sábado, 27 de julho de 2013

A VELHICE NO SÉCULO XXI


Considerações preliminares sobre os desafios dos velhos no século XXI para o reconhecimento de sua dignidade e garantia de seus direitos

1. A CONSTRUÇÃO DA IDÉIA DE VELHICE: refletindo sobre o passado para compreender o presente
Nestes mais de dez anos de atuação na defesa dos direitos das pessoas idosas pude constatar o quanto o ser velho é alvo de preconceitos e discriminações, muitos dos quais alimentados pelas próprias pessoas de idade avançada, que, não raras vezes, negam a sua condição, especialmente quando isso convém, fazendo com que se torne recorrente a expressão consoante a qual “todos querem viver muito, mas ninguém quer ser velho”.

Esse tipo de comportamento possui origem nos momentos iniciais de articulação da consolidação do modelo de sociedade capitalista, dentro da qual as condições para o envelhecimento se apresentaram, a exemplo da idéia de higiene, saneamento básico, tecnologia médica, especialmente por meio das vacinas, porquanto as pessoas que passaram a apresentar certo acúmulo de anos começaram a ser vistas como incompatíveis com essa nova engenharia social, já que esta passou a exigir do ser humano vigor físico e muita disposição para o trabalho extenuante, a ser desempenhado nos primeiros momentos do processo de industrialização.

Assim, incapazes de participar desse processo por conta de suas condições de saúde e, nessas condições, dependentes dos outros familiares, especialmente as mulheres, as quais precisavam sair de suas casas para trabalhar nas indústrias, situaram-se numa condição de fardo familiar e social, já que obstaculizavam novas relações sociais que precisavam ser consolidadas por meio de um novo modelo de organização doméstica, exigência de uma nova sociedade em formatação.

Sem pessoas para ampará-los em seus lares e representando um estorvo ao deslocamento de mão-de-obra feminina necessária às indústrias, foram entregues a asilos, instituições que abrigavam todos os indivíduos considerados sem utilidade social, a exemplo dos mendigos, deficientes mentais e físicos e doentes incuráveis.

Por óbvio que essa condição inicial dos velhos na modernidade não lhes asseguraria a construção de um imaginário positivo. É por isso que, ainda hoje, associamos a idéia do velho àquilo que não tem valor, que tem pouca ou nenhuma utilidade e que, portanto, pode ser descartado. Tanto que nos discursos cotidianos, a todo instante, existe o desejo inconsciente e, muitas vezes, até mesmo consciente de descartar e desvalorizar o velho, favorecendo sempre o novo como algo melhor.

É para enfrentar essa idéia, fortemente enraizada na história, que se deve concentrar forças no sentido de sua superação, de modo que principalmente as pessoas, e não propriamente as coisas, pois não são delas que se está falando, passem a ter um novo valor na sociedade. Como, então, assegurar aos velhos algum valor no momento atual em que o conhecimento é tão dinâmico e provisório, o que torna a experiência, algo que muitos velhos possuem de sobra, algo completamente descartável?

2. RESSIGNIFICANDO A VELHICE: os direitos fundamentais como estratégia para superação do velho como ser do passado
Até hoje a velhice é associada à experiência. Poucas pessoas não fazem essa ligação imediata. Quando se pergunta o que a velhice traz de bom ao ser humano, porque o que traz de ruim todos sabem e são capazes de arrolar um verdadeiro rosário, respondem de forma envergonhada: a experiência. Contudo, atualmente, a experiência realmente significa um ganho para a pessoa idosa?

É um contexto de grande dinâmica social, as coisas e as pessoas mudam a cada dia. As idéias e as visões de mundo tornaram-se praticamente descartáveis. Formas de organização social, até então alimentadoras de esperanças, desaparecem no ar, como em um passe de mágica. Nesse contexto, é essencial discutir se realmente a experiência ainda pode ser traduzida como um ganho para a pessoa idosa.

Ora, se nem mais a experiência resta como um consolo para a velhice, o que fazer para tornar essa etapa da vida uma fase em que efetivamente valha a pena viver e usufruir? (há alguma coisa a ser usufruída, ainda?). Pois é, a velhice, por incrível que pareça, ainda é uma fase da vida e, portanto, necessita ser vivida com dignidade.

A alternativa por meio da qual é possível tirar a velhice desse impasse, quer dizer, de ser vista como uma fase da vida de desvalorização do ser humano, em que só há praticamente perdas (doenças de toda ordem, fragilidade, abandono, discriminação, desrespeito) e a percepção de que apenas a experiência é agregada como algo positivo, a qual, inclusive, na sociedade contemporânea corre o risco de perder esse status em razão de a inovação e a mudança terem mais valor, é reconhecer a velhice como a própria garantia do direito à vida, como a afirmação do ser humano como um ser moral, do qual não podem ser retiradas as condições essenciais de existência eliminadoras de situações de sofrimento.

Pois bem. Os velhos têm direito a não sofrer, ou sendo o sofrimento inevitável, a sofrerem o mínimo possível. Para isso existem as tecnologias, as instituições, as quais devem garantir os direitos essenciais e permitir que as pessoas tenham acesso ao melhor sistema de saúde possível, ao melhor tratamento existente, a relações familiares livres de violência, a serviços públicos eficientes e racionais.

Somente com o reconhecimento de que o ser humano durante toda a sua existência é titular de direitos fundamentais será possível reverter o processo consoante o qual os velhos são percebidos como seres inúteis, não importantes.

Esse é o caminho para construir um novo velho, um velho que não traz no acúmulo de anos a idéia de que seu tempo já passou, pois apesar de muito tempo vivido, continua vivo e participando do aqui e do agora, tendo, portanto, direito a todos os bens e benefícios gerados pelo tempo histórico de sua existência.

3. O RISCO DE SER VELHO NA SOCIEDADE BRASILEIRA: não há velhice, há velhices.
Ora, se se pretende privilegiar uma concepção diferente do envelhecimento, a de reconhecimento de direitos fundamentais como atributo inerente a todo o ser humano, necessita-se criar as condições para que todo o ser humano possa usufruir os direitos dos quais são titulares, porquanto apenas o discurso, pelo menos no sentido raso que costumeiramente é entendido, é insuficiente para assegurar aos seres humanos essa nova condição.

É preciso ter essa cautela em virtude do fato de as pessoas serem diferentes e se encontrarem, também, em situações muito díspares, tanto que, em relação ao processo de envelhecimento, não é correto falar em velhice, mas sim em velhices.

A velhice é um fenômeno heterogêneo por excelência. Basta analisar o cenário que circunda o observador para se constatar que há velhos ricos e velhos pobres; velhos com família e velhos sem família; velhos com poucos problemas de saúde e velhos com muitos problemas de saúde; velhos vítimas de violência e velhos que não são vítimas de violência; velhos que vivem com suas famílias e velhos que vivem em instituições asilares e, muitas vezes, até nas ruas pedindo esmolas; velhos com idade muito avançada e velhos ainda mais jovens, se comparados aos que já acumulam muitos anos, enfim, a velhice propõe um cenário de grande riqueza de percepção.

Todas essas condições em que se encontram as pessoas com muitos anos acumulados impõem formas diferentes de vida, decorrentes de dificuldades muitos específicas. Em sendo assim, as ações da sociedade e do Estado devem ser desenvolvidas no sentido de ajudar os velhos a enfrentarem de modo adequado essas dificuldades.

Para que serve um tipo de política voltada para idosos na família em que a família desse idoso é completamente desestruturada? De pouco adiantarão as ações desenvolvidas se a sociedade e o Estado não colocarem à disposição desses velhos os serviços, os equipamentos e os recursos humanos para atender eventuais necessidades não albergadas pela família. A própria Constituição Federal de 1988, quanto a esse ponto, foi sabiamente redigida. Nela é possível encontrar dispositivo no qual fica estabelecido que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar, garantindo-lhes o direito à vida.

Não há disposição mais categórica na Constituição de 1988 quanto à necessidade de comprometimento simultâneo da família, da sociedade e do Estado no desenvolvimento de ações voltadas à garantia da dignidade da pessoa idosa. Em não tendo uma dessas instituições condições de sozinha garantir os direitos das pessoas idosas, as outras devem agir disponibilizando os recursos que estão sob seu alcance para atender as necessidades reais das pessoas idosas.

No cotidiano, entretanto, essas ações compartilhadas ainda não são freqüentemente experimentadas, uma vez que determinados atores estatais, especialmente, colocam obstáculos ao exercício de sua responsabilidade em relação à pessoa idosa.

Muito recentemente houve um caso em que a filha de uma senhora com mal de Alzheimer vinha enfrentando muitas dificuldades para cuidar da sua mãe, a qual, em razão de sua doença, ficou completamente dependente. Buscando apoio da Promotoria de Justiça para que obrigasse o Poder Público a ajudá-la, através da contratação de um cuidador e de outros profissionais, porquanto não mais conseguia trabalhar e nem mesmo dormir, na medida em que sua mãe não permitia em razão da doença, não teve seu pleito atendido por parte do Poder Público, por conta de uma série de desculpas de falta de recursos. Tão-logo uma ação civil pública para obrigar o poder público a disponibilizar os recursos humanos e materiais foi ajuizada, e concedida a liminar para garantir o direito da filha de ser amparada pelo Estado para melhor cuidar de sua mãe, a idosa veio a óbito, o que revela a falta de compromisso dos atores estatais com a dignidade da pessoa humana, apesar do que está estabelecido na Constituição Federal.

Situações como essa tendem a aumentar, na medida em que o número de pessoas velhas no Brasil é cada vez maior e, com ele, as conseqüências típicas do processo de envelhecimento, dentre as quais doenças como Alzheimer e Parkinson, que comprometem gravemente a lucidez das pessoas que acumulam muitos anos, deixando-as em situações de grande vulnerabilidade, especialmente quando não possuem famílias estruturadas ou, mesmo as tendo, não dispondo essas de estrutura adequada para ampará-las adequadamente.

4. POLÍTICAS PÚBLICAS E ENVELHECIMENTO: sem ações estatais racionais todos os direitos estão ameaçados
Como foi possível perceber, envelhecer na sociedade brasileira ainda é um grande risco. Mesmo analisando o envelhecimento como uma grande vitória, no Brasil, ainda possui sabor de fracasso, de acordo com o confirmado no exemplo mencionado no item anterior.

Quando se registra que o envelhecimento é uma grande vitória da humanidade e, conseqüentemente, da sociedade brasileira, tem-se em mente que, há pouco mais de um século a expectativa média de vida da população mundial e brasileira, da mesma forma, não ultrapassava os trinta e cinco anos, quer dizer, as pessoas que nasciam nesse período esperavam viver em média trinta e cinco anos, de modo que alcançar essa idade era ser velho. Hoje, diferentemente desse período, a expectativa de vida já se aproxima, mesmo no Brasil, dos oitenta anos, o que quer dizer que as pessoas possuem mais tempo de realizar os seus projetos de vida, desde, é claro, que tenham recursos adequados, dos quais, lamentavelmente, a maioria não dispõe.

Esse quadro nos impõe um grande desafio: exigir das agências estatais a implementação de políticas públicas para o atendimento das necessidades específicas dos idosos, seja por meio de oferta de instituições de longa permanência devidamente humanizadas, ainda chamadas asilos, para pessoas velhas vítimas de violência na família ou pessoas velhas sem família que não tenham condições de conviver em outros espaços institucionais ou mesmo sozinhas; seja por meio da criação de outras modalidades de atendimento, como casas-lares, oficinas abrigadas de trabalho, serviços de atendimento domiciliar, casas de passagens, dentre tantos outros.

Portanto, como se percebe, a qualidade do envelhecimento de uma população significativamente heterogênea como a brasileira, depende de políticas públicas, quer dizer, de ações estatais voltadas ao atendimento das demandas do segmento envelhecido da população, o qual necessita de serviços muito específicos, principalmente na área de saúde.

5. A VELHICE E O AMBIENTE FAMILIAR: o sofrimento é o que há de comum em todas as fases da existência
No Brasil a grande maioria dos idosos vive com a sua família. Contudo, é justamente nesse espaço em que são mais atingidos em sua dignidade por meio de todas as formas de violência, as quais podem ser, em rápida síntese, classificadas em psicológica, financeira e física.

Os filhos, genros, noras e netos, principalmente, e não somente os que são dependentes de álcool e outras drogas, costumeiramente, muitas vezes para garantir seus padrões de vida ou mesmo sustentar suas famílias, apropriam-se dos rendimentos dos idosos e de seus bens, deixando-os em situação de grandes dificuldades. São muitos os idosos que têm suas aposentadorias e pensões atingidas por empréstimos não autorizados por eles, mas contraídos por seus familiares, em flagrante abuso de confiança. E, mesmo diante dessas situações, as próprias vítimas não denunciam aqueles que subtraem suas rendas em razão dos vínculos afetivos, os quais são completamente ignorados pelos seus familiares.

Não bastasse a violência financeira dos quais são vítimas, os idosos são intimidados a entregar os seus bens aos seus descendentes ou mesmo a estranhos, por meio de várias formas de chantagens, caracterizando um tipo de violência que chamamos de psicológica.

Ademais, a violência física também faz parte do cotidiano de muitos velhos, principalmente dos acometidos por alguma espécie de dependência física ou mental, decorrente do Alzheimer, Parkinson, dentre outras. A própria imprensa constantemente exibe situações de grande covardia praticadas ou por familiares ou por pessoas contratadas para cuidar de pessoas idosas.

Trata-se de um cenário relativamente novo em razão da grande quantidade de pessoas muito velhas hoje presentes na sociedade brasileira e de sua incapacidade de esta sociedade, até o presente momento, de oferecer recursos e um imaginário adequado para lidar com esse novo contingente populacional bastante heterogêneo.

6. A VELHICE NO SÉCULO XXI: assegurando direitos para todas as idades
Em virtude das grandes desigualdades, principalmente sociais e econômicas, com as quais o Brasil ainda se depara, a Constituição Federal de 1988, tradutora do grande pacto com os direitos fundamentais, ainda não se fez valer suficientemente. Entretanto, com o aprimoramento democrático, a percepção consoante a qual o ser humano é um ser de direitos, independentemente de sua faixa etária, contribuirá para que, nos próximos anos, a percepção sobre o processo de envelhecimento comece a mudar para uma compreensão cada vez mais próxima da vontade constitucional.

Não se está impondo uma visão otimista sobre o processo de envelhecimento, até mesmo porque ninguém, em pleno gozo de suas faculdades mentais, pode dizer que é agradável ter osteoporose, câncer, pressão alta, diabetes, Alzheimer, Parkinson, dentre tantas outras enfermidades especialmente presentes na velhice.

Esses problemas irão se acentuar na medida em que um número cada vez maior de pessoas alcançarem índices etários cada vez mais elevados, mesmo diante da oferta de inúmeros medicamentos, decorrentes dos avanços das tecnologias médicas, disponíveis para a diminuição do sofrimento dessas pessoas.

Com um acentuado envelhecimento da população, inevitavelmente, novos paradigmas surgirão, na medida em que os velhos se tornarão atores políticos cada vez mais importantes e influentes na sociedade.

O envelhecimento populacional está preparando o terreno para uma verdadeira revolução dos idosos, a qual já está transformando radicalmente o modelo de sociedade em que se vive. Basta observar que estão surgindo novas perspectivas de organização da arquitetura das cidades, voltados a derrubar barreiras arquitetônicas que representam grande obstáculo à locomoção das pessoas com mobilidade reduzida, novos sistemas de atendimento de saúde, os quais já estão a exigir novos profissionais, novas tecnologias e medicamentos para fazer frente às doenças que atingem principalmente as pessoas velhas.

Não bastasse isso, há toda uma reflexão sobre o sistema previdenciário, o qual necessitará ser repensado diante da situação inevitável de brevemente a sociedade apresentar mais pessoas jubiladas que na ativa. Mesmo que medidas paliativas comecem a ser pensadas, como o aumento da idade para aposentadoria, medidas mais definitivas precisam ser articuladas, de modo a que sociedade não perca a sua funcionalidade.

Somente esses fenômenos já seriam suficientes para demonstrar o poder transformador do processo de envelhecimento populacional. Mas ele não para por aí. Quem cuidará dos idosos daqui a cinqüenta anos se os jovens hoje e velhos de amanhã não quiserem mais ter filhos e, quando os têm, não ultrapassam de dois? Por outro lado, com a mudança do papel da mulher na sociedade a chamada cuidadora natural desaparecerá, o que implicará no surgimento em grande escala de instituições para atendimento dos idosos.

O perfil do idoso brasileiro no século XXI cambiará significativamente, tanto mais porque a população envelhecida deste século será muito mais velha, mais informada e mais dependente por acumular mais anos, contudo, deixará, paradoxalmente, o legado de uma sociedade mais estruturada e racional, o que não quer dizer mais afetiva, tudo decorrência de uma nova reengenharia social. (Por Paulo Roberto Barbosa Ramos).
Fonte: A Voz do Cidadão. Acesso em 20/2/2010.
http://www.portaldoenvelhecimento.org.br/

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