Lembro-me das primeiras vezes que caminhamos. Eu ia ao pé dele aos saltinhos meio enviesada porque queria olhar para ele enquanto o ouvia e enquanto lhe falava. 

Lembro-me de olhar para a frente volta e meia para ver se o caminho tinha pedras da calçada levantada e lembro-me de olhar para trás para ver se alguns daqueles ladrões com sacos na cabeça, que tinha ouvido falar havia pouco tempo, por acaso estavam interessados na nossa caminhada. 

Volta e meia, no intervalo destes desvios de diálogo, quando a consciência educadamente se retirava para ir fazer xixi, eu sentava-me no chão a observar a avenida e os pombos e as fontes e olhava para o sol. E o sol era como eu na altura, e eu era como o sol agora. Fechava os olhos e, na inocência da criança pensava 'não vou ser como a minha mãe, não vou ser como o meu pai, eu agora tenho a certeza de como o mundo é e vou pensar com muita força que a vida é feliz e é bonita e quando for grande vou acreditar em mim pequena', porque a certeza era o maior sinal de segurança e maturidade que o humano poderia ter. 

Tenho muito carinho a essa criança, volta e meia, quando me quero encontrar comigo própria, acabo sempre por chegar a ela. Sem rejeitar as vivências que tive até agora, sem rejeitar a consciência que me oferecer um smoking e um pano para pôr no braço fletido. Olho para essa criança e agradeço-lhe por ter tido tanta força. Essa criança é a minha mãe agora, a minha infância é o meu maior pai e educador

Nós crescemos para a imaturidade, crescemos sobre lotados de olhar sem qualquer tipo de consciência no essencial, sem saber, antes de procurar sentido nas coisas novas que nos apareceram na vida, que devemos procurar sentido em tudo o que sempre tivemos mas nunca fomos necessitados de o olhar e consciencializar de vários locais do espaço sem ser o de ator principal.

O mundo perde-se quando pensa que o mundo é complexo, que é complicado e difícil, que é demasiado maturo e sério para sequer ter uma intrínseca noção de que crescimento é reviver tudo o que se viveu antes mas com novos olhos. Tem que acabar por saber ao mesmo mas com olhos diferentes. É como mergulhar e vir à tona, mergulhar mais fundo e vir à tona. O pânico é sempre o mesmo, a sensação fresca do ar na pele molhada é sempre a mesma. Ou será de cada vez mais pânico? Não é suposto conseguirmos ter mais pulmões para aguentar mergulhar mais fundo e vir ao de cima com o mesmo alívio e prazer?

O tempo é o maior dogma humano. Assumimos que o tempo passa, que o tempo existe. Mentiras, todas mentiras. Todas um passo no abismo dos princípios de vivência. O tempo tem que ser jogado e manipulado, as mudanças ditam o tempo e não o tempo as mudanças. A maturidade não surge porque o tempo passou nem etapas surgem porque o tempo passou. O tempo é um argumento e uma escarra de desprezo que é gritada constantemente por todos. 

Se nos sentarmos na calçada da avenida a ver os pombos e as fontes ouvimos ao longe um velho a gritar 'tempo', ouvimos grupos de miúdas a rir e a sussurrar entre elas 'tempo, tempo, tempo', a mulher que escava a calçada com o seu salto pontiagudo tem 'tempo' escrito na testa. Aqueles que se amam não têm nada. 

Porque só se ama quem revive o mesmo vezes sem conta, como numa mente de um portador de alzheimer, e consegue extraír prazer pela milésima vez da mesma situação. Quem diria que o alzheimer era uma doença.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

FELIZ ANIVERSÁRIO MINHA MÃE

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Mais 01 aniversário com a minha amada mãe. Obrigada meu bom Deus! 86 anos.

Minha amada mãe na semana anterior ao seu aniversário, passou um susto em todos nós.

Dia 04/02, após dar o seu banho e levá-la para a higienização dos dentes, sentiu-se mal, perdendo os sentidos, não respondendo a nenhum estímulo. Foi um caos total, meu clamor solicitando ajuda para segurá-la e conduzi-la para uma cadeira. Após o seu retorno, totalmente aturdida, com crises de vômitos, levamos para a emergência hospitalar.

Ao chegar foi atendida por um Clínico Geral, que após o relato do ocorrido, suspeitou de um infarto. De imediato segui para sala de observação e a partir de então, submetida a uma bateria de exames. Como medida de precaução, o médico solicitou a sua internação para a UTI, onde seria monitorada.

Passou o final de semana realizando vários exames: tomografia, elétron, exames de sangue para identificar as enzimas e outros adicionais.  Visitas apenas em horários definidos pelo hospital, com um tempo muito curto. 

Após a permanência de 02 dias na UTI, foi conduzida para uma enfermaria, onde ficou por 04 dias, submetendo-se a exames diarios. Neste período estabelecemos um sistema de rodízio para os plantões no hospital.

Vários exames comparativos concluíram que não se tratava de um infarto. No final o médico mediante os exames realizados,  considerou que o que ocorreu com mãe, foi um “mal súbito”, tipo uma “síncope”. Recebeu alta, no entanto, contraiu uma “alergia de contato" na pele, sendo necessário tomar medicação específica para tanto. Sem contar com os hematomas e manchas nos braços em decorrência da medicação via soro e os exames de sangue a que foi submetida.

Ao receber alta, uma alegria incontida, tanto para ela como para todos nós. Um "Mimo só ". Passou a ter uma melhor alimentação, noites dormidas e muito carinho!

Como ela estava em processo de recuperação e ainda debilitada por conta do ocorrido, combinamos que a comemoração de seu aniversário seria em sua própria casa, e com a presença de poucos amigos e familiares realizamos um churrasco e cantamos o “parabéns” no final da tarde. Parecia uma criança, batia palmas e tentava cantar com todos!

Como te amo minha mãe!