Como idealizei as pessoas que participaram de minha vida! Quando eu
era criança, papai parecia inabalável. Eu o via grande; suas mãos eram
fortes, seus passos, decididos.
Mais tarde, elegi ícones nos esportes. Depois, na religião. Mas um
dia meu velho estava bastante doente, alquebrado pela Síndrome de
Alzheimer, e eu precisei descê-lo dentro de uma lona de quatro alças
pelas escadas do seu apartamento. Do Eródoto José Rodrigues
sobrava muito pouco. Enquanto descíamos, vi seu corpo balançando,
decrépito e magro. A rede empunhada por quatro homens o jogava de um
lado para outro; a valsa era macabra. Lembrei de quando segurava sua mão
e me sentia amparado. A decadência física de meu pai escancarava quão
efêmeros nós somos. Daquele dia em diante passei a repetir: ninguém é
inabalável em sua subjetividade emocional; as mais sólidas convicções
intelectuais sofrem abalos; nenhuma pretensão moral é de aço inoxidável.
Não existem monstros ou santos. Todos somos flamas oscilantes.
Carregamos sombras na alma. Não passamos da combinação ingênua de
noviços, ineptos em abraçar o bem, e de bandoleiros, hesitantes na
prática do mal.
Viver consiste no desafio de alargar o coração e deixar que réstias
de luz iluminem as nossas sombras. Não permitamos que trevas se alastrem
dentro da gente. Demônios tenebrosos se multiplicam em ambientes
lúgubres. No alto da colina da ilha chamada vida, sejamos lanterneiros,
sempre a projetar nosso farol na direção de algum viajante perdido.
Não esqueçamos: só se credencia a morar no céu quem, na terra, não
abandonou o mandato de ser luz.
Fujamos do ar viciado do negativismo. Aprendamos a talhar nossa
história sem nos deixar destruir pela perversidade do mundo.
Perseveremos em fazer o bem. Os cínicos desistem da lida; os pessimistas
ajudam a empurrar a história para o desespero; e os neofundamentalistas
tentam fazer nascer, a fórcipes, um mundo desde as suas verdades.
Forjemos a nossa humanidade com a constatação de que somos limitados.
Esvaziemos a arrogância de ter toda a verdade. A verdade reside
na democrática convivência dos povos.
Reconheçamos que cada indivíduo é um universo; suas relações sociais
são infinitas. Não tentemos imobilizar a dinâmica da cultura ou da
ética. Bem e mal se transformam velozmente. A tarefa de joeirar virtude e
vício é complexa. Não há códigos suficientes que abarquem todas as
nuanças da vida. Crescemos quando nos abrimos para uma coexistência
inclusiva, sem preconceitos e sem ódios. Viver é amadurecer a arte do
diálogo. Ao caminharmos na senda do amor, reconheceremos Deus no rosto
do próximo.
Os que almejam humanidade fazem escolhas responsáveis; só eles
discernem que o futuro jaz, latente, nos grãos plantados hoje. Só
germinarão fraternidade e paz quando justiça for semeada. As máquinas de
guerra devem ser desmontadas para que, logo, o arado substitua a espada
e o cordeiro não tema pastar ao lado do leão.
Humanidade é obra que só pertence a nós, os humanos. Então, que
se abandone a ideia de que o bem ressurgirá da ganância, do consumismo,
do individualismo e da soberba.
Ergamos a nossa humanidade sempre cientes de nossa pequenez. Sem a
soberba dos falsos campeões, celebremos cada encontro. Valorizemos
quem amamos. Acolhamos os discriminados, os deficientes, os esquecidos.
Contemplemos a história como artesãos que limam o ouro. Defendamos o
direito, demos as mãos ao pobre e aguardemos: breve brilhará o sol da
justiça, trazendo cura sob suas asas. (Ricardo Gondim)
http://www.ricardogondim.com.br/
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