segunda-feira, 12 de maio de 2014

MINHA ALMA


Eu não sei falar da vida, perdoem-me, pois só sei falar da minha alma. Alma de oitenta anos. Sou velha? Sozinha? Solitária? Solteira? Órfão de pais, sem irmãos. Tenho orgulho e alegria dos meus oitenta anos; gosto de rir, ler, flores, não de andar e assistir televisão.

Somos apenas complementos: não ser consoante, apenas vogal que doa a sonoridade no recurso da transformação. A transformação da velhice e a deformação dos corpos. É o instante da vida em que deixamos de ser a montanha para sermos um simples vale. O vale das montanhas do mundo dos homens. O instante em que a locomotiva será conduzida pelos vagões.

Sinto-me viva dentro da vida, com meus desejos ora calados. Deixar de desejar e só ter recordações. Isto se chama velhice. A mediocridade de um bem-estar assegurado e a certeza de nunca mais sonhar os sonhos dourados de uma mocidade. A certeza de não precisar ser virtude nem forte nem hipócrita. Não precisar... não precisar...apenas ser uma alma livre.

Quis. Não quero mais conhecer os homens e a profundeza de seus amores. Minha consciência que se submete. A submissão que se afirma. Estou consciente e submissa ao meu amor consciente e idílico pela humanidade, numa amplitude de homem desgastado, vivificado e de amor sem dor.

Hoje, sou livre para amar a humanidade e ser feliz no grande paradoxo de viver o meu momento filosófico quando a minha filosofia é desistir e ser apenas espectadora, para diluir-me na correnteza da vida, como a gota que se perde na massa d’água da correnteza. Sem precisar lutar e nem acertar. Sem procurar convencer. Sem enunciar meu pensamento.

Ser descolorida como o branco de meu avental para ser harmônica. Viver harmonicamente sem opções e oposições e desistir pela inutilidade que é resistir. Viver no outro e sempre o termo do outro. Esforço-me para não envelhecer. É difícil reconhecer que minha própria alma é um monstro sorrateiro que acabará por devorar minha própria segurança. Paz. Amo minha alma. Ela me serviu muito e de muitas maneiras.

As alucinações do medo da solidão ou as alucinações da esperança não conseguem me enfraquecer. São incômodas as alucinações. Prefiro as alucinações da confiança. Creio em mim. Confio em mim. Mas não quero recuperar o terreno perdido. 

Perdi as batalhas e desisti das guerras. Se não tiver alucinações de esperança não terei mais derrotas. Ainda não atingi a idade em que a vida é uma derrota consumada. Farei substituições. Não corro o risco das hesitações. Estou definida: começo a discernir o perfil da minha velhice.

Os nossos próprios demônios, os meus receios sejam a eles me entregar ou a eles resistir. As exigências e as servidões da escolha. A escolha de estar só. Os demônios da rejeição da raça humana. Alucinações de desamor, desmentidos meus sonhos de paz.

A paisagem seca de uma vida. Isenção de inquietação. Minhas disciplinas mentais me ajudam muito. O horror das discussões mentais demasiado segura da minha segurança um amor próprio imbecil não me conduz. Não quero as concessões vazias. 

Que as coisas sejam como depois da minha morte. Estou trabalhando a minha morte. Os piedosos, as meditações que induzem a crer que sua verdade é a verdade do outro. O encadeamento das coisas escapa de nosso controle. Austeridade, renúncia e morte nos mantêm tranqüilos.

Aprendi e ensinei que é muito mais fácil ser feliz do que sofrer.  Que todos chorem sossegadamente.
(Prefácio do Livro: A arte de envelhecer com sabedoria)

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