Um pai cuidadoso comigo, que fazia questão de ir me buscar no ponto do ônibus a um quilômetro de distância, quando eu voltava da faculdade, já próximo da meia-noite. Muitas vezes não havia assistido a nenhuma aula, só participado da agitação política, em 68, na rua Maria Antônia, São Paulo.
Alguns anos depois era ele que fazia questão de abrir o portão da garagem, para eu sair com o carro, por mais que eu insistisse para não fazer aquilo. Homem de pouco estudo, lia o jornal de ponta a ponta diariamente. Adorava meus amigos e, podendo, fazia sempre parte da roda.
Em julho de 1995 quatro anos
depois de sofrer um AVC, minha mãe faleceu; e um mês depois, no dia 7 de
setembro, ele acordou me dizendo que estava pescando com um amigo. Onde
papai? Ali… no riozinho atrás da casa. Mas papai, rio no asfalto?
É…pesquei muitos peixes. Eu e meu amigo…
Um frio percorreu meu corpo.
Naquele instante percebi que aquele novo amigo que com ele conviveria
durante quatro anos não era uma boa companhia. Mas que fazer?
Quando crianças e começamos a
andar em má companhia, os pais têm poder para nos afastar deles, mas
quando já adultos, e os vemos mal acompanhados, nada podemos fazer. Só
nos resta a resignação. E eu sabia: era um amigo que há tempos rondava
nossa casa, e com ele tentava fazer amizade. E meu pai se envolveu tão
fortemente com aquele amigo, que se esqueceu de nós, de nossa casa, de
mim.
Muito conhecido na cidade, um
dia voltou para casa trazido por um camburão da polícia. Seu pai não
queria voltar, o policial me disse. Disse que morava em Natal. Mas um
dos nossos o conhece… Ele havia feito vários exames, e no dia seguinte
levei-o ao médico para mostrá-los.
O médico atendia outros
clientes que também eram amigos daquele estranho senhor. E foi ali que
vim a saber seu nome: Sr. Alzheimer. Ele, dizia o médico, é do mal. E
era o responsável por meu pai ter se afastado de todos nós. E eu, àquela
altura já sabia: nada poderia fazer para romper aquela amizade.
Penso que ele se aproximou
daquele amigo por não suportar a saudade de minha mãe. Aquela nova
amizade era tão forte, que ele esqueceu minha mãe para sempre. Nunca
mais falou nela.
Em vez de lutar contra aquele
senhor que não saía de perto de meu pai, resolvi aliar-me a ele.
Morávamos em uma casa imensa, muito antiga, com portas e janelas
enormes.
E foi ali que ele e Alzheimer
encontraram uma porta que lhes possibilitava viajar através do tempo.
Achei aquilo tão fascinante, que resolvi viajar com eles. Freqüentemente
íamos à Revolução Constitucionalista de 32. Frequentemente meu pai me
convidava a ir com eles. Dizia: “feche, feche as janelas, menina, feche e
se atire no chão, que o inimigo está chegando”. Na mesma hora eu
fechava as grandes janelas da sala e me atirava ao solo. “Fique quieta,
não fale, que eles podem perceber nossa presença”. E eu ficava ali:
cinco, dez, quinze minutos, no escuro, esperando o inimigo ir embora.
Em 1932, um dos seus irmãos,
Chico, viera de Natal para lutar ao lado de Getúlio, enquanto meu pai
lutava por São Paulo. Por isso sua preocupação era não ferir o irmão em
algum combate. Quando íamos os três para a Revolução, ele repetia
sempre: “cuidado, cuidado que Chico pode estar nesse pelotão, veja bem
antes de atirar…”
Às vezes algum amigo ligava e
perguntava: “por que liguei tanto e você não atendeu? Ou: “por que você
demorou tanto a atender?” e eu precisava explicar: “eu estava lutando na
Revolução de 32…” O que sempre provocava risos do outro lado da linha.
Outras vezes era para o Cabo de
Santo Agostinho, litoral de Pernambuco, em 1945 que viajávamos. E ele
me ordenava: “apague as luzes, os alemães podem nos ver aqui…” E
ficávamos os três: ele Alzeheimer e eu no escuro, em silêncio, até que
ele se convencesse de que o inimigo fora embora e me desse ordem de
voltar a 1998.
Uma ocasião chegou um grupo de
amigos meus, e meu pai, muito preocupado, me chamou e cochichou em meu
ouvido: “esse pessoal não disse a senha…” Tentei tranqüilizá-lo: “papai,
são meus amigos, não se preocupe…” E ele muito apreensivo: “então peça e
anote o RG de cada um. Não diga a eles que meu nome é João. Não se pode
confiar em ninguém, aqui…”
De repente me chamou e disse:
“peça a eles que falem mais baixo…” E perguntei: Por que, papai? E ele,
com aqueles olhos verdes que tinham perdido completamente o brilho,
desde a morte de minha mãe, me olhou tristemente e respondeu: “eu estou
aqui camuflado…”
Um filho pode aprender muito
com um pai, mas sem dúvida alguma, aquelas últimas lições que dele
recebi sobre a fragilidade da vida, da lucidez, sobre a importância de
agarrar cada segundo que temos como se fosse o último, de valorizar cada
gesto delicado que nos vem de uma pessoa querida, talvez tenham sido as
mais valiosas de toda minha vida, pois não aprendi em nenhum livro,
aprendi com aquele homem simples, que tendo sido militar, era tão terno
quanto pode ser um jardineiro, ou um Poeta. Tão terno, tão doce quanto
deve ser um pai. Um verdadeiro Pai.
(Risomar Fasanaro – professora de lingua e literatura brasileira e portuguesa)
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