terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

CRÔNICA DE UMA FILHA QUE PERDEU A MÃE PARA O ALZHEIMER

Virar mãe de nossas mães talvez seja uma das experiências mais dolorosas da vida. Nada, mas nada mesmo, nos prepara pra isso. Passar a ser a protetora de quem nos protegia, assumir a tutela de quem nos amparava: é todo um script que tem de ser refeito, todo um roteiro a ser recriado. Eu acompanhei a perda gradual de lucidez da minha. São dores diferentes, mas vividas com a mesma intensidade. E quantas mulheres passam por essa orfandade precoce, esse ensaio da perda, ou essa morte antes da morte, quando tudo em nós diz que ainda somos filhas.

Nunca vou me esquecer de uma tarde em que eu estava lendo no quarto da minha mãe e ela pediu que buscasse um café na cozinha. Quando voltei com a xícara de café, ela estava chorando, aquele choro que faz sacudir o corpo todo, e começou a me perguntar repetidamente onde é que a gente estava, que lugar era aquele que ela não conhecia, e me pedia, com uma tristeza tão profunda que parecia uma dor física: “Me leva para a minha casa, minha filha… Me tira daqui…”. Eu explicava que ali era a casa dela, mas não adiantava.

Aí, tentei dizer que mais tarde eu levaria, mas, com a tristeza cortante na voz, ela voltava a pedir: “Me leva agora…Eu não agüento mais ficar aqui”. Ela queria uma casa que já não existia. Eu queria a mãe que já não havia. E ficamos ali chorando,as duas, desconcertadas e impotentes diante do que não fazia sentido, ensaiando palavras que não diziam nada e depois nos encontrando no silêncio.

O nosso cotidiano: pentear seus cabelos, convencê-la a trocar o vestido com manchas de café, lembrar a hora de tomar o remédio, lembrá-la de sentir sede, lembrar o aniversário dos filhos e o próprio aniversário, lembrar, lembrar… E eu me obrigava a esquecer que ainda precisava tanto dela, que suas palavras, sempre precisas e justas, tinham deixado de pontuar minha vida e que sem elas eu me via sem mapa e sem rumo.

Ah, que falta ela já me fazia então e que falta que ela me faz hoje… Não consegui desaprender o papel de filha a tempo e hoje tenho saudades de ser, a um só tempo, sua filha e sua mãe. Já peguei o telefone tantas vezes para falar com ela depois que ela se foi. Já entrei numa loja de aeroporto para comprar um presente para ela e saí atordoada quando me lembrei que já não haveria presentes. Penso em contar tantas coisas para ela, penso em fazer uma mágica qualquer e dar a ela a neta (minha filha) que ela não teve. Seria tão bom estarmos as três juntas… Esta mãe que eu amava tanto e esta filha que não houve, mas que eu sei que amaria mais que tudo… conversando, rindo, tomando café, falando de alegrias, de perdas, de amores…Porque a gente falava de tudo. A gente sentia, ria e chorava juntas. E com a minha filha também seria assim.

As perdas nos deixam sem ar, sem ter onde pisar – e dói o mesmo tanto perder o que tivemos e o que nunca chegamos a ter. Uma perda nos arranca o passado. A outra nos rouba o que viria. Resta o presente, claro, e é nele que temos que viver. Aproveitar o momento.

Continue sonhando desavergonhadamente com o amor. Há sonhos que são delírios. Este não. Você ainda vai encontrar mãos que passearão sem pressa por suas tatuagens, segurar amorosamente as mãos do seu filho e envelhecer juntinho das suas.

Eu vou continuar sonhando com a leveza que vem da ausência do medo. Nossas mães estão nos olhando, de onde estiverem. Voltaram a ser mães, tenho certeza, e vão nos ajudar a encontrar o caminho.
Trecho do livro “Que ninguém nos ouça”, de Leila Ferreira e Chris Guerra, Editora Planeta

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