Vivemos numa época dominada pelo
discurso publicitário, cujo objetivo maior é vender tudo, não raro ao preço de
ilusões completamente infundadas, mentiras que não resistem a um minuto de
análise sensata. O discurso publicitário contamina a mídia em geral, que por
sua vez atua sobre nossas consciências incautas, ou simplesmente carentes de
auto-engano.
Assim, passamos a empregar livre
e correntemente palavras e conceitos que servem antes de tudo para embaçar
nossa relação com a realidade, representá-la turvada por uma rede de mentiras e
ilusões nesse sentido afins ao discurso totalitário.
Bastaria pensarmos no sentido
verdadeiro de expressões correntes como “fogo amigo”, “bala perdida” (digam
isso a quem foi atingido por uma, ou a quem perdeu uma pessoa amada atingida
por uma) ou “terceira idade”. Pensemos ainda nos clipes publicitários que a
toda hora, a todo minuto, representam o consumidor como um ser investido de
onipotência. O limite é o nosso desejo. Se tomo uma Coca-Cola, converto-me
milagrosamente num super-herói; se tomo uma Skol, o prazer desce redondo
milagrosamente convertendo-me num Casanova de botequim…
Mas meu objetivo é concentrar a
matéria deste artigo em algumas das implicações submersas na expressão
“terceira idade” e variantes como “boa idade” e “adultescente”. Este talvez
seja um neologismo que eu possa humildemente reivindicar como sendo de minha
autoria, pelo menos no sentido em que o emprego.
Para mim, o adultescente é apenas
um adulador da adolescência. Esta idade, a adolescência, elevada pelo discurso
publicitário a ideal de vida, converte a velhice (usei enfim a palavra obscena,
o termo impronunciável) em autêntico pavor, espécie de assombração do processo
biológico que precisa ser a todo custo abafada.
Isso nos leva de volta ao uso da linguagem
como exercício de uma forma de vida mentirosa, uma forma de vida baseada na
ilusão e na mentira. O mais grave é que, no caso, lidamos com experiências
humanas inescapáveis, modos de ser que são constitutivos do processo biológico
que todos fatalmente vivemos.
Trocando em miúdos, qualquer
pessoa que tenha o privilégio (ou desgraça, depende sempre do ponto de vista de
quem fala e vive) de viver uma vida longa inevitavelmente atravessa os ciclos
da infância, da juventude e da velhice.
Mas parece que agora, possuídos
pela cultura narcisista e hedonista, refizemos o processo da seguinte maneira:
infância, adolescência, juventude e adultescência (agora no sentido de
regressão ao irregressível, já que desconheço o milagre do velho efetivamente adolescente).
Em suma, abolimos a velhice e estamos a
caminho de abolir a morte, obscenidade ainda mais impronunciável. Como todavia
a realidade é sempre imperativa, não há como suprimir a velhice. E já que é
impossível suprimi-la, resta-nos criar uma linguagem que a recusa, uma
linguagem que a representa como se não fosse, ou fosse outra coisa. É aí que o
publicitário entra em cena e cunha expressões do tipo “terceira idade”, ou “boa idade”.
Outro recurso empregado pela
ideologia corrente consiste em representar o idoso (perdão, quis dizer o membro
da terceira idade) como um ser útil ou como um consumidor feliz. Observem a
felicidade combalida dos idosos filmados em bailes da terceira idade. Observem
ainda as reportagens onde aposentados falam orgulhosamente do que fazem para
conservar-se ativos como parafusos lubrificados a serviço da grande e
monstruosa máquina do consumo.
Diante do quadro feliz e
harmonioso acima esquematicamente esboçado, incorro agora na atitude herética
de reivindicar para mim próprio o direito de envelhecer e morrer
conscientemente, envelhecer e morrer liberto do peso dessas ilusões lucrativas…
para os publicitários e comerciantes que nelas investem.
Falando baixinho, para não
escandalizar os jovens que têm pavor da velhice e os velhos que se refugiam no
espelho de uma juventude esgotada, um dos meus grandes sonhos é aposentar-me
para me entregar luxuriosamente, para me entregar deliciosamente à minha
inutilidade.
Como dizia Mário de Andrade, ele
que ironicamente trabalhou feito um mouro, quero desfrutar da divina preguiça.
Quero ser um aposentado para enfim conquistar a liberdade de ser inútil, de não
precisar mover-me como um parafuso disciplinado dentro da cadeia imperativa que
move a sociedade.
Quero ser um velho aposentado
liberto para desfrutar de prazeres suprimidos pela mentalidade utilitária que
vê em cada poema uma evasão criminosa da realidade, em cada canção um
desperdício de desocupado, em cada leitura de romance uma rendição à mentira ou
ao faz de conta.
Melhor dizendo, quero ser um
velhinho. Quero que minha namorada e meus amigos me chamem velhinho. Se a tanto
posso aspirar, quero que me amem como amamos um velhinho, que em mim considerem
a dignidade e o respeito que devemos a um velhinho humilde e humanamente vivo.
Quero ser um aposentado para ler
e reler todos os livros que requerem um tempo incogitável nesse mundo regulado
pelo tempo útil, o tempo dinheiro, o tempo competitivo, o tempo a serviço de
alguma finalidade alheia a quem o vive. Quero o tempo do aposentado inclusive
para encarar minha velhice sem falsas ilusões, como essas que a mascaram sob a
face neutra de termos como terceira idade e boa idade.
Quero enfim conquistar na velhice
um privilégio suprimido pelo mundo mesquinhamente utilitário em que vivemos:
quero viver o privilégio da inutilidade que pulsa na poesia de Drummond, num
romance de Machado de Assis, numa sonata de Beethoven, na música sublime de
Bach, numa caminhada à beira mar quando a noite desce com seus sortilégios e
promessas inefáveis…
(Fernando da Mota Lima é
professor de sociologia na Universidade Federal de Pernambuco. Blog:
fmlima.blogspot.com.)
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