SINOPSE:
'O gueto' chega às mãos do público brasileiro na companhia de 'O eco da
minha mãe', procurando estabelecer um diálogo (em contraponto) entre
duas obras da escritora argentina Tamara Kamenszain. Se a primeira trata
da história de seu pai - e das questões pertinentes à herança paterna,
traduzidas no sobrenome que a autora traz consigo -, a segunda fala de
uma outra perda - que ecoa nas sucessivas mortes de uma mãe acometida
pelo Alzheimer. Por trás das leituras que se descortinam - numa
genealogia marcada pelo judaísmo e pelo cristianismo, da ficção à
autobiografia, ou entre tantas possíveis filiações literárias que se
diluem entre as fronteiras da ficção e da autobiografia -, os dois
livros aqui reunidos pretendem revelar uma poeta que definiu uma
linguagem e uma identidade próprias.
A POESIA NA LACUNA
Como nomear o desaparecimento? Como encontrar uma
palavra para o que se ausenta? “Ontem descobri que tinha me tornado
ainda menos eu para ela”, escreveu a argentina Sylvia Molloy, para
quem o esquecimento, a queda e a morte sustentam a escrita poética.
Não é só aquele que se despede que se desmancha e encolhe. Também
quem fica se achata e apequena. Suas palavras agora servem de
epígrafe a outra argentina, a poeta Tamara Kamenszain. Tanto Sylvia
como Tamara falam do esmaecimento do Eu, que o avançar dos anos
estraçalham, transformando em uma borra. Tamara usa as palavras de
Sylvia em um poema de O Eco da Minha Mãe (tradução de Paloma
Vidal, 7Letras), livro que vem em edição dupla com O Gueto (este
traduzido por Carlito Azevedo e pela mesma Paloma).
Envelhecer, avançar lentamente para a morte, é
suportar um Eu em destroços. Reféns do Alzheimer, mãe e filha se
desencontram no mesmo deserto, onde as palavras sobram como farelos e
onde toda tentativa de aproximação só produz uma distância maior.
Sei do que fala Tamara porque também eu tenho uma mãe que se perde
nos corredores do Parkinson. Difícil definir essa doença, dizem os
médicos. Parkinson? Alzheimer? Talvez os dois? A verdade é que
tanto faz. Não passam de diagnósticos com que os doutores lutam
para conter uma avalanche que os arrasta também. Um desmoronamento,
de que Tamara, mais esperta, faz poesia.
Restam os últimos esforços, a insistência no
movimento, a luta contra a lacuna que mãe e filha tentam vedar com o
teatro lamentoso do Eu. “Minha mãe copia o que era/ enquanto eu
plagiando o plagiário/ tento passar a limpo esse diário de vida/
que a autora dos meus dias escreve como pode”. Pergunto: é só a
mãe agonizante quem “escreve como pode”, ou não será isso, o
“como pode”, condição e fundamento de qualquer escrita? Não
duvido de que há um contraste entre a palavra que, mesmo frágil,
ascende, e a outra que, lutando para manter-se forte, decai. Escreve
Tamara a respeito: “sou agora a filha que cresce sem remédio/ pra
deixá-la decrescer tranquila entre os meus braços/ assim juntas
vamos nos separando”. Há um intervalo que, a cada avanço, se
acentua: um abismo. Há um “entre” – espaço neutro e abissal –
que, com a voracidade dos lobos, abre sua boca.
Sinto isso, cada vez mais, quando vejo minha mãe,
Lucy. Quanto mais dela tento me aproximar, e quanto mais ela luta
para se agarrar em mim, mais nos afastamos. Tem sido melhor, bem
melhor, o silêncio. Mesmo sem sono algum, quando a visito, ela
prefere conservar os olhos fechados. Simulando um sono, ou vestindo a
máscara em que, lentamente, se transforma? Para não me ver, ou para
não se ver? Na verdade, para não mirar a lacuna que se alarga entre
nós. Também Tamara a habita. Em seu belo prefácio aos dois livros,
Adriana Kanzepolsky assinala uma identidade: “poeta do entre”.
Identidade que, em vez de identificar, anula. Em vez de aproximar,
separa. Podemos atribuir ao Alzheimer, ao Parkinson, a qualquer nome
estranho que o doutor disser. De nada servem as palavras, o
desfiladeiro se abre e é cada vez mais íngreme, a descida
irreversível.
Em contraste com a agonia, as palavras se tornam
assombrosas. Segue, por mim, Tamara: “a gramática se torna um
escândalo/ quando ela que esqueceu as palavras/ adianta seu bebê
furioso/ a fim de dizer tudo/ mesmo que nada se entenda”. O desejo
do tudo – pesadelo da gramática comprimida em uma única sílaba –
só produz incompreensão. Melhor o silêncio, que não expõe essa
ferida. Melhor minha mãe de olhos fechados, mesmo viva e atenta.
Melhor a morte?
No primeiro livro, “O gueto”, Tamara se detém na
morte do pai. “Sigo para a luz/ dizia-me em sonho meu pai morto./
Seu sorriso se esfumava em dupla lonjura/ trazia no entanto uma
tranquilidade luminosa:/ havia uma mensagem literal/ enunciando
claríssimo onde a luz é a luz é a luz é a luz”. Só a morte é
fixa. Talvez (insuportável) só a morte admita a palavra definitiva:
a própria palavra morte. Já que todas as outras palavras se movem
sem parar, e se rasgam em múltiplos sentidos. Manobras tensas, mas
belas, a que Tamara se entrega com volúpia.
Não é só a doença (sonho dos médicos) que nos
adoece: a vida, antes dela, bem antes, também. “Deus escreve a
diferença/ no espelho da desordem genética”, nos diz Tamara.
“Diferença idêntica/ faz rir de tanto nos parecermos”. Estamos
diante do mito da espécie, como se todos fôssemos assinalados pela
mesma luz, em vez de carregar, cada um, com seu peso e à sua sorte,
uma luz diversa. Por isso as palavras se movem, enlouquecidas. Por
isso os poetas (Tamara) escrevem sem parar: em uma luta, fadada ao
fracasso, para agarrar a coisa. Resta-lhes a grade da linguagem.
Cheia de furos, por eles escorre o que não vemos. Nela sobrevivemos.
Prossegue Tamara: “Deus nos arquivará diferentes/ em seu livro dos
parentescos”. Em “O gueto”, a poeta luta para entender de que
modo se enredou – de que modo foi arrastada – pela morte do pai.
É ele agora quem morre, ou mais: quem já morreu. Pais quase sempre
morrem primeiro.
A própria morte, porém, nos engana com sua
ilusão de conclusão. Constata Tamara: “O que é um pai?/ Com a
primeira estrela/ chega o shabbat/ e ainda não tenho resposta”. A
poeta sabe que deve persistir na busca, não até o dia em que
encontrará a resposta, mas até o dia em que conseguirá esquecer a
pergunta. “Eles se dispersaram, mas eu/ filha de Tuvia ben
Binjamin,/ continuarei buscando acordada/ para depois/ poder
esquecer”. A morte promete Tudo, mas nos entrega o Nada. Como um
filme que abandonamos pelo meio, um livro de que rasgamos as últimas
páginas. Tentando observar o próprio luto, no cemitério judeu de
Buenos Aires, tudo o que a poeta vê é o imenso vazio - grande campa
que impõe o silêncio onde as palavras deviam estar. “Com cara de
cansado um rabino passa amassando/ a página de kaddish no bolso”.
Palavras: de nada servem. Restam suas migalhas, humanas, com que os poetas constroem suas túnicas. Inúteis: a lacuna não se deixa encobrir.
http://www.gazetadopovo.com.br/
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