Recentemente o Alzheimer
conseguiu entrar sorrateiramente em mais um lar que eu conheço. Apesar de
conviver e brigar com ele há mais de dez anos, só pude dizer – Nossa! Que
audácia! – Mesmo assim, tentando entender esse inimigo, acabei fazendo as pazes
com ele.
O Alzheimer vai retirando
primeiro as lembranças, a consciência de si mesmo e deixa tudo o mais; os
parentes, a casa e o relógio. É um gueto feito de solidão, a vida vai ficando
cada vez mais incompreensiva e por isso mesmo, cada detalhe lembrado, como a
necessidade de fechar uma janela, é repetido à exaustão. Nesse campo de
concentração não se pode ao menos recordar o que já foi vivido. A cada dia um
carrasco vai retirando uma palavra, uma recordação, um nome amado, uma maneira
de fazer o trivial. À primeira mordida na consciência o seu espírito não tem
mais como vencer esse parasita voraz. Bom, mas o corpo está ali e a gente vai
esquecendo que a alma está presa num odioso lugar de onde não se sai nunca. É
até possível pensar em um letreiro: “Aqui jaz uma alma num corpo esquecido”.
Por mais cruel que pareça, o
Alzheimer é assim, ele revela o pior e o melhor de nós. No começa você briga
com o doente porque não entende as mudanças de comportamento, depois vem uma
raiva muito grande por não poder fazer nada, misturada com a ilusão de que o
diagnóstico está errado, e mais tarde ainda, o desânimo de cuidar, banhar,
trocar fraldas e escovar os dentes de alguém que representou o mais próximo do
invencível para você. Um belo dia, quando você pensa que a doença não pode mais
fazer surpresas, você cai, leva uma “porrada” da vida e ... O que é daquela
criatura que você vivia discutindo, mas que era capaz de injetar ânimo com
apenas uma frase?
O Alzheimer ri e diz. – Agora
sim, deixei você perverso ao ponto de enterrar uma pessoa viva. Porque hoje
bobinho você teve a certeza de que ela não está mais aqui. Agora você vai ter
atos falhos como: -“Quando a mamãe era viva”! E ela vai estar ali, olhando para
você com o coração batendo e o olho (que você tanto admirava) abrindo e
fechando e o corpo escultural vai estar vagando dentro de casa. Diga para mim
quem vai compreender um filho que esquece que a mãe está viva?
Alzheimer não sei se realmente
dou tudo de mim, mas o que faria no meu lugar? Tudo bem, não estou mais com
raiva de você! Não está compreendendo nada? Eu sei, vou explicar. Antes a sua
existência era para mim intolerável, mas vi que sem você jamais teria entendido
o que me foi revelado hoje. Companheiro, você apareceu aqui e por sua causa eu
tive de “ralar”, passar num estreitíssimo caminho, meu passado estava lá atrás
e o futuro eu não conseguia enxergar. Nessa peleja toda eu fui me modificando e
alcancei a forma capaz de ultrapassar essa estreiteza. Olhando para mim agora,
eu gosto do que vejo. Gosto do que me tornei e devo tudo isso a você. Esse era
o sentido. A vitória meu amigo, foi da sua “doente”, que viu você, Alzheimer,
ajudando a tornar os filhos dela, gente. (Lídia de Araújo Pinto Vieira).
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