"A busca desesperada do sentido
muitas vezes nos leva a bater na figura da porta ou entrar no labirinto. A porta é o elemento que se abre,
é a cisão, o corte que permite a passagem dos corpos, estabelece um dentro e um
fora, estabelece uma ligação. Porta em si a própria existência do espaço, o
inicio da vida.
Na antiga Escandinávia os
exilados levavam consigo as portas de suas casas, em alguns casos lançavam-nas
ao mar e desembarcavam no lugar onde encalhavam essas portas. Eram, a sua vez,
passagens e bússolas. Mas existem portas que não levam
ao nada, num jogo sinistro, um labirinto composto de portas e passagens, como
no filme O cubo.
Na desorientação estamos
simultaneamente dentro e fora, ou simplesmente nem dentro nem fora. É essa
desconfortável sensação fora da lógica que define a sensação expressa por
Heidegger, do ‘eu’ se ver desagregar e se tornar um objeto de representação
para o outro. De se abrir em nós o que nos olha no que vemos, apropriando-nos
mais uma vez da expressão de Didi-Huberman.
A palavra desorientação
associa-se a uma indisposição espacial, uma desorganização. Isso porque
acreditamos que orientar é organizar e vice-versa, dar um ‘sentido’ às coisas.
Daí a importância da geometria ocidental, que sempre privilegiou a visão e a
regularidade dos espaços, os alinhamentos da cidade reticulada na formação do
sentido moderno. Quanto mais a sociedade do espetáculo avança em sua trajetória
ao nada, mais rígidas e especializadas suas formas se tornam.
Para a organização de nossa
cultura foi necessária uma disciplina imposta às formas, ao longo de alguns
séculos, através de estratégias estéticas compositivas baseadas em simetria,
assimetria, ritmos, em uma disposição dos corpos no espaço organizados e
disciplinados, sobretudo de uma acomodação da visão mediante as regras da
perspectiva, do distanciamento entre os corpos, e do incremento de luz
despejado sobre eles. Ou seja, a perspectiva não existe como coisa natural, foi
preciso criar e construir essa realidade pintada.
Entretanto, não devemos confundir
a desorientação com o estranhamento ou com o surpreendente (schock). Freud já
apontava a diferença, entre a palavra unheimlich e o surpreendente. A
desorientação nunca chega a ser uma surpresa, ela imediatamente joga o sujeito
num espaço indeterminado, num espaço liso, escorregadio, num tempo
indeterminado, onde não há lugar para o surpreendente, onde ele não faz o menor
efeito.
O estranhamento foi um recurso
bastante utilizado pelos surrealistas, por Eisenstein, Bertolt Brecht e também
pelos artistas dos anos 60, com a intenção de acabar com a apatia estética. O
estranhamento pressupõe um corte, um schock, um despertar; e não
necessariamente uma desorientação, muito menos pode ser visto como algo
sinistro (6). Entretanto, no universo das artes, alguns teóricos e críticos
afiliados a Freud, principalmente a escola francesa de estética, recorreram à
Inquietante Estranheza para designar, por outro viés, a teoria do
estranhamento, do schock (7).
A inquietante estranheza produz a
desorientação, mas, uma vez desorientado, nada mais produz a inquietante
estranheza. A desorientação é um deslize do
espaço-tempo. Talvez o mais difícil de entender e articular é que o sentido do
espaço é também o sentido do tempo. Todo nosso sentido, nossa compreensão do
mundo, é fruto desse casamento contratual entre espaço-tempo. Mas com a
desorientação do espaço vem junto o aniquilamento do tempo. O tempo zero.
O sentido de orientação e
desorientação do espaço-tempo pode ser melhor compreendido com o auxílio dos
conceitos de tempo cíclico e de tempo linear. No tempo circular, característico
dos povos primitivos, a arquitetura e os espaços são quase imutáveis, a cultura
de um modo geral permanece a mesma. O que aconteceu com meus avós está acontecendo
comigo agora, e o que aconteceu comigo agora, acontecerá com meus sucessores.
Na cultura ocidental, linear e acumulativa, os espaços e a arquitetura mudam
freqüentemente, e se reserva à arquitetura o papel de monumento, de
reservatório da história. O elemento que resiste à passagem do tempo (8). No
tempo cíclico as orientações espaciais arquitetônicas permanecem as mesmas
devido à permanência das formas; já no tempo linear elas estão constantemente
mudando, provocando não só um estado de constante desorientação, conforme a
sociedade vai mudando, mas essas desorientações são graduais, e na maioria das
vezes permitem que só possamos compreendê-las através das gerações. Por isso,
utilizamos flechas, placas, sinalizações para nos orientarmos no tempo e no espaço.
A nadificação do tempo é esse
período nem sempre agradável que experimentamos quando estamos desorientados e
sentimos um forte impulso para retornar à casa, ao lar, como indicava Freud, e
que não tem correspondente nem no tempo cíclico, nem no linear, ou tampouco no
espetacular, constituindo uma outra categoria de tempo, muito próxima ao que
poderíamos designar como ‘tempo zero’, onde tudo se move mas o tempo não passa.
Onde o próprio tempo se contradiz. Uma experimentação íntima, real, pessoal em
todos os sentidos, mas que não existe para os outros. "Geléia ontem ou geléia amanhã,
mas jamais geléia hoje, dizia Alice".
A desorientação também pode ser
interpretada circunstancialmente como “estar perdido”. Significa andar, andar e
não encontrar nenhum ponto de referência ou chegada. Uma situação onde andamos
em círculo como os ponteiros do relógio, o tempo passa, mas temos a nítida
sensação que permanecemos no mesmo lugar, no mesmo espaço delimitado. Tudo é
também igual nessa situação, todas as coisas se vêem envoltas no velo do igual,
e não conseguimos encontrar uma saída. É como estar no labirinto, como se todas
as portas se fechassem, nos sentimos como que aprisionados. Na desorientação
estamos sempre fora, fora de nós, fora do mundo organizado. Nesse estado o
interior passa a ser a saída, a orientação.
Na desorientação podemos
experimentar, entre outras, dois tipos de sensações: uma, onde o tempo não
passa, mas o espaço permanece em sua extensão; e outra, onde o tempo passa, mas
o espaço parece condenado a um encarceramento definitivo. Tudo sugere que no
estado da desorientação existe uma ruptura da sincronia do enlace tempo-espaço,
uma outra compreensão do mundo, uma outra visão.
O tempo da desorientação é o
período no qual nos vemos enquanto representação. Deslocados de tudo, de todos,
inclusive de nós mesmos, ocos. Passamos para o outro lado do espelho. É como se
fôssemos jogados ali sem saber porquê e nem quando.
Lembro-me de um antigo seriado de
TV, que ajuda a ilustrar essa sensação de desorientação espacial temporal, O
Túnel do Tempo (10), cujos personagens são dois cientistas que viajam pelo
tempo através de uma curiosa máquina em forma de túnel, onde eram literalmente
jogados em diversos momentos e situações da história por essa máquina que havia
fugido ao controle. Funcionava aleatoriamente, andando à deriva ao longo da
história. Esses personagens, a cada vez que eram jogados nesses momentos da
história, experimentavam rapidamente essa forte sensação de desorientação, sem
saber o que estava acontecendo; para orientá-los, um ou outro sempre comentava
que deveriam estar, provavelmente pelas roupas, ações, em determinado ano, em
determinado lugar, cidade, ou determinado fato histórico. Na verdade quem
acabava orientando-os era o conhecimento da história, a própria história
universal, essa pseudociência que não tem outra função do que a pretensa
orientação temporal do homem, que preferiu o tempo linear ao cíclico.
O grande indutor da orientação e
desorientação é o conhecimento, reconhecimento e desconhecimento. Reconhecer um
determinado lugar, uma determinada situação, é orientar-se, dar um sentido. O
conhecimento é aquilo que explica, “agora faz sentido”. Mas numa época cada vez mais
plena de mudanças e desorientações, cada vez mais é necessária sua
contrapartida: a aquisição de memória a granel para guardar nosso conhecimento,
para que não se perca nosso sentido, nossa história.
Em uma das passagens do livro Cem
Anos de Solidão, García Márquez nos apresenta uma curiosa doença que a
princípio se manifestaria através da peste da insônia e que evoluiria para uma
situação mais terrível: o esquecimento. Quando o enfermo acostumava-se a estar
acordado por dias e dias, sem sentir-se cansado, sua memória começava a se
apagar, gradualmente. Primeiro as lembranças de infância, depois o nome e o
sentido das coisas e das pessoas, e, num estado terminal, esquecia-se por
completo da consciência da própria existência, caindo em um estado que Márquez
descreveu como uma espécie de idiotice sem passado: “José Arcádio Buendía
decidiu então construir a máquina da memória, que uma vez tinha desejado para
se lembrar dos maravilhosos inventos dos ciganos. A geringonça se fundamentava
na possibilidade de repassar, todas as manhãs, e do princípio ao fim, a totalidade
dos conhecimentos adquiridos na vida. Imaginava-a como um dicionário giratório
que um indivíduo, situado no eixo, pudesse controlar com uma manivela, de modo
que em poucas horas passassem diante de seus olhos as noções mais necessárias
para viver...”
Com o labirinto, a desorientação
se persegue conscientemente. Em sua forma clássica, a mais simples, a planta de
um labirinto mostra, num dado espaço, o trajeto mais longo possível entre a
entrada e o centro. Cada parte desse espaço se visita como mínimo e solenemente
uma vez: no labirinto clássico não se pode escolher. Mais tarde inventaram
labirintos mais complicados, acrescentando caminhos sem saída, pistas falsas
que obrigam a voltar atrás; entretanto, existe um único caminho correto que
conduz ao centro. Este labirinto é uma construção estática que determina os
comportamentos.
Há esse outro sentido para o labirinto,
o de nó, um laço que deve ser desatado. O que me fez lembrar de um trecho
extremamente esclarecedor e lúcido de R. D. Laing, em seu clássico livro,
Laços, que nos permite avançar na busca de uma saída para o labirinto:
“A gente está dentro
logo a gente está fora daquele
dentro onde a gente esteve
A gente se sente vazia
porque não há nada dentro da
gente
A gente trata de pôr dentro da
gente
aquele dentro do fora
dentro do qual a gente já
esteve...
Mas é pouco ainda. A gente trata
de chegara
o dentro daquele fora do qual a
gente está dentro e
chegar ao dentro do fora. Mas a
gente não chega
dentro do fora pondo o fora pra
dentro
pois embora a gente esteja toda
dentro do dentro do fora
a gente está fora do próprio
dentro da gente
e quando a gente entra no fora
a gente permanece vazia porque
enquanto a gente está dentro
mesmo o dentro do fora está fora
e ainda não há nada dentro da
gente
Nunca houve nada dentro da gente
e nunca haverá nada dentro da
gente”
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