Falta quase um dia para fazer 20 anos. Há 12 anos atrás estava a
escrever este mesmo texto onde tropeçava por querer conhecer
palavras para expressar a minha alegria e gratidão pela vida.
Conseguia cheirar o papel, já sujo de pó, com suores de excitação
por querer que o sol se pusesse e se levantasse e se pusesse e se
levantasse para eu correr, que nem um cão pela areia molhada, pela
vida e sentir o vento a passar, as minhas pernas a correr e o sorriso
no seu limite, sabe-se lá pelo excesso de velocidade ou pela
euforia.
A consciência apresentou-se cedo em mim. Veio como um
senhor de gravata preta e um smoking branco com um ar gentil, muito
alto e esguio. Apresentou-se com um guardanapo no braço fletido como
que ao meu serviço. Qualquer criança faria o que eu fiz com a
consciência, abracei-lhe as pernas, dada a limitação de altura, e
tirei-lhe o guardanapo da curva do braço. Criava uma certa distância
achava eu. Que senhor tão estático e formal, pensava eu. Vou
mostrar-lhe que a vida é feliz, sorria-lhe eu. Lembro-me das
primeiras vezes que caminhamos. Eu ia ao pé dele aos saltinhos meio
enviesada porque queria olhar para ele enquanto o ouvia e enquanto
lhe falava.
Lembro-me de olhar para a frente volta e meia para ver se
o caminho tinha pedras da calçada levantada e lembro-me de olhar
para trás para ver se alguns daqueles ladrões com sacos na cabeça,
que tinha ouvido falar havia pouco tempo, por acaso estavam
interessados na nossa caminhada.
Volta e meia, no intervalo destes
desvios de diálogo, quando a consciência educadamente se retirava
para ir fazer xixi, eu sentava-me no chão a observar a avenida e os
pombos e as fontes e olhava para o sol. E o sol era como eu na
altura, e eu era como o sol agora. Fechava os olhos e, na inocência
da criança pensava 'não vou ser como a minha mãe, não vou ser
como o meu pai, eu agora tenho a certeza de como o mundo é e vou
pensar com muita força que a vida é feliz e é bonita e quando for
grande vou acreditar em mim pequena', porque a certeza era o maior
sinal de segurança e maturidade que o humano poderia ter.
Tenho
muito carinho a essa criança, volta e meia, quando me quero
encontrar comigo própria, acabo sempre por chegar a ela. Sem
rejeitar as vivências que tive até agora, sem rejeitar a
consciência que me oferecer um smoking e um pano para pôr no braço
fletido. Olho para essa criança e agradeço-lhe por ter tido tanta
força. Essa criança é a minha mãe agora, a minha infância é o
meu maior pai e educador.
Nós crescemos para a imaturidade,
crescemos sobre lotados de olhar sem qualquer tipo de consciência no
essencial, sem saber, antes de procurar sentido nas coisas novas que
nos apareceram na vida, que devemos procurar sentido em tudo o que
sempre tivemos mas nunca fomos necessitados de o olhar e
consciencializar de vários locais do espaço sem ser o de ator
principal.
O mundo perde-se quando pensa que o mundo é complexo, que
é complicado e difícil, que é demasiado maturo e sério para
sequer ter uma intrínseca noção de que crescimento é reviver tudo
o que se viveu antes mas com novos olhos. Tem que acabar por saber ao
mesmo mas com olhos diferentes. É como mergulhar e vir à tona,
mergulhar mais fundo e vir à tona. O pânico é sempre o mesmo, a
sensação fresca do ar na pele molhada é sempre a mesma. Ou será
de cada vez mais pânico? Não é suposto conseguirmos ter mais
pulmões para aguentar mergulhar mais fundo e vir ao de cima com o
mesmo alívio e prazer?
O tempo é o maior dogma humano. Assumimos
que o tempo passa, que o tempo existe. Mentiras, todas mentiras.
Todas um passo no abismo dos princípios de vivência. O tempo tem
que ser jogado e manipulado, as mudanças ditam o tempo e não o
tempo as mudanças. A maturidade não surge porque o tempo passou nem
etapas surgem porque o tempo passou. O tempo é um argumento e uma
escarra de desprezo que é gritada constantemente por todos.
Se nos
sentarmos na calçada da avenida a ver os pombos e as fontes ouvimos
ao longe um velho a gritar 'tempo', ouvimos grupos de miúdas a rir e
a sussurrar entre elas 'tempo, tempo, tempo', a mulher que escava a
calçada com o seu salto pontiagudo tem 'tempo' escrito na testa.
Aqueles que se amam não têm nada.
Porque só se ama quem revive o
mesmo vezes sem conta, como numa mente de um portador de alzheimer, e
consegue extraír prazer pela milésima vez da mesma situação. Quem
diria que o alzheimer era uma doença.
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