Sentados à beira do rio, dois
pescadores seguram suas varas à espera de um peixe. De repente, gritos de
crianças trincam o silêncio. Assustam-se. Olham para frente, olham para trás.
Nada. Os berros continuam e vêm de onde menos esperam. A correnteza trazia duas
crianças, pedindo socorro. Os pescadores pulam na água. Mal conseguem salvá-las
com muito esforço, eles ouvem mais berros e notam mais quatro crianças
debatendo-se na água. Desta vez, apenas duas são resgatadas. Aturdidos, os dois
ouvem uma gritaria ainda maior. Dessa vez, oito seres vivos vindo correnteza
abaixo.
Um dos pescadores vira as costas ao
rio e começa a ir embora. O amigo exclama:
- Você está louco, não vai
ajudar?
Sem deter o passo ele responde:
- Faça o que puder. Vou tentar
descobrir quem está jogando as crianças no rio.
Essa antiga lenda indiana retrata
como nos sentimos no Brasil. Temos poucos braços para tantos afogados. Mal
salvamos um, vários descem rio abaixo, numa corrente incessante de apelos e
mãos estendidas. Somos obrigados a cair na água e, ao mesmo tempo, sair à procura
de quem joga as crianças.
Incrível como os homens às
margens do rio conseguem conviver com os berros. E até dormir sem sobressaltos.
É como se não ouvissem. Se o pior cego é aquele que não quer ver, o pior surdo
é aquele que não quer escutar. Descobrimos que os responsáveis
pelos afogados não estão escondidos rio acima. Estão do nosso lado - e, muitas
vezes, somos nós mesmos. São os afogados morais, gente que não conhece o prazer
infinito da solidariedade. Não conhece o encanto de estender poucos centímetros
de braço e encostar os dedos nas estrelas. Tão fácil agarrar uma estrela,
refletida no brilho de quem salvamos por falta de ar.
Veio da Índia a frase do célebre
poeta Rabindranath Tagore sobre por que existiam as crianças. "São a
eterna esperança de Deus nos homens".
É preciso mesmo infinita paciência,
renovada a cada nascimento, para que se possa conviver com a apatia cúmplice.
Por sorte temos pescadores que, dia após dia, mostram como as crianças
sobrevivem nos homens. E como é doloroso o parto de um homem precoce no corpo
de um menino.
A voz de Milton é a própria
síntese do menino perdido no adulto; e do adulto perdido no menino. É a síntese
de quem se viu obrigado a pular na água para pescar a si mesmo. E nunca se
esqueceu e, por isso, não consegue tirar de seus ouvidos a sensação de que crianças
na água pedindo socorro, são a última voz de quem quase nunca tem voz.
Gilberto Dimenstein
http://www.percepcoes.org.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário