Considerações preliminares sobre
os desafios dos velhos no século XXI para o reconhecimento de sua dignidade e
garantia de seus direitos
1. A CONSTRUÇÃO DA IDÉIA DE
VELHICE: refletindo sobre o passado para compreender o presente
Nestes mais de dez anos de
atuação na defesa dos direitos das pessoas idosas pude constatar o quanto o ser
velho é alvo de preconceitos e discriminações, muitos dos quais alimentados
pelas próprias pessoas de idade avançada, que, não raras vezes, negam a sua
condição, especialmente quando isso convém, fazendo com que se torne recorrente
a expressão consoante a qual “todos querem viver muito, mas ninguém quer ser
velho”.
Esse tipo de comportamento possui
origem nos momentos iniciais de articulação da consolidação do modelo de sociedade
capitalista, dentro da qual as condições para o envelhecimento se apresentaram,
a exemplo da idéia de higiene, saneamento básico, tecnologia médica,
especialmente por meio das vacinas, porquanto as pessoas que passaram a
apresentar certo acúmulo de anos começaram a ser vistas como incompatíveis com
essa nova engenharia social, já que esta passou a exigir do ser humano vigor
físico e muita disposição para o trabalho extenuante, a ser desempenhado nos
primeiros momentos do processo de industrialização.
Assim, incapazes de participar
desse processo por conta de suas condições de saúde e, nessas condições,
dependentes dos outros familiares, especialmente as mulheres, as quais
precisavam sair de suas casas para trabalhar nas indústrias, situaram-se numa condição
de fardo familiar e social, já que obstaculizavam novas relações sociais que
precisavam ser consolidadas por meio de um novo modelo de organização
doméstica, exigência de uma nova sociedade em formatação.
Sem pessoas para ampará-los em
seus lares e representando um estorvo ao deslocamento de mão-de-obra feminina
necessária às indústrias, foram entregues a asilos, instituições que abrigavam
todos os indivíduos considerados sem utilidade social, a exemplo dos mendigos,
deficientes mentais e físicos e doentes incuráveis.
Por óbvio que essa condição
inicial dos velhos na modernidade não lhes asseguraria a construção de um
imaginário positivo. É por isso que, ainda hoje, associamos a idéia do velho
àquilo que não tem valor, que tem pouca ou nenhuma utilidade e que, portanto,
pode ser descartado. Tanto que nos discursos cotidianos, a todo instante,
existe o desejo inconsciente e, muitas vezes, até mesmo consciente de descartar
e desvalorizar o velho, favorecendo sempre o novo como algo melhor.
É para enfrentar essa idéia,
fortemente enraizada na história, que se deve concentrar forças no sentido de
sua superação, de modo que principalmente as pessoas, e não propriamente as
coisas, pois não são delas que se está falando, passem a ter um novo valor na
sociedade. Como, então, assegurar aos velhos
algum valor no momento atual em que o conhecimento é tão dinâmico e provisório,
o que torna a experiência, algo que muitos velhos possuem de sobra, algo
completamente descartável?
2. RESSIGNIFICANDO A VELHICE: os
direitos fundamentais como estratégia para superação do velho como ser do
passado
Até hoje a velhice é associada à
experiência. Poucas pessoas não fazem essa ligação imediata. Quando se pergunta
o que a velhice traz de bom ao ser humano, porque o que traz de ruim todos
sabem e são capazes de arrolar um verdadeiro rosário, respondem de forma
envergonhada: a experiência. Contudo, atualmente, a experiência realmente
significa um ganho para a pessoa idosa?
É um contexto de grande dinâmica
social, as coisas e as pessoas mudam a cada dia. As idéias e as visões de mundo
tornaram-se praticamente descartáveis. Formas de organização social, até então
alimentadoras de esperanças, desaparecem no ar, como em um passe de mágica.
Nesse contexto, é essencial discutir se realmente a experiência ainda pode ser
traduzida como um ganho para a pessoa idosa.
Ora, se nem mais a experiência
resta como um consolo para a velhice, o que fazer para tornar essa etapa da
vida uma fase em que efetivamente valha a pena viver e usufruir? (há alguma
coisa a ser usufruída, ainda?). Pois é, a velhice, por incrível que pareça,
ainda é uma fase da vida e, portanto, necessita ser vivida com dignidade.
A alternativa por meio da qual é
possível tirar a velhice desse impasse, quer dizer, de ser vista como uma fase
da vida de desvalorização do ser humano, em que só há praticamente perdas
(doenças de toda ordem, fragilidade, abandono, discriminação, desrespeito) e a
percepção de que apenas a experiência é agregada como algo positivo, a qual,
inclusive, na sociedade contemporânea corre o risco de perder esse status em
razão de a inovação e a mudança terem mais valor, é reconhecer a velhice como a
própria garantia do direito à vida, como a afirmação do ser humano como um ser
moral, do qual não podem ser retiradas as condições essenciais de existência
eliminadoras de situações de sofrimento.
Pois bem. Os velhos têm direito a
não sofrer, ou sendo o sofrimento inevitável, a sofrerem o mínimo possível.
Para isso existem as tecnologias, as instituições, as quais devem garantir os
direitos essenciais e permitir que as pessoas tenham acesso ao melhor sistema
de saúde possível, ao melhor tratamento existente, a relações familiares livres
de violência, a serviços públicos eficientes e racionais.
Somente com o reconhecimento de
que o ser humano durante toda a sua existência é titular de direitos
fundamentais será possível reverter o processo consoante o qual os velhos são
percebidos como seres inúteis, não importantes.
Esse é o caminho para construir
um novo velho, um velho que não traz no acúmulo de anos a idéia de que seu
tempo já passou, pois apesar de muito tempo vivido, continua vivo e
participando do aqui e do agora, tendo, portanto, direito a todos os bens e
benefícios gerados pelo tempo histórico de sua existência.
3. O RISCO DE SER VELHO NA
SOCIEDADE BRASILEIRA: não há velhice, há velhices.
Ora, se se pretende privilegiar
uma concepção diferente do envelhecimento, a de reconhecimento de direitos
fundamentais como atributo inerente a todo o ser humano, necessita-se criar as
condições para que todo o ser humano possa usufruir os direitos dos quais são
titulares, porquanto apenas o discurso, pelo menos no sentido raso que
costumeiramente é entendido, é insuficiente para assegurar aos seres humanos
essa nova condição.
É preciso ter essa cautela em
virtude do fato de as pessoas serem diferentes e se encontrarem, também, em
situações muito díspares, tanto que, em relação ao processo de envelhecimento,
não é correto falar em velhice, mas sim em velhices.
A velhice é um fenômeno
heterogêneo por excelência. Basta analisar o cenário que circunda o observador
para se constatar que há velhos ricos e velhos pobres; velhos com família e
velhos sem família; velhos com poucos problemas de saúde e velhos com muitos
problemas de saúde; velhos vítimas de violência e velhos que não são vítimas de
violência; velhos que vivem com suas famílias e velhos que vivem em
instituições asilares e, muitas vezes, até nas ruas pedindo esmolas; velhos com
idade muito avançada e velhos ainda mais jovens, se comparados aos que já
acumulam muitos anos, enfim, a velhice propõe um cenário de grande riqueza de
percepção.
Todas essas condições em que se
encontram as pessoas com muitos anos acumulados impõem formas diferentes de vida,
decorrentes de dificuldades muitos específicas. Em sendo assim, as ações da
sociedade e do Estado devem ser desenvolvidas no sentido de ajudar os velhos a
enfrentarem de modo adequado essas dificuldades.
Para que serve um tipo de
política voltada para idosos na família em que a família desse idoso é
completamente desestruturada? De pouco adiantarão as ações desenvolvidas se a
sociedade e o Estado não colocarem à disposição desses velhos os serviços, os
equipamentos e os recursos humanos para atender eventuais necessidades não
albergadas pela família. A própria Constituição Federal de 1988, quanto a esse
ponto, foi sabiamente redigida. Nela é possível encontrar dispositivo no qual
fica estabelecido que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar
as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua
dignidade e bem-estar, garantindo-lhes o direito à vida.
Não há disposição mais categórica
na Constituição de 1988 quanto à necessidade de comprometimento simultâneo da
família, da sociedade e do Estado no desenvolvimento de ações voltadas à
garantia da dignidade da pessoa idosa. Em não tendo uma dessas instituições
condições de sozinha garantir os direitos das pessoas idosas, as outras devem
agir disponibilizando os recursos que estão sob seu alcance para atender as
necessidades reais das pessoas idosas.
No cotidiano, entretanto, essas
ações compartilhadas ainda não são freqüentemente experimentadas, uma vez que
determinados atores estatais, especialmente, colocam obstáculos ao exercício de
sua responsabilidade em relação à pessoa idosa.
Muito recentemente houve um caso
em que a filha de uma senhora com mal de Alzheimer vinha enfrentando muitas
dificuldades para cuidar da sua mãe, a qual, em razão de sua doença, ficou
completamente dependente. Buscando apoio da Promotoria de Justiça para que
obrigasse o Poder Público a ajudá-la, através da contratação de um cuidador e
de outros profissionais, porquanto não mais conseguia trabalhar e nem mesmo
dormir, na medida em que sua mãe não permitia em razão da doença, não teve seu
pleito atendido por parte do Poder Público, por conta de uma série de desculpas
de falta de recursos. Tão-logo uma ação civil pública para obrigar o poder
público a disponibilizar os recursos humanos e materiais foi ajuizada, e
concedida a liminar para garantir o direito da filha de ser amparada pelo
Estado para melhor cuidar de sua mãe, a idosa veio a óbito, o que revela a
falta de compromisso dos atores estatais com a dignidade da pessoa humana,
apesar do que está estabelecido na Constituição Federal.
Situações como essa tendem a
aumentar, na medida em que o número de pessoas velhas no Brasil é cada vez
maior e, com ele, as conseqüências típicas do processo de envelhecimento,
dentre as quais doenças como Alzheimer e Parkinson, que comprometem gravemente
a lucidez das pessoas que acumulam muitos anos, deixando-as em situações de
grande vulnerabilidade, especialmente quando não possuem famílias estruturadas
ou, mesmo as tendo, não dispondo essas de estrutura adequada para ampará-las
adequadamente.
4. POLÍTICAS PÚBLICAS E
ENVELHECIMENTO: sem ações estatais racionais todos os direitos estão ameaçados
Como foi possível perceber,
envelhecer na sociedade brasileira ainda é um grande risco. Mesmo analisando o
envelhecimento como uma grande vitória, no Brasil, ainda possui sabor de
fracasso, de acordo com o confirmado no exemplo mencionado no item anterior.
Quando se registra que o
envelhecimento é uma grande vitória da humanidade e, conseqüentemente, da
sociedade brasileira, tem-se em mente que, há pouco mais de um século a
expectativa média de vida da população mundial e brasileira, da mesma forma,
não ultrapassava os trinta e cinco anos, quer dizer, as pessoas que nasciam
nesse período esperavam viver em média trinta e cinco anos, de modo que
alcançar essa idade era ser velho. Hoje, diferentemente desse período, a
expectativa de vida já se aproxima, mesmo no Brasil, dos oitenta anos, o que
quer dizer que as pessoas possuem mais tempo de realizar os seus projetos de
vida, desde, é claro, que tenham recursos adequados, dos quais, lamentavelmente,
a maioria não dispõe.
Esse quadro nos impõe um grande
desafio: exigir das agências estatais a implementação de políticas públicas
para o atendimento das necessidades específicas dos idosos, seja por meio de
oferta de instituições de longa permanência devidamente humanizadas, ainda
chamadas asilos, para pessoas velhas vítimas de violência na família ou pessoas
velhas sem família que não tenham condições de conviver em outros espaços
institucionais ou mesmo sozinhas; seja por meio da criação de outras
modalidades de atendimento, como casas-lares, oficinas abrigadas de trabalho,
serviços de atendimento domiciliar, casas de passagens, dentre tantos outros.
Portanto, como se percebe, a
qualidade do envelhecimento de uma população significativamente heterogênea
como a brasileira, depende de políticas públicas, quer dizer, de ações estatais
voltadas ao atendimento das demandas do segmento envelhecido da população, o
qual necessita de serviços muito específicos, principalmente na área de saúde.
5. A VELHICE E O AMBIENTE
FAMILIAR: o sofrimento é o que há de comum em todas as fases da existência
No Brasil a grande maioria dos
idosos vive com a sua família. Contudo, é justamente nesse espaço em que são
mais atingidos em sua dignidade por meio de todas as formas de violência, as
quais podem ser, em rápida síntese, classificadas em psicológica, financeira e
física.
Os filhos, genros, noras e netos,
principalmente, e não somente os que são dependentes de álcool e outras drogas,
costumeiramente, muitas vezes para garantir seus padrões de vida ou mesmo
sustentar suas famílias, apropriam-se dos rendimentos dos idosos e de seus
bens, deixando-os em situação de grandes dificuldades. São muitos os idosos que
têm suas aposentadorias e pensões atingidas por empréstimos não autorizados por
eles, mas contraídos por seus familiares, em flagrante abuso de confiança. E,
mesmo diante dessas situações, as próprias vítimas não denunciam aqueles que
subtraem suas rendas em razão dos vínculos afetivos, os quais são completamente
ignorados pelos seus familiares.
Não bastasse a violência
financeira dos quais são vítimas, os idosos são intimidados a entregar os seus
bens aos seus descendentes ou mesmo a estranhos, por meio de várias formas de
chantagens, caracterizando um tipo de violência que chamamos de psicológica.
Ademais, a violência física
também faz parte do cotidiano de muitos velhos, principalmente dos acometidos
por alguma espécie de dependência física ou mental, decorrente do Alzheimer,
Parkinson, dentre outras. A própria imprensa constantemente exibe situações de
grande covardia praticadas ou por familiares ou por pessoas contratadas para
cuidar de pessoas idosas.
Trata-se de um cenário
relativamente novo em razão da grande quantidade de pessoas muito velhas hoje
presentes na sociedade brasileira e de sua incapacidade de esta sociedade, até
o presente momento, de oferecer recursos e um imaginário adequado para lidar
com esse novo contingente populacional bastante heterogêneo.
6. A VELHICE NO SÉCULO XXI:
assegurando direitos para todas as idades
Em virtude das grandes
desigualdades, principalmente sociais e econômicas, com as quais o Brasil ainda
se depara, a Constituição Federal de 1988, tradutora do grande pacto com os
direitos fundamentais, ainda não se fez valer suficientemente. Entretanto, com
o aprimoramento democrático, a percepção consoante a qual o ser humano é um ser
de direitos, independentemente de sua faixa etária, contribuirá para que, nos
próximos anos, a percepção sobre o processo de envelhecimento comece a mudar
para uma compreensão cada vez mais próxima da vontade constitucional.
Não se está impondo uma visão
otimista sobre o processo de envelhecimento, até mesmo porque ninguém, em pleno
gozo de suas faculdades mentais, pode dizer que é agradável ter osteoporose,
câncer, pressão alta, diabetes, Alzheimer, Parkinson, dentre tantas outras
enfermidades especialmente presentes na velhice.
Esses problemas irão se acentuar
na medida em que um número cada vez maior de pessoas alcançarem índices etários
cada vez mais elevados, mesmo diante da oferta de inúmeros medicamentos,
decorrentes dos avanços das tecnologias médicas, disponíveis para a diminuição
do sofrimento dessas pessoas.
Com um acentuado envelhecimento
da população, inevitavelmente, novos paradigmas surgirão, na medida em que os
velhos se tornarão atores políticos cada vez mais importantes e influentes na
sociedade.
O envelhecimento populacional
está preparando o terreno para uma verdadeira revolução dos idosos, a qual já
está transformando radicalmente o modelo de sociedade em que se vive. Basta
observar que estão surgindo novas perspectivas de organização da arquitetura
das cidades, voltados a derrubar barreiras arquitetônicas que representam
grande obstáculo à locomoção das pessoas com mobilidade reduzida, novos
sistemas de atendimento de saúde, os quais já estão a exigir novos
profissionais, novas tecnologias e medicamentos para fazer frente às doenças
que atingem principalmente as pessoas velhas.
Não bastasse isso, há toda uma
reflexão sobre o sistema previdenciário, o qual necessitará ser repensado
diante da situação inevitável de brevemente a sociedade apresentar mais pessoas
jubiladas que na ativa. Mesmo que medidas paliativas comecem a ser pensadas,
como o aumento da idade para aposentadoria, medidas mais definitivas precisam
ser articuladas, de modo a que sociedade não perca a sua funcionalidade.
Somente esses fenômenos já seriam
suficientes para demonstrar o poder transformador do processo de envelhecimento
populacional. Mas ele não para por aí. Quem cuidará dos idosos daqui a
cinqüenta anos se os jovens hoje e velhos de amanhã não quiserem mais ter
filhos e, quando os têm, não ultrapassam de dois? Por outro lado, com a mudança
do papel da mulher na sociedade a chamada cuidadora natural desaparecerá, o que
implicará no surgimento em grande escala de instituições para atendimento dos
idosos.
O perfil do idoso brasileiro no
século XXI cambiará significativamente, tanto mais porque a população envelhecida
deste século será muito mais velha, mais informada e mais dependente por
acumular mais anos, contudo, deixará, paradoxalmente, o legado de uma sociedade
mais estruturada e racional, o que não quer dizer mais afetiva, tudo
decorrência de uma nova reengenharia social. (Por Paulo Roberto Barbosa Ramos).
Fonte: A Voz do Cidadão. Acesso
em 20/2/2010.
http://www.portaldoenvelhecimento.org.br/