Alguns anos atrás, para ser mais precisa
oito, minha mãe começou a agir de maneira estranha e confusa. Minha
irmã, que convivia mais com ela, foi a primeira a notar. Com o tempo
também comecei a reparar que minha mãe andava muito confusa. Esse foi o
começo de uma longa dura jornada ao desconhecido mundo da neurociência.
Eu digo desconhecido porque o que aprendi nesse tempo é que, apesar de
tantos estudos envolvendo o funcionamento do cérebro humano, ele ainda é
território misterioso. Claro, tivemos muitos avanços, mas muita coisa
permanece ainda inexplicável e isso torna qualquer doença nessa área
mais complicada.
A primeira
dificuldade já veio de cara em encontrar um diagnóstico convincente.
Levamos minha mãe em muitos psicólogos, psiquiatras e neurologistas,
todos admitiam que o comportamento dela era anormal, mas nenhum soube
diagnosticar o que acontecia. Afinal ela tinha 55 anos e uma saúde
física impecável sem nenhum histórico aparente de doenças neurológicas
na família. Como ela continuava confusa, continuamos fazendo exames. Até
que nos indicaram um médico conceituado que só atendia via particular,
após alguns exames de cintilografia o médico renomado sem nos
decepcionar, deu o diagnóstico: demência no lobo fronto temporal, mais
conhecida como demência frontotemporal e usou a palavra degenerativa.
Eu
lembro que sai do médico bem atordoada, parecia que tinha levado uma
pancada na cabeça. Não lembro exatamente se minha mãe, que estava
comigo, se deu conta. A verdade é que eu não tinha entendido a magnitude
do que exatamente isso implicaria na sua vida e na minha e pelo visto,
os médicos também não. Quando você recebe uma notícia dessas passa mil
coisas pela cabeça, na verdade vai um bom tempo para digeri-la, para
falar a verdade, dez anos se passaram e acho que até hoje ainda não
digeri tudo.
Uma rápida pesquisa na internet e
descobri que a demência frontotemporal tem causas desconhecidas e
sintomas muito parecidos com Alzheimer, é também uma doença degenerativa
que afeta a memória, entre outras coisas, por isso o tratamento é o
mesmo. Eu nunca convivi com pacientes de Alzheimer, mas pelo pouco que
sei, apesar de ser parecida é diferente e acho que deveria ser melhor
estudada e entendida. De lá para cá trocamos de médicos muitas vezes, o
coquetel de remédios não parece fazer muito efeito, mas segundo o médico
se ela não tomar a doença terá progressão mais rápida ainda e eu não
quero fazer esse teste. Então sigo à risca o que os médicos falam.
Existe
muita, mas muita desinformação nessa área e informação “torta”, existe
também, no meu leigo entendimento, um certo comodismo da medicina e dos
médicos, eles dizem é esse o tratamento e pronto. “Não há o que fazer”,
dizem eles em unanimidade. E há dez anos seguimos o mesmo tratamento. E
ninguém tenta nada diferente e ninguém dá soluções práticas para te
ajudar no dia-a-dia. Então tive que me virar sozinha. Porque isso eu
aprendi, dar nome para doença não quer dizer que você vai receber também
uma cartilha de como lidar com ela. O que sei, aprendi no dia-a-dia, na
base de (muito) erro e acerto. O problema é que fazer isso com a tua
própria vida até dá para encarar, fazer isso com a vida da sua mãe é um
pouco mais difícil.
Então se não
havia o que fazer me concentrei em fazer com que ela tivesse qualidade
de vida. E graças ao trabalho duro do meu avô, na medida do possível,
nós podemos proporcionar isso à ela. Nesse momento eu penso e sinto
pelas famílias e pacientes economicamente menos favorecidos, sim porque
doença é igual para o pobre e para o rico. O governo dá um dos remédios
que é caro para Alzheimer. Todos os outros, também caros, nós compramos.
Equipe de cuidadores, tudo isso tem um custo alto.
Eu
escrevo esse relato porque tudo que aprendi, aprendi sozinha sem muita
orientação. O que os médicos não souberam explicar nem orientar eu fui
fazendo por instinto. Porque todos nós temos esse instinto de cuidar do
outro. E sei que nem sempre acertei. Então quem sabe minha história (e
meus erros) ajude quem também está passando por isso, segue alguns
sinceros conselhos:
1. Não subestime a doença:
Qualquer
doença que acomete a mente é difícil de entender, mas deve ser levada a
sério. A gente se engana com uma aparência saudável. Então tome as
devidas providências para evitar acidentes. Um dos meus erros foi ter
sido reativa, tomar atitudes só quando a “água batia na bunda” e tentar
sempre escutar e respeitar a vontade da minha mãe. Ela morava sozinha,
eu sabia que não era bom, mas ela não queria ninguém e eu não soube
insistir. O problema é que ela já não tinha total consciência do que era
bom ou não. Um dia me ligaram do hospital dizendo que minha mãe havia
sido atropelada. Do caminho de casa até o hospital eu sofri muito, eu
senti culpa, muita culpa. Esse erro poderia ter lhe custado a vida,
felizmente foi apenas um braço quebrado e mais alguns arranhões. A
partir desse dia ela nunca mais ficou sozinha. Então não espere para
sentir culpa por algo que você poderia ter antecipado e feito, quando
achar que tem que fazer, não procrastine, não titubeie, apenas faça.
2. Você vai sentir raiva, tudo bem, sinta raiva.
Você
sentirá raiva e se você é capaz de sentir empatia, você também sentirá
culpa, muita culpa. Aprenda a conviver pacificamente com elas (acho que
quem é mãe entende melhor isso). Viva isso porque faz parte. Se
conseguir, seja mais gentil consigo mesmo, perdoe-se. Tente ser
paciente, a falta de paciência gera mais culpa. Eu me arrependo de não
ter tido mais paciência com minha mãe quando ela esquecia as coisas,
quando ela demorava para contar algo e trocava tudo, enfim, em vários
momentos. Mas eu sentia raiva, raiva de Deus, raiva dela, raiva de mim
porque não conseguia ser melhor e mais paciente com ela. E daí com a
raiva vinha a culpa. Enquanto eu lutava contra a raiva e a culpa, elas
ganhavam mais força e era uma bola de neve, porque quanto mais raiva eu
sentia, menos paciência eu tinha. Então permita-se sentir raiva, sentir
culpa e entenda de onde elas vêm. Quando nos permitimos sentir qualquer
sentimento mesmo que “ruins”, os sentimentos perdem força. Tome cuidado
para não descontar em ninguém e para que esses sentimentos não tomem
conta de você. Se fizer, ou melhor, quando fizer, perdoe-se e peça
perdão. Respire. Espere. Com o tempo a raiva não passa, mas ela diminui
até o ponto de ficar bem mais fácil de conviver com ela e controlá-la.
3. Viva a sua vida.
Essa
parte é difícil, porque as pessoas julgam e muito. Porque você se
julga, muito. Um paciente com demência não conhece mais limites. E a
impressão que tenho é que quanto mais você dá, mais você precisa dar e
esse espiral não tem fim. As pessoas olham de fora e pensam que talvez
algumas atitudes tuas são egoístas ou injustas. Seja egoísta. Coloque
sua vida em primeiro lugar. A pergunta que eu me faço é longa, porém
simples: quem está vivendo a minha vida por mim enquanto eu preencho a
minha vida com a vida da minha mãe? Então na medida do possível e com
amor, coloque limites. E esses limites machucam, mas são necessários.
Saiba assumir suas fraquezas e conhecer seus limites, ninguém é
super-herói. Aprenda a perder batalhas pelo outro em seu prol. Também
aprenda a delegar. Eu levei tempo para fazer isso, com isso sofri mais
do que devia, passei mais tempo com raiva do que devia. Quando aprendi,
resolvi encerrar essa jornada com minha mãe, por agora. Então minha irmã
vai cuidar dela. Quando consegui assumir que cheguei no meu limite sem
me sentir derrotada, pude finalizar essa etapa com o coração tranquilo. E
quando você não conseguir fazer algo que a “sociedade” acha certo
fazer, não se sinta tão culpado, sempre vai ter alguém para apontar seus
atos falhos, mas a verdade é que ninguém sabe exatamente o que se passa
no seu coração.
4. Para todos e para a vida: não julgue uma batalha que você não está lutando.
Muita
gente acha cruel que eu tenha pensado em um lar para minha mãe. Ou que
eu não vá visitá-la todos os dias. Moro perto, ligo sempre, vou quando
posso. Hoje sei que o maior presente que posso dar para ela é viver
minha vida e ser feliz, só assim também valerá a pena o sofrimento dela.
Tenho uma consciência tranquila de que fiz o melhor que pude com os
recursos que tinha. Algumas vezes não era muita coisa, mas foi o que
consegui fazer. Hoje não julgo ninguém que tenha que deixar um parente
em um lar. Porque não é uma decisão fácil. Mas independente de idade e
em qual momento da vida alguém está, ninguém deve ser privado de viver
sua própria vida. E cuidar de alguém com demência toma tempo e
dedicação, além de muita paciência. E requer amor, muito amor, um amor
incondicional diariamente, coisa que nem sempre estamos bem e somos
capazes de dar.
5. As pessoas se vão. Poucos são os que ficam. Não julgue.
Muita
gente não sabe lidar com a dor do outro. O que me faz não contar sobre a
minha mãe para muita gente é o olhar de pena dos outros. Ninguém sabe
validar a dor do outro nem como agir diante de momentos difíceis, o que
sabemos é sentir pena e a pena não constrói ninguém, nem quem sente, nem
por quem é sentida. Eu falo isso porque comprei esse “papo” e também
tive pena de mim, até que entendi que me fazer de vítima não ia curar
minha mãe e nem me fazer feliz, porque felicidade é um propósito de
vida, é uma escolha que fazemos todos os dias, independente do que está
acontecendo em nossas vidas. Então aceite o que a vida lhe traz e na
medida do possível viva bem com isso. Não dá para entender o sentido de
tudo racionalmente. É triste? Sim. Como muitas outras histórias também
são. O que é, é. E o melhor que podemos fazer quando nos deparamos com a
dor de outro é dizer: “não posso fazer muito para diminuir sua dor, mas
obrigada por compartilhar isso comigo, estou aqui”. O amor deve ser
espontâneo e mora nos pequenos gestos, como em um abraço ou no silêncio.
O que aprendi com minha mãe é que a maior prova de amor que damos é
conseguir amar alguém que não pode lhe dar nada (ou quase nada) em
troca. E apesar de parecer que não existe troca hoje, um dia ela
existiu. Entre muitas outras coisas, a minha mãe me deu a vida.
6. Cuide de você e viva sua vida com amor.
O
Budismo fala muito sobre a impermanência da vida. Aprenda a enxergar a
beleza nisso e a aceitar o que lhe é ofertado. É clichê, mas a gente
esquece. Não sabemos o dia de amanhã, nem quando um médico vai te dar um
diagnóstico que mudará sua vida, nem a vida de quem você ama. Esteja
presente e aceite o presente que é a vida. Cuide bem de sua saúde e de
sua cabeça. Eu levei tempo para aprender isso.
7. Guarde e conte as boas histórias.
“Malba
Tahan conta que dois amigos, Salim e Fahid, viajavam numa caravana para
a Pérsia. Ao cruzarem um rio, Salim foi pego na correnteza, e teria
morrido se o amigo não o ajudasse. Agradecido, pediu que seus empregados
gravassem numa rocha que ficava na margem do rio: “Aqui, Fahid salvou a
vida de seu amigo”. Quando voltavam da Pérsia, depois de atravessarem o
mesmo rio, uma discussão tola fez com que os dois brigassem. Fahid
puxou uma espada, e quase mata o amigo a quem havia salvo meses antes.
Depois que os ânimos serenaram, Salim chamou de novo seus empregados e
pediu que escrevessem na areia: “Aqui, Fahid tentou matar seu amigo”.
“Quando o salvei, você gravou meu gesto numa rocha. Agora, que quase o
matei, você escreve na areia. Não vê que o vento logo apagará?”,
perguntou Fahid. “Esta é a sabedoria”, respondeu Salim, “Escrever as
boas coisas na rocha, e as coisas negativas na areia”.
Como
na história, tente guardar os bons feitos e qualidades. Esforce-se para
esquecer as historias ruins. Minha mãe nem sempre foi boa para mim,
reclamei disso por muito tempo. Hoje nem sempre consigo ser uma boa
filha para ela. Porque ser bom o tempo todo é difícil mesmo. Então nós
precisamos aprender a guardar as coisas boas e com o tempo isso vai
acontecendo naturalmente, hoje lembro com muita clareza de como ela era
bela e valente, vaidosa, honesta e de como gostava de fazer caridade.
8. Cada paciente é diferente.
Com
o tempo aprendi a entender os médicos, realmente não existe uma receita
pronta que vai te ajudar a lidar com a doença. É puro instinto e bom
senso. Porque mesmo que a doença seja uma ela se manifesta de algumas
maneiras diferentes de acordo com o paciente. Minha mãe apresenta
sintomas que os médicos não sabem explicar. Por exemplo, mesmo em
estágio mais avançado da doença, ela se alimenta bem, faz tudo sozinha
(claro, com orientação) e é extremamente carinhosa, não tem nenhum traço
de agressividade.
9. Conte com a ajuda de profissionais.
Se
você tiver condições financeiras contrate profissionais para te ajudar.
Os familiares têm uma relação diferente com o paciente e carregam uma
carga emocional muito grande. Cuidadores profissionais podem ter
paciência e calma que nem sempre nós familiares temos. E o paciente
precisa de pessoas pacientes e calmas. Eu tive muita sorte com todas as
cuidadoras e só tenho boas histórias. Elas amam minha mãe e cuidam com
muito cuidado dela.
10. Aprenda o valor das palavras “mágicas” e use-as.
Palavras
que aprendemos desde criança e que fazem diferença em nosso dia-a-dia.
Não as esqueça, pois minha mãe não as esqueceu. Hoje ela não fala mais
nada com coerência, ou melhor, quase nada. Existem três frases que ela
usa com muita coerência: todos os dias que ela me vê ela me olha e
repete “Você é linda. Obrigada. Eu te amo”. (Por Tatiana Nicz)
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