domingo, 29 de dezembro de 2013

AS RELAÇÕES AFETIVAS SÃO NECESSÁRIAS PARA OS DOENTES DE ALZHEIMER


A mudança emocional que sacode as famílias e os doentes é tão ou mais impactante que a própria patologia. Com a chegada do esquecimento, surgem muitas dúvidas.

"Constantemente nos perguntamos quais são seus sentimentos", explica Manel Mañós. Ele tem 87 anos e sua mulher, Laura, morreu com Alzheimer. "Vivemos uma história de muita dor, mas também de compreensão e muito amor", acrescenta.

A doença vai modificando o humor, o comportamento e o tipo de relação do enfermo com seu entorno social e seus familiares, especialmente com o cônjuge. Como a doença do esquecimento afeta as relações afetivas? O amor adquire um novo significado? Está comprovado que quando o doente de Alzheimer recebe estímulos, como escutar uma melodia de sua juventude, consegue despertar um sorriso. Mas que papel um estímulo emocional tão importante como desfrutar do amor conjugal tem na evolução da doença?

Pouco a pouco, a doença vai desfazendo a personalidade do paciente.
Desde a fase inicial, com os primeiros esquecimentos e, em muitos casos, apatia e depressão, até as mais avançadas, nas quais há uma deterioração física maior e se observam também transtornos do comportamento, o doente e seu entorno familiar passam por um grande processo emocional.

"Para mim, o Alzheimer tem dois momentos: a morte da personalidade e a morte física", afirma Mañós, que era muito apaixonado por sua mulher e fica com os olhos embotados ao lembrar-se dela. "Era muito linda", afirma. "Quando a doença apareceu, o projeto de vida que tínhamos para depois da aposentadoria desapareceu. Eu me informava e tentava me colocar em seu lugar, raciocinar e pensar o que eu sentiria se fosse ela, como eu gostaria que me tratassem. Você tenta devolver à pessoa a vida que a doença está lhe roubando", explica Mañós.

"As emoções do doente de Alzheimer são um terreno ainda bastante inexplorado. As pesquisas se preocupam muito com a cognição, mas não com a emoção", afirma Javier Olazarán, neurologista e principal pesquisador da Fundação María Wolff, onde dirige um projeto que avalia o efeito do prazer sobre o bem-estar do doente de Alzheimer.

Conforme a doença avança, "começam a ver-se afetadas as manifestações mais complexas de afetividade, ligadas ao pensamento mais elevado, como a iniciativa, a motivação ou a capacidade de compreender o que os outros sentem. Sabemos que respondem com menos intensidade, o que não quer dizer que sintam menos", diz o neurologista.

"Os doentes de Alzheimer conservam uma vida afetiva muito mais rica do que a que aparentam porque mantêm as estruturas cerebrais envolvidas com a vida emocional, que demoram mais para se deteriorar", explica José Manuel Martínez-Lage, professor honorário de neurologia da Universidade de Navarra. "O paradoxo está em como expressam suas emoções: suas respostas são mais pobres ou anormais", explica.

Nem todos os doentes sentem da mesma forma. "Dependendo de quais regiões forem afetadas, pode haver uma falta de motivação na hora de buscar estímulos prazerosos, algo que ocorre em 80% dos casos. Outros 20% sentem-se absolutamente desinibidos na hora de buscar prazer, seja por meio da comida, do contato com os outros e até mesmo do aumento da libido. A doença é caprichosa, e não sabemos por que em determinados casos aumentam alguns quadros ou outros", comenta Olazarán. Mercè Boada, chefe clínica do setor de doenças neurodegenerativas do hospital Vall d'Hebrón de Barcelona, também dirige a Fundação ACE, que atende 250 portadores de Alzheimer em seu centro-dia e cursos de memória. Mais da metade tem menos de 60 anos. "Com eles fomos aprendendo como são as relações afetivas e sexuais durante o transcurso da doença", explica Boada. "Precisam de afeto, contato físico e, definitivamente, do amor dos relacionamentos", confirma.

A psicóloga María Paz García Paniagua, da Associação de Familiares de Doentes de León (AFA León), concorda: "É possível que para o doente de Alzheimer alguns sentimentos, principalmente o carinho, sejam os únicos vínculos que os mantêm ligados à realidade que os circunda".

O amor estimula a memória. "Com uma vida afetiva ativa, a doença progride mais lentamente", afirma Martínez-Lage. Lembrar juntos da vida de casado, por exemplo, pode ser um bom estímulo. Sentir carícias, vozes e cheiros familiares e outros elementos de cumplicidade podem ter o poder de evocar a memória. "Durante muitos anos acreditou-se que o doente voltava a ser criança. Não é assim, e deve-se tratar o doente como o adulto que é, ainda que não se possa ouvir suas emoções, palavras e sentimentos da mesma forma", afirma Martínez-Lage. A doença constrói novas pontes, novas formas de cumplicidade. "Ter sido é uma forma de ser", acrescenta.

Apesar de a relação conjugal supor um estímulo para o doente, a outra face da moeda é como o parceiro vive a relação. Quando os olhos deixam de brilhar ao ver o rosto do outro, ou já não se lembra mais onde se conheceram, como foi a primeira vez, o nascimento de seu primeiro filho... Cair no poço do esquecimento da pessoa amada requer grandes doses de fortaleza.

O juramento de amor pode se fortalecer mais do que nunca, ou, ao contrário, desmoronar-se. Os transtornos de comportamento afetam a cada casal de forma diferente. "Você é jovem, se quiser pode ter outro marido, não se prenda por mim", disse há alguns dias Luis, que tem 60 anos e padece de Alzheimer, à sua esposa, María, de 48 anos, quando ela foi visitá-lo na instituição onde mora. "Nesse momento de lucidez, voltei a vê-lo novamente: a mesma generosidade pela qual eu havia me apaixonado voltou a aparecer", afirma María. Eles se apaixonaram loucamente há 18 anos. Lembra-se como deram valor a lutar para ficarem juntos e deixar para trás dois casamentos falidos.

Quando a doença chegou, começou a destruição. "Quando ele olha para mim acho que não me vê como sua mulher, mas como um apoio", afirma María, que reconhece que quando olha para Luis agora vê outra pessoa.

"A doença o roubou de mim, já não é a pessoa por quem me apaixonei", explica. "Chegou a um ponto em que ter relações era um tormento, porque tinha a sensação de que ele só queria se aliviar, e eu já não sentia nada". Custou muito para Maria levar Luis a uma instituição. Ela o visita todos os dias. Compartilham menos tempo, mas com qualidade.

Sentimentos como a solidão, o isolamento, a incapacidade de comunicar ou a vergonha são os piores companheiros para o doente e seu parceiro.

"Com freqüência, o cônjuge não consegue compreender a situação e se sente mal. Não quer se sentir como um objeto de desejo desconhecido, quando antes era conhecido e desejado", explica Boada. Não costumam contar isso a ninguém, mas quando o tema surge na consulta com Boada, a especialista nota que "tiram um peso dos ombros".

Explicam que seu marido ou esposa doente os procuram buscando carinho porque os reconhecem como uma pessoa próxima cujo contato lhes dá prazer e tranqüilidade. "Nesse contato também há memória", afirma.

A sexualidade é outro dos aspectos do casal que muda. "A pessoa com demência pode ter a mesma necessidade de contato físico que tinha antes, de continuar mantendo o mesmo ritmo em suas relações sexuais, mas a forma de comunicar isso pode ser diferente. Antes, por exemplo, se insinuaria a seu parceiro ou parceira propondo uma siesta, mas as vítimas da doença não conseguem se comunicar dessa maneira. Aproximam-se de seus parceiros, a quem ainda desejam, e os tocam, e isso pode acontecer no momento mais inoportuno, o que provavelmente gerará rejeição", explica Boada.

"O cônjuge são tem duas opções: viver isso de uma forma positiva, participando do jogo, ou pode pensar que está sendo usado e então rejeitar o outro", explica Boada. "Devemos educar o casal e a família, que devem compreender que manter a sensação de prazer é boa para a saúde do doente, e isso implica desfrutar da comida, do cheiro do café, do contato físico com os demais e de outros prazeres".

Uma das partes do cérebro afetadas pela doença é o lóbulo pré-frontal, que controla as relações com o entorno e por isso alguns doentes se comportam com maior desinibição. Em alguns casos chega a haver até uma aparente hiperatividade sexual. "Podem dizer à acompanhante ou enfermeira que gostam de seus peitos, chegam até a tocá-la com atrevimento, mas na realidade isso não significa nada", explica Boada.

"A masturbação em público, por exemplo, sobre a qual não se fala, mas que se vê com freqüência nos asilos, deve ser reconduzida, tratada com naturalidade, e deve-se ensinar ao doente que trata-se de algo privado e que portanto ele deve se retirar para seu quarto ou o lavabo", afirma.

Há tantas histórias de amor quanto doentes. Na Fundação ACE, os funcionários ainda se lembram do caso de um paciente de 75 anos que ia ao centro e participava de suas atividades terapêuticas. Ele havia sido diplomata. Sentava-se à mesa como um autêntico cavalheiro inglês, sempre vestido de terno, impecavelmente. Logo fez amizade com uma mulher também doente, a quem dava instruções, como se fosse sua secretária, para que cumprisse suas tarefas. Passavam dias de mãos dadas. Era enternecedor ver como ela lhe arrumava a gravata. Ao acabar o dia, saiam pela porta de mãos dadas e a surpresa chegava quando apareciam a esposa do diplomata e o marido da namorada, que vinham buscá-los. A troca de casais se dava com a maior naturalidade. Que sentimentos surgiram entre ambos? "Com certeza, uma sensação de serenidade, de compartilhar mais horas, compartilhar um projeto de vida comum", conclui Boada.

Doentes amam de uma forma desinibida que as famílias nem sempre entendem  - ( Mónica L. Ferrado).
http://portaldoenvelhecimento.org.br/

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