Somos apenas complementos: não ser consoante, apenas vogal que doa a
sonoridade no recurso da transformação. A transformação da
velhice e a deformação dos corpos. É o instante da vida em que
deixamos de ser a montanha para sermos um simples vale. O vale das
montanhas do mundo dos homens. O instante em que a locomotiva será
conduzida pelos vagões.
Sinto-me
viva dentro da vida, com meus desejos ora calados. Deixar de desejar
e só ter recordações. Isto se chama velhice. A mediocridade de um
bem-estar assegurado e a certeza de nunca mais sonhar os sonhos
dourados de uma mocidade. A certeza de não precisar ser virtude
nem forte nem hipócrita. Não precisar... não precisar...apenas ser
uma alma livre.
Quis.
Não quero mais conhecer os homens e a profundeza de seus amores.
Minha consciência que se submete. A submissão que se afirma. Estou
consciente e submissa ao meu amor consciente e idílico pela
humanidade, numa amplitude de homem desgastado, vivificado e de amor
sem dor.
Hoje,
sou livre para amar a humanidade e ser feliz no grande paradoxo
de viver o meu momento filosófico quando a minha filosofia é desistir
e ser apenas espectadora, para diluir-me na correnteza da vida, como a
gota que se perde na massa d’água da correnteza. Sem precisar
lutar e nem
acertar. Sem procurar convencer. Sem enunciar meu pensamento.
Ser
descolorida como o branco de meu avental para ser harmônica. Viver
harmonicamente sem opções e oposições e desistir pela inutilidade
que é resistir. Viver no outro e sempre o termo do outro. Esforço-me
para não envelhecer. É difícil reconhecer que minha própria alma é um monstro sorrateiro
que acabará por devorar minha própria segurança. Paz. Amo minha
alma. Ela me serviu muito e de muitas maneiras.
As
alucinações do medo da solidão ou as alucinações da esperança não conseguem me enfraquecer. São incômodas as alucinações. Prefiro as
alucinações da confiança. Creio em mim. Confio em mim. Mas não quero
recuperar o terreno perdido.
Perdi as batalhas e desisti das guerras.
Se não tiver alucinações de esperança não terei mais derrotas.
Ainda não
atingi a idade em que a vida é uma derrota consumada. Farei substituições.
Não corro o risco das hesitações. Estou definida: começo a discernir
o perfil da minha velhice.
Os nossos próprios demônios, os meus receios
sejam a eles me entregar ou a eles resistir. As exigências e as servidões
da escolha. A escolha de estar só. Os demônios da rejeição da raça
humana. Alucinações de desamor, desmentidos meus sonhos de paz.
A
paisagem seca de uma vida. Isenção de inquietação. Minhas
disciplinas
mentais me ajudam muito. O horror das discussões mentais demasiado
segura da minha segurança um amor próprio imbecil não me conduz.
Não quero as concessões vazias.
Que as coisas sejam como depois da
minha morte. Estou trabalhando a minha morte. Os piedosos, as meditações
que induzem a crer que sua verdade é a verdade do outro. O encadeamento
das coisas escapa de nosso controle. Austeridade, renúncia
e morte nos mantêm tranqüilos.
Aprendi
e ensinei que é muito mais fácil ser feliz do que sofrer. Que todos
chorem sossegadamente.
(Prefácio do Livro: A arte de envelhecer com sabedoria)
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