"Podemos encontrar, nos
longevos, muitas qualidades dos infantes, mas nem por isso devemos subestimar
sua longa e densa história de vida"
Tenho
ouvido, com certa frequência, que aquele que viveu muitos anos de vida
"voltou a ser criança". Entendo que, em alguns casos, a intenção é
carinhosa; noutras, protetora e, eventualmente, chega a ter um tom pejorativo.
Em todos, porém, é equivocada.
O idoso, como todos, já foi criança um dia e
nunca mais voltará a sê-lo. Nem haveria por quê. É verdade que podemos
encontrar, nos longevos, muitas das qualidades que são frequentemente
manifestas pelos infantes, como a vivacidade, a inocência ou a impulsividade.
Nem por isso, no entanto, devemos subestimar a grande importância que tem a sua
longa e densa história de vida. Esta é, sem dúvida, uma das principais
características de quem vive muito: o grande acúmulo de experiências
pregressas, que se constituem na principal matéria-prima com que é construída a
identidade de cada um.
São as peculiaridades da sua composição, cada
vez mais acentuadas com o progredir do tempo e com qualidades e intensidades
ímpares, que caracterizam e identificam cada indivíduo. O conjunto de todas
essas particularidades vai, progressivamente, diferençando-nos dos demais e
tornando-nos cada vez mais parecidos com nós mesmos.
Esse
patrimônio cultural precisa ser reconhecido e respeitado por ser o principal
motivo pelo qual tomamos as nossas decisões e, em algum momento, em caso de
necessidade, gostaríamos que fosse levado em conta por quem viesse a tomá-las
por nós. Esse talvez seja o ponto principal que diferencia os idosos das
crianças, com as quais são erroneamente comparados.
Ao
idoso interessa muito o seu longo passado para que se possa planejar o futuro.
Na criança, tudo se relaciona, fundamentalmente, com o seu cada vez mais longo
futuro. Disso decorre a necessidade de diferenciar bem as duas situações,
embora as características de ambos possam parecer, circunstancialmente, as
mesmas. Se não é adequado que os idosos sejam comparados aos seus pares
etários, visto que, mesmo gêmeos idênticos, à medida que a idade avança, vão se
diferençando conforme os caminhos que forem trilhados, que dizer de que o sejam
às crianças apenas porque também não conseguem realizar suas atividades de
forma independente ou porque possuem algumas limitações para cumprir as tarefas
e funções da vida cotidiana?
Quando
os idosos assim são entendidos, a reação imediata é a de cercá-los de proteção
exagerada, o que acaba por tolher-lhes as capacidades que ainda estão presentes
e, o que é pior, inibe qualquer possibilidade de expressão que não seja a da
progressiva dependência. Mesmo quando essas atitudes são tomadas com a melhor
das intenções, tudo isso contribui para que, na maior parte das vezes, as
limitações se acentuem.
Cuidados desnecessários, linguagem com
excesso de diminutivos, voz afilada e constantes repreensões vão transfigurando
as relações pessoais e invertendo os papéis familiares e sociais. Erro crasso.
Não há por que infantilizar o idoso.
Melhor
seria conseguirmos ver a criança que esse idoso foi e que ainda vive em sua
memória. Segui-la até a juventude e a vida adulta e verificar que saudades tudo
isso lhe traz, que efeitos tiveram todos os anos que precederam o atual e qual
a extensão do seu patrimônio que ainda pode ser resgatado para tornar explícito
aquilo que lhe vai na alma.
Em
resumo, seria ótimo conseguirmos ver quem ele foi antes de aqui chegar. Se
conseguirmos agir dessa maneira com os idosos atuais, certamente os jovens do
futuro farão a mesma coisa conosco e então teremos mais chance, todos nós, de
saber para onde ir.
(WILSON
JACOB FILHO, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de
Geriatria do Hospital das Clínicas (SP), é autor de "Prática a Caminho da
Senecultura" (ed. Atheneu))
Ter carinho, mas respeitando a história de vida deste idoso. Difícil lição mas que é necessária aprender..
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