Historiadora relata a lida cotidiana da sua relação com sua
mãe, portadora de Alzheimer, institucionalizada, e os silêncios que se
instalaram, além da criatividade para continuar se comunicando.
Há
um bom tempo, venho associando esperança com esforço, metas, fracassos e
conquistas. Além dos desafios com os quais me deparei na trajetória da
minha vida, o trabalho e o cuidado exercidos com minha mãe nos últimos
anos me provocaram outro olhar e formulação do conceito dessa palavra
carregada de significados.
Desde os diagnósticos há anos de
Alzheimer e Parkinson, até a institucionalização de minha mãe, os
desafios foram muitos. Hoje, o maior obstáculo é o silêncio, e meu
desafio tem sido o de continuar me comunicando com ela.
Meu objetivo com este diário de 2011 consiste em relatar como se pode
lidar com os silêncios que vão se instalando nos portadores de
Alzheimer em uma determinada fase, a partir de estratégias que envolvem a
escuta, o carinho, o olhar e muita criatividade.
Compartilho com os leitores do Portal do Envelhecimento o meu diário de 2011, esperando que ele seja útil para quem enfrenta os mesmos desafios.
O silêncio se instalando
Hoje
percebi que o silêncio, o tom de voz mais baixo, a sensação de
desligamento prossegue. O que permanece é o sorriso e a surpresa
expressados quando na minha chegada, sempre a indagar: chegou agora?
Sinto que é preciso força, calma e discernimento para o estágio que
minha mãe se encaminha. Até eu escrevo pouco diante do novo vivenciado
nesses últimos dias. Vigor? Busco e encontro o suficiente para um dia de
cada vez. 01/09/2011
Missa e impaciência
Ontem, assisti a missa com minha mãe como faço todos os domingos. Ela
mostrou-se mais impaciente com a incapacidade de manusear o folheto
referente ao tema do dia. A todo instante reclamava de não conseguir
acompanhar o conteúdo escrito, o que me fez tomar uma atitude inédita
até então. Recolhi o folheto alegando que estava incorreto, na medida em
que não era o daquele dia, tendo o mesmo procedimento com o meu. Ela
ficou mais tranquila, embora manifestasse a sua frustração ao perceber
que não dominava tudo o que acontecia, irritando-se com isso. O que me
chamou a atenção foi o fato de ela cantar quase todas as músicas que
definitivamente não se encaixam no período da maior parte das lembranças
possíveis evocadas por ela. No caso, ela tem verbalizado sobre a
infância e o seu entorno. A sua memória musical está alojada numa fase
posterior, evidenciando com isso a descontinuidade dos circuitos
neuronais que vão se perdendo e se mantendo. Não se respeita a mesma
sequência! Isso me deixou feliz, pois existe mais repertório a ser
estimulado com atividades que ela ainda pode desenvolver. Na minha
“leiguice”, afirmo insistentemente que a neurologia constitui na ciência
do século XXI e que ela deve explicações a nós, aos familiares dos
portadores, a fim de oferecermos luz, voz e vida enquanto existir
possibilidades! 13/09/2011
Aniversário da minha mãe: festa no novo lugar!
No dia 21 de setembro de 2011 minha mãe completou 88 anos de
existência. Que a cada instante que abordávamos esse assunto, ela dizia
que ainda ia demorar, pois como sabemos ela há muito perdeu a noção de
tempo. Curioso que ela dizia: calma, o meu aniversário é em setembro, ainda falta muito para chegar lá!! Ou então: nossa, estou ficando velha, denotando com isso que possui algumas referências sobre a idade e tempo dela!
Decidi indagar dela, qual o bolo que desejava para tomar com café nesse
dia. Pensei logo no de fubá, um dos seus prediletos. Qual não foi a
surpresa, quando informou que queria um bolo de chocolate, recheado e
coberto com brigadeiro. E assim foi feito!
Na hora do lanche
coletivo, ficamos no aguardo de sermos chamadas e no momento exato, nos
dirigimos ao salão, enfeitado especialmente para ela! Uma música suave
tocava ao fundo e lentamente nos encaminhamos ao lugar de destaque, ou
seja, na frente do bolo. Velas assopradas, parabéns para a Antonia,
trovas recitadas por uma trovadora que lá reside, fotos - registros de
instantes de muita alegria, sinalizando para um ambiente repleto de
emoções diversas, perpassadas daquilo que posso chamar de sabedoria que
só as idosas daquele lugar possuíam e demonstraram naturalmente. Depois,
abrimos os presentes ganhos das netas Mariana e Clarissa, amigas
Cláudia, Regiane, cuidadora Nilva e outros mimos mais. Atônita e atenta,
minha mãe desfrutou de algumas horas nas quais teve desviados os seus
focos de preocupação: voltar para casa, rever a turma, avisar os seus
sobre o seu atraso e demora! Finalizamos o evento quando assistimos
juntas a missa da qual participa cotidianamente às 17 horas. Comungamos e
eu rendi graças a tudo e todos pelo privilégio de vivenciar mais um ano
de vida ao lado da minha mãe querida! 21/09/11
Sobre o meu aniversário com minha mãe
No dia 08 de outubro, eu completei 60 anos de vida! Reuni familiares
próximos e distantes, num local tranquilo e de forma simples celebramos a
data. Minha mãe esteve presente e sobre o comportamento dela, pontuo
que vale sinalizar alguns pontos, no sentido de gerar reflexões por
parte dos meus leitores, quando vivenciada situação similar. Ações:
assustada, ao chegar, denunciando um semblante de pânico, por não ter
domínio algum do lugar que se encontrava. Passado algum tempo (40
minutos), a sensação que deixava transparecer era de distância,
aparentando calma aos que dela se aproximavam. Depois, irritou-se com as
pessoas que indagavam dela se os conhecia. Como a reação era de
desconhecimento, a irritação teve sentido. Pedimos às pessoas que
evitassem esse tipo de diálogo e decidimos passear com ela, para que
explorasse o lugar, com jardim, flores, lagos, crianças e plantas que
ela aprecia muito. Em seguida, outra ação se manifestou: o desejo
incessante de retirar-se dali, porque era tarde, ela precisava ir para a
casa, podia chover e etc... A insistência foi tanta, que antecipamos os
parabéns a fim de que ela se retirasse para se acalmar. Assim foi feito
e assistimos a sua despedida com ares de cansaço e baixa tolerância
para ali permanecer.
Esse comportamento da minha mãe, levou-nos a
refletir sobre a sua presença em eventos dessa ordem, essencialmente meu
irmão e eu, os responsáveis diretos pela sua integridade física e
emocional. E sobre as resoluções tomadas, breve compartilharei com
vocês. 17/10/11
Observações sobre o comportamento da minha mãe no meu aniversário
Sempre procuro considerar sobre as situações vividas e delas extrair
lições positivas, no sentido de prosseguir na e para a vida possível,
mas sempre vida! Por isso, insisto muito sobre o desconhecimento que
existe sobre Alzheimer e como muitas vezes algumas atitudes tomadas
pelos responsáveis são vistas com desconfiança, suscitando julgamentos
precipitados derivados da ignorância reinante sobre esta patologia em
especial. Os julgamentos que me refiro na maioria das vezes não podem
ser considerados ofensivos, porque trazem consigo uma carga emocional
carregada de boas intenções. Por isso, é fundamental que, a pessoa que
assume o comando e responsabilidade direta sobre o portador, tenha
clareza disso, a fim de não desgastar-se com situações de confronto que
efetivamente não merecem a energia despendida, muito menos discussões e
rompimentos definitivos ou não.
Nesse cenário, o mais correto é
verificar o que pode ser feito pelo bem estar do portador e seus
cuidadores mais próximos. Então, no caso da minha mãe e das reações que
ela apresentou, meu irmão e eu decidimos que o melhor para ela, é ser
visitada no local onde passa a maior parte do tempo. Nele, conversar com
ela, desenvolver as atividades condizentes à realidade, passear pelos
jardins floridos, apreciar as flores e plantas, prosear com as pessoas
que cruzarmos e, ao nos recolhermos, cantar as músicas que ela gosta de
ouvir, ler trechos curtos dos livros lá deixados, manusear as
fotografias, contarmos os velhos e sempre novos "causos" engraçados, que
a fazem sorrir gostosamente. E se pedir para se deitar, acomodaremos
nossa querida da melhor maneira possível. Assim, desfrutaremos de
momentos infinitamente felizes dentro do que temos e podemos
desenvolver. 18/10/11
Mamãe - dores e desafios para o diagnóstico
Há sete dias minha mãe se queixou de dores nas costas. Como permanece
sentada a maior parte do tempo, pensei que fosse decorrente disso,
aliado aos dias frios, que promove mais sensibilidade na região
dolorida. Fizemos massagem com arnica gel, colocamos bolsa de água
quente, a fisioterapeuta fez uso de aparelhos indicados para isso. Mas
essas dores se estenderam para locais variados: parte superior, inferior
das costas, nos glúteos, coxas, pernas, nos quais realizamos
procedimentos similares aos mencionados. Por várias vezes ela chorou,
principalmente quando fazíamos o movimento de retirá-la da cadeira para
dirigir-se ao banheiro, à cama, ao banho e outros espaços. E era um
choro com sinais de dor! Outro sintoma surgiu: a vontade de fazer xixi
várias vezes sem obter êxito na ação desejada. Pelo fato de frequentar
cursos focados no envelhecimento, suspeitei de problemas relacionados à
parte urinária. Fiz contato com a geriatra, solicitei um pedido de exame
de urina e agilizei a parte burocrática para tal. Sugeri o mesmo em
caráter de urgência, porque o semblante da minha mãe estampava dor e era
preciso diagnosticar o que sentia. Passado um dia, vimos no resultado
que uma infecção urinária provocou tais sintomas. Para aliviar a dor,
uma injeção foi ministrada até que o resultado do segundo exame fique
pronto. Tal injeção amenizou as dores, as queixas e aquela imagem de
dor, de alguém pedindo colo, caminhos e soluções. Sobre o revelado no
outro exame, falaremos brevemente.
Até agora, o que aprendi foi que
devemos e precisamos ficar atentos aos reclames do portador, sem
diminuir os cuidados e sensibilidade diante de um quadro de queixa. E
essa escuta atenta e sensível decorre da atenção que o cuidador devota
ao portador. A comunicação entre cuidador, familiares e responsáveis
dos lugares onde vive o portador de Alzheimer é fundamental para que o
sucesso aconteça! Sobremaneira, que o cuidador possua noções elementares
sobre cuidados voltados para o portador. 20/10/11
Sobre a nova fase - observações e comentários
Como havia mencionado, minha mãe encaminha-se para um tempo de mais
silêncio, no qual outros desafios despontam, no sentido de encontrarmos
sinais de comunicação, a fim de que o diálogo se estabeleça e prossiga.
No momento, tenho percebido, por tentativa, acertos e erros, que a
melhor conduta é a de olhar, tocar o seu rosto, segurar as suas mãos e
esperar que ela emita algum sinal de fala. Então, inicio a nossa
conversa, sempre como resposta ao que ela verbaliza, num tom de voz mais
baixo, solicitando muita atenção e cautela. Isto porque, notei que,
quando me comporto como nos últimos meses, ela fica muito irritada, pois
percebe que não se lembra mais de pessoa alguma, de objetos, cidades e
fatos diversos que antes eram os pontos centrais dos nossos bate papos.
Por isso, no momento tento buscar um novo jeito de nos comunicarmos.
Ontem, por exemplo, mostrei um porta retrato com foto da sua mãe e irmã.
E indaguei sobre elas. Minha mãe reconheceu a própria mãe e não se
lembrou da irmã. Fui dando algumas pistas sobre a irmã esquecida e
devagarzinho ela recordou o nome e alguns fatos relativos a ela. Também
cantei músicas do tempo dela, que ela correspondeu cantando junto, ainda
que baixinho, mas cantou: isto é o mais importante e necessário porque o
estímulo foi correspondido. O que indica que sempre há uma forma de
contato, desde que se tenha criatividade e boa vontade por parte de
todos os que convivem diretamente com o portador! 17/11/11
Silêncio e novas possibilidades
Conforme mencionado, o silêncio tem sido o sinal mais visível na
minha mãe. Silêncio nas palavras, nos gestos dando lugar a um desejo de
deitar e dormir, sempre alegando sono e cansaço.
Mas, como digo
sempre, eu insisto sobre outras janelas que podem e devem se abrir no
processo degenerativo da doença da minha mãe amada. Então, com atenção e
escuta sensível, percebi um brilho diferente e mais intenso no olhar
dela. Entendi que esta é a forma que ela encontrou de se comunicar.
Diante disso, o que fazer, como proceder para gerar comunicação
possível? Decidi olhá-la também com a profundidade e amor que sou
olhada, verificando que há tempos eu não olhava de forma tão vibrante
como nos olhamos agora. E assim vamos nós, brincado de amar dentro do
amor possível, mas amor gentil e verdadeiro. 22/11/11
O silêncio nas relações: criar é preciso!
Tenho observado que a cada dia, salvo algumas exceções, minha mãe
silencia gradativamente seguindo a literatura médica sobre Alzheimer e
seus estágios. No dela, o silêncio tem sido frequente, junto com um
caminhar lento, dificultado pela rigidez dos músculos, solicitando dos
cuidadores mais força e destreza, sobretudo mais cuidado no trato diário
desde as funções mais simples até as mais complexas.
Também acredito nas substituições, sempre possíveis se tivermos boa vontade e criatividade!
Diante desse cenário, fiquei pensando numa outra maneira de comunicação
com minha mãe querida. Particularmente no mês e comemorações que se
aproximam, refleti sobre uma maneira de materializar o tempo de Natal
com minha mãe e fazermos disso os votos de Feliz Natal. Principalmente
os dela aos nossos amigos, parentes e amigas dela dos tempos
sancarlenses...
Atitudes tomadas: busquei mensagem natalina que sei,
ela gostaria de compartilhar. Digitei, pois minha mãe perdeu a
habilidade de escrever... A professora aposentou lápis e cadernos... Mas
era preciso que a marca da minha mãe fizesse parte da mensagem.
Lembrei-me da alegria que sinto quando peço um beijo, juntamente com o
beijo da benção na minha chegada e partida. Deixei um espaço reservado
no papel que redigi. Num momento oportuno, passei batom nos seus lábios,
da cor que ela aprecia e pedi que beijasse o papel no lugar reservado
para tal. Pronto: a mensagem saiu! Brevemente os nossos amigos e
parentes receberão um beijo da minha mãe como presente-lembrança de
FELIZES FESTAS! 28/11/11
O Silêncio: a busca de alternativas para contato
O silêncio tem sido muito frequente no quadro da minha mãe. Como em
tudo o que diz respeito ao Alzheimer no Brasil é recente, há que se ter
cautela com os comportamentos apresentados no portador. Refiro-me ao
caso de esquecimento, pois muitas vezes o que imaginamos esquecido e
deletado, reaparece, pregando peças nas pessoas do convívio.
Buscando meios de comunicação, recorri a letras de músicas que minha mãe
aprecia. E foi uma tarde gostosa, porque ouvi a voz dela que há tempos
quase que desaparecera. Entoamos canções do tempo dela e uma que ela
gosta demais: a da formatura de professora primária! Revivi instantes de
um passado atualizado e posso dizer que neste dia o objetivo e recurso
valeram pela alegria estampada na fisionomia da minha mãe amada.
13/12/2011
(Vera Helena Zaitune é graduada em História, Mestre em Educação, Cuidadora da mãe, portadora de Alzheimer.)
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