segunda-feira, 17 de março de 2014

LONGEVIDADE TRANSFORMA ALZHEIMER NO MAL DO SÉCULO 21


A memória é traiçoeira. A de Flávio de Oliveira, 77, parece invejável quando ele começa a contar sobre os barulhentos aviões DC-3 e Scandia que a Vasp operava nos anos 50, em Congonhas, onde foi despachante de cargas por quase quatro décadas. Mas tudo muda no vôo que o traz do passado ao presente. No sofá de casa, Flávio é, às vezes, incapaz de reconhecer Célia, a mulher com quem está casado há 45 anos, ou os filhos.

Portador de Alzheimer há cinco anos, a memória do aposentado falha mais no curto prazo: fatos recentes se "apagam" da mente em questão de minutos, e ele esquece que já almoçou e pede para ir embora "para casa".

O declínio da memória é o sintoma característico da doença, causada por alterações cerebrais que matam os neurônios do hipocampo, região que controla a memória, a linguagem e o comportamento. À medida que avança, a amnésia progressiva vai sendo acompanhada por outros problemas, como desorientação e dificuldade para realizar tarefas básicas - abotoar a calça, por exemplo. No estágio máximo, chega a anular o "programa" que confere identidade a cada ser humano: comportamento, interesses, gostos e relações pessoais, tudo se perde nas brumas do cérebro.

O mal de Alzheimer é a ameaça ruim embutida numa perspectiva boa, a da expectativa de vida, que deve continuar melhorando. A estimativa da OMS (Organização Mundial da Saúde) é que vire pandemia em 20 anos. Atualmente, a doença atinge cerca de 1 milhão dos 15 milhões de idosos brasileiros, uma prevalência ao redor de 7%. Nos próximos dez anos, a proporção deve subir para 10%, segundo Paulo Henrique Bertolucci, chefe do Departamento de Neurologia Comportamental da Unifesp, um dos centros nacionais de referência.

"O Alzheimer é a doença do século 21, o grande desafio da medicina. Passamos a vida fazendo com que o homem viva mais e com qualidade. Superamos a mortalidade rápida de doenças como tuberculose; em 90% dos casos, câncer diagnosticado precocemente tem tratamento, sem falar da Aids. Mas e o cérebro? Continua uma incógnita", diz o professor de neurologia da Unicamp Jayme Antunes Maciel Jr. Para seu colega Ricardo Nitrini, 56, da USP, chegar aos cem anos será cada vez mais provável com o progresso da ciência. "Mas, sem controlar ou retardar o início do Alzheimer, mais de 70% dos centenários serão doentes."

Pesquisas
A preocupação com o avanço da doença, responsável por 60% dos quadros de demência (perda da capacidade mental), é comprovada pelos investimentos em pesquisas científicas. Em 2000, os EUA aplicaram US$ 1,18 bilhão em estudos sobre o Alzheimer, mais do que a metade do valor gasto com a Aids, mais letal.

Sem cura nem diagnóstico específico, a doença relatada em 1906 pelo médico alemão Alois Alzheimer (1864-1915) progride lentamente até levar o paciente à morte. Especialistas são unânimes: quanto antes descoberta, melhor. O tratamento é multifacetado, envolve remédios e reabilitação neuropsicológica.
Nos estágios iniciais, por exemplo, podem ser criadas estratégias para driblar as dificuldades de memória, como o uso de agenda em quase todas as atividades.

Nos casos moderados, o doente não tem mais capacidade de aprender estratégias, explica a neuropsicóloga Anita Taub, 38, do hospital Albert Einstein. "Então, o tratamento visa melhorar a qualidade de vida e reduzir a dependência." Nesse estágio, a musicoterapia é uma das técnicas para estimular o humor.

Mas a maioria descobre a doença tardiamente. "Como esquecimentos pontuais são comuns entre os idosos, a doença é normalmente classificada de "coisa de velho", prejudicando o diagnóstico", afirma o psiquiatra Cássio Machado Bottino, da USP.

O diagnóstico da dona-de-casa Adeilde Menezes de Moura, 83, doente há dez anos, levou três anos para ser descoberto. "Na época, eu não sabia o que Alzheimer significava, como muita gente hoje em dia ainda não sabe", afirma sua filha Yone de Moura Beraldo, 60. Dois anos depois do diagnóstico correto, Adeilde já não sabia como tirar um comprimido da cartela. "Ninguém acreditava. Como ela podia esquecer aquilo? Jamais imaginaríamos que uma mulher inteligente, que adorava ler, apreciar a filha tocar piano, pudesse estar sofrendo da cabeça", lembra Yone.

Adeilde não fala nem anda e depende dos cuidados alheios em tempo integral. "No começo, não era fácil. Imagine sua mãe se transformar todo dia numa pessoa diferente... Era como vivenciar um luto diário", define. Yone afirma que essa convivência teria sido inviável sem a ajuda de grupos de apoio, como os organizados pela Associação Brasileira de Alzheimer. "Aprendi a lidar com o inesperado, ter paciência e perspicácia para descobrir se ela está com frio ou fome, se precisa ir ao banheiro. Quem sente por ela sou eu. Ela não sabe que sou filha dela, mas eu sei que ela é a minha mãe."

Novidades
Alguns avanços podem contribuir para mudar o cenário. No Brasil, o Incor inaugura no final do mês o primeiro PET scan do país, capaz de revelar como as células estão funcionando. Até agora, o exame é feito num aparelho chamado Spect Cerebral.

Na área de medicamentos, a droga memantina deve chegar ao mercado brasileiro no segundo semestre. A grande esperança, uma vacina, já chegou a ser testada, mas provocou encefalite como efeito colateral.

Mas nem todos os pacientes enfrentam evolução tão avassaladora. A artista plástica Niobe Xandó, 88, 12 anos com a doença, é um bom exemplo. Mora sozinha com a empregada, no mesmo prédio da filha, Lourdes Ribeiro Rosa, 68. Diferentemente de boa parte dos pacientes, não sofreu alteração de humor, continua apreciando música clássica, tango e pintura -mas deletou a parte mais significativa de sua vida, as obras que fez ao longo de 55 anos. Costuma elogiar os quadros exibidos em exposição ou em casa sem a menor noção de que é a autora.
Pode não ser a melhor situação do mundo, mas certamente é melhor do que seus médicos esperavam. "Eles pintaram um quadro deprimente para o futuro da minha mãe. Mas ela está muito viva, apesar de tudo", diz Rosa. (Fonte Folha de S.Paulo)

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