quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O TEMPO ESTÁ DOENTE

Resultado de imagem para o tempo 

Falta quase um dia para fazer 20 anos. Há 12 anos atrás estava a escrever este mesmo texto onde tropeçava por querer conhecer palavras para expressar a minha alegria e gratidão pela vida. Conseguia cheirar o papel, já sujo de pó, com suores de excitação por querer que o sol se pusesse e se levantasse e se pusesse e se levantasse para eu correr, que nem um cão pela areia molhada, pela vida e sentir o vento a passar, as minhas pernas a correr e o sorriso no seu limite, sabe-se lá pelo excesso de velocidade ou pela euforia.

A consciência apresentou-se cedo em mim. Veio como um senhor de gravata preta e um smoking branco com um ar gentil, muito alto e esguio. Apresentou-se com um guardanapo no braço fletido como que ao meu serviço. Qualquer criança faria o que eu fiz com a consciência, abracei-lhe as pernas, dada a limitação de altura, e tirei-lhe o guardanapo da curva do braço. Criava uma certa distância achava eu. Que senhor tão estático e formal, pensava eu. Vou mostrar-lhe que a vida é feliz, sorria-lhe eu. Lembro-me das primeiras vezes que caminhamos. Eu ia ao pé dele aos saltinhos meio enviesada porque queria olhar para ele enquanto o ouvia e enquanto lhe falava. 

Lembro-me de olhar para a frente volta e meia para ver se o caminho tinha pedras da calçada levantada e lembro-me de olhar para trás para ver se alguns daqueles ladrões com sacos na cabeça, que tinha ouvido falar havia pouco tempo, por acaso estavam interessados na nossa caminhada. 

Volta e meia, no intervalo destes desvios de diálogo, quando a consciência educadamente se retirava para ir fazer xixi, eu sentava-me no chão a observar a avenida e os pombos e as fontes e olhava para o sol. E o sol era como eu na altura, e eu era como o sol agora. Fechava os olhos e, na inocência da criança pensava 'não vou ser como a minha mãe, não vou ser como o meu pai, eu agora tenho a certeza de como o mundo é e vou pensar com muita força que a vida é feliz e é bonita e quando for grande vou acreditar em mim pequena', porque a certeza era o maior sinal de segurança e maturidade que o humano poderia ter. 

Tenho muito carinho a essa criança, volta e meia, quando me quero encontrar comigo própria, acabo sempre por chegar a ela. Sem rejeitar as vivências que tive até agora, sem rejeitar a consciência que me oferecer um smoking e um pano para pôr no braço fletido. Olho para essa criança e agradeço-lhe por ter tido tanta força. Essa criança é a minha mãe agora, a minha infância é o meu maior pai e educador

Nós crescemos para a imaturidade, crescemos sobre lotados de olhar sem qualquer tipo de consciência no essencial, sem saber, antes de procurar sentido nas coisas novas que nos apareceram na vida, que devemos procurar sentido em tudo o que sempre tivemos mas nunca fomos necessitados de o olhar e consciencializar de vários locais do espaço sem ser o de ator principal.

O mundo perde-se quando pensa que o mundo é complexo, que é complicado e difícil, que é demasiado maturo e sério para sequer ter uma intrínseca noção de que crescimento é reviver tudo o que se viveu antes mas com novos olhos. Tem que acabar por saber ao mesmo mas com olhos diferentes. É como mergulhar e vir à tona, mergulhar mais fundo e vir à tona. O pânico é sempre o mesmo, a sensação fresca do ar na pele molhada é sempre a mesma. Ou será de cada vez mais pânico? Não é suposto conseguirmos ter mais pulmões para aguentar mergulhar mais fundo e vir ao de cima com o mesmo alívio e prazer?

O tempo é o maior dogma humano. Assumimos que o tempo passa, que o tempo existe. Mentiras, todas mentiras. Todas um passo no abismo dos princípios de vivência. O tempo tem que ser jogado e manipulado, as mudanças ditam o tempo e não o tempo as mudanças. A maturidade não surge porque o tempo passou nem etapas surgem porque o tempo passou. O tempo é um argumento e uma escarra de desprezo que é gritada constantemente por todos. 

Se nos sentarmos na calçada da avenida a ver os pombos e as fontes ouvimos ao longe um velho a gritar 'tempo', ouvimos grupos de miúdas a rir e a sussurrar entre elas 'tempo, tempo, tempo', a mulher que escava a calçada com o seu salto pontiagudo tem 'tempo' escrito na testa. Aqueles que se amam não têm nada. 

Porque só se ama quem revive o mesmo vezes sem conta, como numa mente de um portador de alzheimer, e consegue extraír prazer pela milésima vez da mesma situação. Quem diria que o alzheimer era uma doença.

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