sábado, 25 de maio de 2013

ALZHEIMER : MUDANÇAS E CAMINHOS

 
“Mas se tudo fosse como parecia nas minhas ilusões de menina, eu provavelmente passaria boa parte do meu tempo olhando pela janela, não para ver as árvores ou as nuvens, mas bocejando na prisão excessiva da coerência.” (Lya Luft)

"A palavra mudança gera indagações diversas, porque pressupõe uma infinidade de caminhos e direções. No caso a ser descrito, a mudança refere-se à vida da minha mãe e de todos os envolvidos direta e indiretamente com ela. Sobremaneira, com as alterações que a doença de Alzheimer estabelece. Essa patologia abrange estágios que, na sua evolução, requerem outras posturas daqueles que prestam cuidados.

Confesso que tremi nas minhas bases teóricas, físicas, emocionais e nas estruturais quando ouvi da cuidadora do corpo de apoio da minha mãe, daquela em quem depositava confiança plena, que estava impossível desempenhar o seu trabalho. A resposta dela diante das exigências últimas tornava-se insuficiente! E eu sempre confiei nela e, por causa dela, eu retornava para minha cidade e casa muito tranqüila e segura, pois sabia que minha mãe estava sendo devidamente tratada. A firmeza, a serenidade, a tomada de decisões e procedimentos, aliados à fé e o uso ético do espaço sempre foram características positivas no seu trabalho diário. Inúmeras vezes ouvi dela: “Vera, eu amo a sua mãe.” Ou então: “Sou muito grata a vocês, pois nesta casa eu aprendi muita coisa que não sabia, mais ainda com a sua mãe.” (2008-9) Seguido de: “Agora não dá mais, pois não estou mais dando conta, está ficando perigoso, meus braços doem, tenho ficado noites sem dormir por cansaço e não consigo fazer mais o serviço para o qual fui contratada.” (2010).

Saliento que essa pessoa enquadra-se no que a literatura denomina de um cuidador formal, portanto aquela que, de acordo com Mendes (2005) possui grande responsabilidade pelos serviços prestados ao idoso em domicílio. Nesse momento, compreendi também as limitações de um cuidador quando o seu trabalho é desempenhado no domicílio do paciente. Alguns recursos e o auxílio de outros profissionais seriam fundamentais. A situação estafante que essa cuidadora revelava, relacionava-se com o percurso efetuado até aquele momento. Ela se apercebia do processo de finitude e fragilidade da pessoa entregue aos seus cuidados. Ambas apresentavam-se debilitadas e romper esse clima era vital, necessitando as mesmas de ajuda externa.

A questão maior era: por onde começar? Afinal, cinco anos não são cinco dias ou meses! O lado emocional se exacerbou e administrar a minha ansiedade constituiu- se numa tarefa de peso. Ansiedade esta misturada com culpa, medo, temor do novo, já que, retirá-la da sua casa sempre foi algo em que me posicionei contrária. Sempre acreditei e investi na importância do poder de pertencimento e identificação com cheiros, lugares, pessoas, paisagens, vizinhança e objetos que só a moradia em casa proporciona. No caso da minha mãe isso era mais redundante, na medida em que ela sempre se revelou uma defensora ferrenha da sua cidade natal. Até hoje esse local é verbalizado com intensidade. Na sua fala há sentido e tônus de uma história de uma e de mais vidas! Refiro-me àquilo que Brandão (2008) denomina de comunidade afetiva, que traz consigo uma teia de significados e de registros.

Além disso, havia a consciência das leituras efetuadas e da realidade em si de que essa vinda indicava a piora de um estado, destacadamente da memória, cada dia mais focada num passado-presente, do qual poucos sujeitos integram o cenário. Sabia também da escassez de indivíduos preparados para a exigência que cada estágio do Alzheimer demanda no que diz respeito ao entendimento e criação de “novos espaços de conversas”.

Quando tratamos de Alzheimer, o empenho dos familiares ou responsáveis, assim como o preparo de profissionais na área da saúde voltam-se para o cuidar medicamentoso, para a segurança do idoso, a busca dos direitos legais, ações estas maioria das vezes oferecida por órgãos públicos ou particulares.

Não obstante, é sabido que na sociedade brasileira é incipiente a realização de um trabalho específico de escuta e de ações para dar voz aos sons e sinais que cada portador apresenta. Na maioria das vezes é ausente ou centrado numa piedade ingênua, num assistencialismo inócuo, permeado pela infantilização do idoso. Essa postura pouco constrói no sentido de proporcionar facilidade de comunicação nos envolvidos no fazer diário, a fim de minimizar a distancia que, sabemos, encaminha-se para um quadro de solidão. 

O que se assiste é o pouco investimento e preparo dos profissionais para essa função e enfoque, justificados por limitações de conhecimento científico e comprovações mais assertivas no que tange à doença de Alzheimer. No registro dos avanços, são poucos os caminhos com definições precisas. No meu caso, somava-se a isso, a visão diária daquela mulher forte, altiva, bonita, culta, a caminhar sempre pelas ruas e avenidas, agora dependente de uma cadeira de rodas e de muitas outras ajudantes no desempenho de funções básicas e naturais.

Frente aos fatos e evidências, iniciei o meu plano de ação revestida de vigor. Visitei muitas instituições de longa permanência, focada no que considerava essencial para o bem estar da minha mãe e tranqüilidade dos familiares, mais exatamente minha e do meu irmão, os responsáveis diretos por ela. A cada dia de reconhecimento dos locais, certificava-me de quanto o Brasil encontra-se deficitário no que concerne ao envelhecimento da sua população, mais gravemente quando diz respeito a lugares dignos e merecedores de indivíduos que por razões diversas necessitam de acolhimento respeitoso, com um corpo profissional capacitado e humanizado.

Diante das prioridades elencadas e adequadas às possibilidades financeiras, encontramos o lugar viável para a mudança da casa para a clínica, numa cidade próxima à que resido. Uma legião de voluntários engajou-se no propósito e processo da arrumação, que aconteceu num ambiente amistoso e sereno. Minha mãe pouco ou nada percebeu, gostando muito das visitas recebidas. A cada abraço, palavras de exemplos positivos deixados por ela. Confesso que em vários deles emocionei-me fortemente, disfarçando muito as lágrimas derramadas naquele clima de despedida perante amigos e familiares muito queridos e amados!

No lugar que consideramos nosso porto seguro, depositamos nossas mais puras esperanças e expectativas juntamente com os nossos temores e inseguranças. Despedimos dela sem que a mesma tivesse a sensação de estar integrando uma realidade estranha. O estágio da sua memória foi nosso aliado nesse momento. Assim, um caminho novo delineou-se e aprender, crescer e viabilizar oportunidades para o trajeto resultou das ações experienciadas dia a dia, passo a passo e sempre.

Juntas, nós vivenciamos a adaptação. Na primeira semana me fiz presente todos os dias, seguindo as orientações dos responsáveis da clínica. Passear com ela, ocupar todos os espaços possíveis, visitar e revisitar os canteiros com flores de espécies e cores variadas, ouvir o canto dos pássaros, eram as atividades efetuadas com constância. Assim como prosear com os outros moradores, caminhar pela área externa, acenar para os vizinhos, curtir o calor do sol de montanha até chegar à beira do rio e conversar sobre feitos de pescadores. Isso colaborou para o tempo de integração e participação, inclusive em alguns eventos de datas cívicas, religiosas e populares, realizados na nova morada.

Particularmente sinto que esta vivência tem sido de um valor imensurável em todos os aspectos que eu possa supor ou prever. Muita riqueza e fecundidade a cada dia e encontros, permeados de emoções, já que, repetidamente, toda vez é a primeira, com muitos abraços, lágrimas e palavras de ordem para que eu não me ausente mais e permaneça ao seu lado. Depois, não se ressente da minha saída, até porque eu sei que estou me despedindo dela, mas ela não sente assim. Para isso, uso de artifícios calcados na realidade próxima dela e fortalecidos nos limites possíveis. 

Retiro-me daquele lugar, num refletir constante sobre o que posso realizar para me inserir mais.  E, com cautela, sugerir o que os implicados diretamente com ela também podem desempenhar no fazer diário. No caso, como sinaliza Brandão (2008), acreditar na construção de uma rede de inter-relações confirmada pela força da compreensão do outro e de si, por intermédio dos pares, dos iguais do local salvaguardada as diferenças dos mesmos.

Tenho procurado conhecer a nova cidade, suas características, possibilidades, história, pessoas de centros comerciais, e nela me deparei com antigos amigos, conhecidos, ex-alunos, que nas conversas, compartilham meus anseios. Isso ameniza, fortalece e me encoraja na trajetória perpassada pela solidão, já que a cumplicidade e retorno ansiados numa relação desaparecem com fluidez no estágio da patologia em que minha mãe se encontra.

Nesse contexto, o que vislumbro e presencio é a perda gradativa da memória da minha mãe e avidamente busco sugar tudo o que me resta, no sentido de estar com e para ela, o tempo que for possível, o que tenho conseguido até a presente data.  Atentar para as modificações, celebrar a sua saúde que ainda permanece de boa qualidade, usar de recursos conhecidos para verificar o nível das lembranças para me certificar do que posso validar nas relações presentes e vindouras. Essas têm sido parte das estratégias utilizadas. 

Aponto para um estado de observação constante e muito atento, a fim de gerar entendimento diante da voz e som possível, também dos códigos, sinais e ruídos, que dentre outras formas de expressão, constituem-se na comunicação cabível! Corpos e mentes que “falam” e que precisam ser atendidos e compreendidos, incessantemente, para evitar o exílio simbólico, do qual lutamos sempre contra!

Desafios cotidianos numa trajetória ímpar, porque única e fadada à quebra de pautas, diante das surpresas que os neurônios e suas conexões nos pregam, num universo de perguntas ainda maiores que as respostas. Que nos estimulam a buscar intensamente inclusive no que ainda desconhecemos, com a convicção de que a investida sempre é válida e interessante.

Finalizando, entendo que na viagem da casa para a clínica outras linhas de conduta pedem passagem e abrigo. Dentre elas, um conceito, recurso e/ou virtude desponta potencialmente. No caso: o silêncio! Que, independentemente dos estágios de um portador de Alzheimer, deve ser introduzido como ponto de partida, chegada, de reflexão enquanto um aliado nas relações estabelecidas entre um cuidador e portador. Segundo Silva, “Ouvir cria um silêncio sagrado. Talvez o mais poderoso instrumento de cura, porque, quando escutamos generosamente as pessoas, elas podem ouvir a verdade sobre si mesmas, ainda que pela primeira vez. No silencio de ouvir, você pode conhecer a verdade de toda pessoa.” ( APUD Brandão, p. 90, 2008).

Concluindo, enfatizo que despender olhares e fazeres ao encontro de novos saberes produz inquestionavelmente rumos diferentes na caminhada de cada um dos envolvidos, que por razões diversas encaram o desafio de cuidar e ser cuidado quando o tema é Alzheimer".

http://conversandosobrealzheimer.blogspot.com.br/

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