Assim
como a criança chega ao mundo ‘de corpo e alma’, praticamente sem
entender nada, porque entender é uma função cognitiva, ligada ao
desenvolvimento das áreas racionais, do pensamento humano, um paciente
com Alzheimer – desde a fase inicial da doença – passa a não entender
mais, algumas coisas. Daí que começa a agir diferente e nem sabe
explicar o porquê das suas mudanças. Parece ficar ‘mais implicante’ e
menos atento. Como se diz, torna-se uma pessoa ‘mais difíceis’ de lidar.
Esta
é uma transformação que vai se instalando gradualmente, na medida em
que a doença progride. Mas não se trata de uma progressão linear. Ela
acontece ‘aos saltos’. E, também suas manifestações oscilam, o que leva a
mudanças de estado de humor ‘sem causa aparente’, parecendo ‘birra’.
Isso
confunde muito aqueles que convivem com o paciente, porque ‘nunca sabem
o que vão encontrar’ pela frente. O que foi feito de acordo ontem, hoje
poderá gerar uma briga e, mais tarde tudo volta ao normal. Então, causa
a impressão de que o paciente está querendo provocar, que está ‘fazendo
de propósito’, que quer nos testar, que está manipulando. Além disso, o
paciente pode achar divertidas, as nossas reações e, é aí que entorna o
caldo.
O
que é preciso entender de uma vez por todas – mas esta é uma forma de
falar, porque leva um bom tempo até que se entenda – é que o cérebro
dessa pessoa não está mais funcionando como funcionava antes. E daqui
para frente, o doente vai surpreender cada vez mais. E isso vai requerer
uma longa aprendizagem da parte daqueles que cuidam.
Uma
das valiosas dicas: reaprenda a linguagem emocional. Este vai ser um
grande trunfo em suas mãos para poder cuidar sem se estressar tanto.
Lembre-se de que, ao perder parte de suas funções cognitivas, o doente
de Alzheimer vai passar a reagir – e a agir – mais intuitiva e
emocionalmente. Assim como os bebês captam desde cedo as emoções dos
pais, os doentes de Alzheimer vão captar mais apuradamente as intenções
dos filhos. Dos seus cuidadores.
Você
poderá represar sua raiva. Mas o doente vai captar a sua raiva e, pior,
vai pensar que é dirigida a ele e sentirá medo. Oras, o que uma pessoa
com medo faz? Ou ataca ou se encolhe. De alguma forma, a pessoa tenta
fugir da situação. Se a pessoa ataca, você vai sentir mais raiva ainda.
Se ele se encolhe, você vai tentar ‘tirá-lo’ da toca, do seu mutismo, de
sua recusa a fazer as coisas que você quer que ele faça e que, na maior
parte das vezes, ele precisa fazer. Mas não na hora, nem do jeito que
você escolheu que ele faça.
E
como a pessoa vai fugir? Sua atenção vai derivar ainda mais, poderá
ficar alheada e parecer não entender nem colaborar com mais nada.
Difícil? Sim, muito difícil. Então, não adianta tentar esconder a raiva
na frente dele, porque as emoções são vibrações que se transmitem à
distância. Nosso corpo vibra e a mente do doente capta. Isso não quer
dizer que o paciente voltou a ser criança, mas que passou a utilizar-se
dos mesmos mecanismos intuitivos e sensíveis que, desde bebês todos
usamos. É com estes mesmos mecanismos que começamos a decifrar o mundo e
as nossas relações com as coisas e, principalmente, com as demais
pessoas.
É
assim com os doentes com Alzheimer. Reagem com seus sentidos, mais do
que com seus pensamentos. Respondem mais ao conteúdo emocional das
nossas falas, dos nossos gestos, das nossas intenções, do que àquilo que
conversamos. Nossas palavras deixarão de fazer sentido, mas nossos
gestos, nossos afetos impressos no tom nossa voz serão logo decifrados. E
quanto mais a doença avançar, mais assim será. Sua vulnerabilidade
crescente será também a sua força crescente sobre nós.
E,
com certeza, o paciente de Alzheimer vai espelhar muito da sua pessoa!
Você vai aprender mais sobre você própria. Ou próprio. Você será chamada
a ser gentil, quando desejaria esganar. Será chamada a ser paciente,
quando estará morrendo de pressa. Será chamada a ser muito mais
respeitosa, quando você gostaria é de resolver tudo logo, de uma vez e
sem consultar ninguém.
Isso
assusta muito. Você também terá que ser mais intuitiva. O paciente
estará desesperadamente sofrendo o desgaste, a falência de suas
capacidades: de se comunicar, de pronunciar o nome correto das coisas
que deseja dizer ou demonstrar. Suas frases serão interrompidas pela
fuga de suas ideias. Seus gestos serão mais duros e desastrados e,
chegará um dia em que as mãos dessa pessoa deixarão de saber de
acariciar. Seus lábios não mais irão sorrir e ela, ou ele, deixará até
de saber engolir.
Você
vai se sentir só e abandonada. E vai brigar com o mundo e com Deus,
também. Vai se sentir pequenininha e carente, sem ter com que dividir.
Por que somente aqueles que passam e passaram por isso, sabem do que
você vive e sente. Sabem da perplexidade e da desolação causada em seu
peito e em sua mente. De suas horas de silêncio, cansaço e agonia pela
brutalidade da doença e pela vulnerabilidade daquele de quem você cuida
ou cuidou.
Você
terá sido tudo para aquela pessoa, assim como a mãe é tudo para seu
bebê. Você terá sido empossada de todos os poderes, porque você terá o
paciente, seja quem for em suas mãos. Você poderia tê-lo envenenado. E
não o fez. Você poderia tê-lo empurrado escada abaixo. E não o fez. Você
poderia tê-lo abandonado sujo, sob o sol ou ao relento, mas você o
trouxe para dentro. Não só de volta a casa, mas para dentro de si.
Você
terá aprendido a amar, tanto quanto a odiar. A aceitar, tanto quanto a
se revoltar. A implorar por novas forças, tanto quanto a querer sumir.
Terá tocado todas as notas e cores do amplo espectro das emoções
humanas. E terá elegido aquelas que têm significado e propósito para
você. E sairá desta louca experiência muito mais sábia do que jamais
imaginaria. Nem tudo são flores, mas nem tudo são horrores. Seja
cuidadosa com o paciente, que estes cuidados também se voltarão para
você. Cuide-se, cuidador. Cuide-se.
(Ana Fraiman)
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