Só quem convive diretamente com esta doença e
assiste a transformação daqueles que nos são queridos é que consegue ter
a percepção do quão devastadora e destruidora ela é. Sou enfermeira há
mais de 32 anos. Iniciei muito cedo e terei cometido os meus erros como
todo e qualquer profissional no início de carreira. No entanto, talvez
por característica da minha personalidade, educação e exemplo de meus
pais, sempre tive um grande respeito pelo idoso e pelo doente com
perturbações mentais.
Quis Deus que também eu, também nós,
família, viéssemos a sentir dentro de nós a impotência de ver a nossa
mãe a perder-se lentamente e a fixar-se num mundo tão... longínquo que
nos faz chorar mesmo que o não queiramos.
A doença de minha mãe
começou a aparecer lentamente. Tão lentamente que não tivemos nunca a
noção de que fosse uma doença e associamos as suas alterações de
comportamento com crises próprias de uma senhora a entrar em menopausa.
Não se falava em Alzheimer há 30 anos. Falava-se em demência do idoso,
mas sobre Alzheimer pouco se ouvia.
E os anos foram passando. Se
tivesse tido acompanhamento mais cedo, eventualmente teríamos conseguido
travar um pouco a sua evolução. Mas assim não aconteceu.
Minha
mãe sempre foi independente. Tinha uma cultura geral enorme e uma
capacidade de observação fora do comum. Tinha e tem uma voz linda. Para
ela a música era a vida. Tudo o que fazia tinha a música por detrás. Deu
aulas de Educação Musical ao antigo ciclo preparatório. Nessa altura
iniciou nas suas aulas uma nova forma de expressão corporal, "expressão
dramática". Julgo que terá sido uma das pioneiras a utilizar esta arte
com alunos com problemas comportamentais. Os alunos tinham paixão por
ela, pois ela fazia das aulas momentos de libertação em que a música e a
expressão corporal trabalhavam em uníssono. "Dançar ao som da música",
permitindo-lhes expressar as suas emoções, os seus medos e angústias.
Não havia alunos mal-educados naquelas aulas. Sempre tinha uma palavra
amiga e de conforto e sabia ouvir os seus meninos com o coração aberto.
Quantos jovens problemáticos não iam para a escola sem tomar o
pequeno-almoço e quantos não eram vítimas de maus-tratos! Mas poucos
eram os professores que tinham a sensibilidade para os ouvir. Era mais
fácil rotulá-los e reprová-los...
Cantou na Gulbenkian. A sua voz de
contralto ainda vibra na minha memória. Os anos passaram e eu ainda hoje
consigo reconhecer a sua voz nalgumas das obras que tive a sorte de
conseguir a gravação dos Arquivos da Gulbenkian. As lágrimas teimam em
correr dos meus olhos quando, a seu lado, ouvimos algumas das obras que
cantou como Solista e como fazendo parte do Coro.
Escrevia como
uma poetisa... Retratava a alma feminina de uma forma tão sentida,
sofrida ou apaixonada, que lhe valeu alguns prémios da Sociedade de
Autores.
E, além de tudo isso, era meiga com os seus filhos.
Terna e atenta, procurando dar-lhes toda a ternura que sentia. E era
linda. Encantava todos com a sua beleza exótica e a força da sua
personalidade. Quantos apaixonados ficaram pelo caminho... Alguns dele
ainda hoje nos testemunham a sua beleza...
Desculpem-me por
deixar o meu pensamento voar. Mas faz-me falta senti-la assim, mãe,
minha, querida e completa, repleta de sonhos e de força.
Hoje,
sinto-a tão pequenina. Abraço-a e sinto o meu peito gritar de angústia
pela fragilidade que sinto nela. Parece-me uma menina, com medo, perdida
, sem encontrar o seu caminho. As memórias vão-se perdendo e ela, de
uma forma ou de outra, vai tendo a percepção dessa perda. E dá-me a sua
mão, numa necessidade intima de sentir segurança e um porto seguro. E
pede-me para me deitar a seu lado para dormir mais serena e descansada. E
faço-lhe festas no rosto, com lágrimas salgadas no meu, na escuridão do
quarto, embalando-a como se embala um filho grande que tem medo de
estar sozinho.
É tão difícil, meu Deus, sentir as sua memórias
esbaterem-se e ouvi-la dizer baixinho "Tenho medo!". E ao mesmo tempo é
tão belo sentir a sua mão acarinhar-me o rosto nos nossos momentos, em
que juntas nos embalamos uma à outra.
Desabafos.
Encontro-me
na sala de enfermagem enquanto ela está a ser operada. Caiu e fez
fractura de fémur. Perdoem-me estas palavras, mas precisava de falar,
deixar o pensamento voar para lá do tempo e do real.
Só peço a
Deus força para estar sempre a seu lado e para a ajudar a encontrar um
sentido para a sua vida, mão na mão e olhos sempre fixando o futuro. (Teresa Noronha Feio)
http://alzheimerportugal.org/
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