quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O PASSADO ESFARINHADO

 

 " Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo" 
(George Santavana)

" A nossa duração não é apenas um instante a seguir ao outro; se fosse, nunca haveria mais nada além do presente - nenhum prolongamento do passado na atualidade, nenhuma evolução, nenhuma duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que morde o futuro e vai inchando à medida que avança. E, como o passado cresce sem parar, não há nenhum limite à sua preservação".

As palavras acima foram proferidas pelo filósofo e  prêmio Nobel de 1927, Henri Bergson. Dentro do conceito de duração o passado coexiste com o presente. O tempo vivido não se confunde com o tempo cronometrado dos relógios, sequer tem ele a mesma regularidade. Podemos, inclusive, tecer distintos tempos: o tempo da natureza e o tempo da alma. O último é, por excelência, um tempo subjetivo. 

Por isto inclino a pensar no que escreve o também filósofo e escritor André Comte-Sponville:

 " é por isso que há um tempo para a espera e outro para a saudade, um tempo para a angústia e outro para a nostalgia, um tempo para o sofrimento e outro para o prazer, um tempo para a paixão e outro para a união, um tempo para ação ou para o trabalho, outro ou vários, para o descanso".

Objetivamente poder-se-á dizer que o passado é a parte do tempo que se refere ao período anterior ao tempo presente. Objetivamente o tempo pertence a todos. Já subjetivamente, podemos dizer que o passado é o tempo que não passa. O tempo subjetivo é, portanto, o tempo da intimidade que pertence a cada sujeito, que embora conviva com outros sujeitos o tempo subjetivo de cada um é não compartilhável enquanto temporalidade psíquica e pessoal. 

Humanamente o passado está intrinsecamente relacionado  à memória. E porque temos memória, assim como percebemos o caminhar dos dias e sonhamos com o amanhã, é que o ser humano é um ser absolutamente mergulhado na temporalidade. Passado e memória, um não existiria subjetivamente sem o outro, pois ambos estão entrelaçados e ambos são indissociáveis.

O passado não passa porque temos memória. O passado não passa porque o presente é consequencial. Nosso passado de hoje - que já foi o presente de ontem - foi como aquela pedrinha lançada em um lago cujo impacto gerou ondulações circulares que se propagaram pela superfície. Sim, nossas vidas são um grande e enorme lago existencial. 

O presente de ontem movimenta o presente de hoje, assim como o presente de hoje move o presente do porvir. O passado está, pois, embutido no presente, afinal o presente de agora foi construido de vários e incontáveis instantes que no instante imediato são passados. Inexiste presente sem passado. 

Nisto reside, por exemplo, a força destes versos do notável poeta americano, T.S.Eliot, retirado do poema East Coker:

" Em meu princípio está meu fim. Umas após as outras 
As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas,
Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu ligar
Irrompe um campo aberto, uma usina, um atalho.
Velhas pedras para novas construções, velhos lenhos para novas chamas,
Velhas  chamas em cinzas convertidas, e cinzas sobre a terra semeadas,
Terra agora feita carne, pele e fezes,
Ossos de homens e bestas, trigais e folhas.
As casas vivem e morrem: há um tempo para construir
E um tempo para viver e conceber.
E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças
E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre
E sacudir as tapeçarias em farrapos tecidas com a silente legenda"

     

Há passados que se tornam lembranças. Há passados que se esquecem. Há passados que cicatrizam o corpo e a alma. Há passados que não se superam e que ficam como se fossem eternos. Lembranças, cicatrizes e esquecimentos, corpo e alma, fazem parte do baú de quem somos. Relembrando ou não somos sempre feitos com barros de outrora. 

Assim é criada e feita a nossa história, e não há pessoa, personalidade ou identidade sem história. Todavia, o que nos importa é o passado que não vira memória, que por não ter sido digerido permanece vivo e incomodamente no atual. É um passado que não se transformou ainda em passado.

Passado, como palavra, vem do latim "passus" (passo). Daí a ideia da existência como um caminhar, passo a passo, até o "praesens" (presente). "Praesens", por sua vez, como termo também latino se origina de "praeesse", que significa estar à frente, estar à mão. Porém, quando o passado vira um "passus aetermus", o que está a nossa frente é o nosso atrás.

Somos feitos de aniversários. Mas os anos dentro de nós não se acumulam sobrepostamente, porém se misturam, amalgamam-se  e se  embolam em uma massa ajuntada e disforme que chamamos de mente. Em qualquer tempo, em qualquer hora, em qualquer momento, o passado nos influencia, mas é no presente que ele toma forma e se referencia. O presente não é uma fronteira que se separa o fim e o início de dois tempos, como se fatiássemos o bolo dos nossos dias. O bolo somente apaga quando se apaga a vela do último instante da vida.

Há passado que vai... há passado que fica. Assim como há passado que se lembre e há passado que se dói. Seja lá como for, o que seria do passado se não houvesse o presente? 

Ou como poetiza Fernando Pessoa:  

" Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia".

(http://literalmente-literalmente.blogspot.com.br)

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