“Mas se tudo fosse como parecia
nas minhas ilusões de menina, eu provavelmente passaria boa parte do meu tempo
olhando pela janela, não para ver as árvores ou as nuvens, mas bocejando na
prisão excessiva da coerência.” (Lya Luft)
"A palavra mudança gera indagações
diversas, porque pressupõe uma infinidade de caminhos e direções. No caso a ser descrito, a mudança
refere-se à vida da minha mãe e de todos os envolvidos direta e indiretamente
com ela. Sobremaneira, com as alterações que a doença de Alzheimer estabelece.
Essa patologia abrange estágios que, na sua evolução, requerem outras posturas
daqueles que prestam cuidados.
Confesso que tremi nas minhas
bases teóricas, físicas, emocionais e nas estruturais quando ouvi da cuidadora
do corpo de apoio da minha mãe, daquela em quem depositava confiança plena, que
estava impossível desempenhar o seu trabalho. A resposta dela diante das
exigências últimas tornava-se insuficiente! E eu sempre confiei nela e, por
causa dela, eu retornava para minha cidade e casa muito tranqüila e segura,
pois sabia que minha mãe estava sendo devidamente tratada. A firmeza, a
serenidade, a tomada de decisões e procedimentos, aliados à fé e o uso ético do
espaço sempre foram características positivas no seu trabalho diário. Inúmeras
vezes ouvi dela: “Vera, eu amo a sua mãe.” Ou então: “Sou muito grata a vocês,
pois nesta casa eu aprendi muita coisa que não sabia, mais ainda com a sua
mãe.” (2008-9) Seguido de: “Agora não dá mais, pois não estou mais dando conta,
está ficando perigoso, meus braços doem, tenho ficado noites sem dormir por
cansaço e não consigo fazer mais o serviço para o qual fui contratada.” (2010).
Saliento que essa pessoa
enquadra-se no que a literatura denomina de um cuidador formal, portanto aquela
que, de acordo com Mendes (2005) possui grande responsabilidade pelos serviços
prestados ao idoso em domicílio. Nesse momento, compreendi também
as limitações de um cuidador quando o seu trabalho é desempenhado no domicílio
do paciente. Alguns recursos e o auxílio de outros profissionais seriam
fundamentais. A situação estafante que essa cuidadora revelava, relacionava-se
com o percurso efetuado até aquele momento. Ela se apercebia do processo de
finitude e fragilidade da pessoa entregue aos seus cuidados. Ambas
apresentavam-se debilitadas e romper esse clima era vital, necessitando as
mesmas de ajuda externa.
A questão maior era: por onde
começar? Afinal, cinco anos não são cinco dias ou meses! O lado emocional se
exacerbou e administrar a minha ansiedade constituiu- se numa tarefa de peso.
Ansiedade esta misturada com culpa, medo, temor do novo, já que, retirá-la da
sua casa sempre foi algo em que me posicionei contrária. Sempre acreditei e
investi na importância do poder de pertencimento e identificação com cheiros,
lugares, pessoas, paisagens, vizinhança e objetos que só a moradia em casa
proporciona. No caso da minha mãe isso era mais redundante, na medida em que
ela sempre se revelou uma defensora ferrenha da sua cidade natal. Até hoje esse
local é verbalizado com intensidade. Na sua fala há sentido e tônus de uma
história de uma e de mais vidas! Refiro-me àquilo que Brandão (2008) denomina
de comunidade afetiva, que traz consigo uma teia de significados e de
registros.
Além disso, havia a consciência
das leituras efetuadas e da realidade em si de que essa vinda indicava a piora
de um estado, destacadamente da memória, cada dia mais focada num
passado-presente, do qual poucos sujeitos integram o cenário. Sabia também da escassez
de indivíduos preparados para a exigência que cada estágio do Alzheimer demanda
no que diz respeito ao entendimento e criação de “novos espaços de conversas”.
Quando tratamos de Alzheimer, o
empenho dos familiares ou responsáveis, assim como o preparo de profissionais
na área da saúde voltam-se para o cuidar medicamentoso, para a segurança do
idoso, a busca dos direitos legais, ações estas maioria das vezes oferecida por
órgãos públicos ou particulares.
Não obstante, é sabido que na
sociedade brasileira é incipiente a realização de um trabalho específico de
escuta e de ações para dar voz aos sons e sinais que cada portador apresenta.
Na maioria das vezes é ausente ou centrado numa piedade ingênua, num
assistencialismo inócuo, permeado pela infantilização do idoso. Essa postura
pouco constrói no sentido de proporcionar facilidade de comunicação nos
envolvidos no fazer diário, a fim de minimizar a distancia que, sabemos,
encaminha-se para um quadro de solidão.
O que se assiste é o pouco investimento
e preparo dos profissionais para essa função e enfoque, justificados por
limitações de conhecimento científico e comprovações mais assertivas no que
tange à doença de Alzheimer. No registro dos avanços, são poucos os caminhos
com definições precisas. No meu caso, somava-se a isso, a
visão diária daquela mulher forte, altiva, bonita, culta, a caminhar sempre
pelas ruas e avenidas, agora dependente de uma cadeira de rodas e de muitas
outras ajudantes no desempenho de funções básicas e naturais.
Frente aos fatos e evidências,
iniciei o meu plano de ação revestida de vigor. Visitei muitas instituições de
longa permanência, focada no que considerava essencial para o bem estar da
minha mãe e tranqüilidade dos familiares, mais exatamente minha e do meu irmão,
os responsáveis diretos por ela. A cada dia de reconhecimento dos
locais, certificava-me de quanto o Brasil encontra-se deficitário no que
concerne ao envelhecimento da sua população, mais gravemente quando diz
respeito a lugares dignos e merecedores de indivíduos que por razões diversas
necessitam de acolhimento respeitoso, com um corpo profissional capacitado e
humanizado.
Diante das prioridades elencadas
e adequadas às possibilidades financeiras, encontramos o lugar viável para a
mudança da casa para a clínica, numa cidade próxima à que resido. Uma legião de voluntários
engajou-se no propósito e processo da arrumação, que aconteceu num ambiente
amistoso e sereno. Minha mãe pouco ou nada percebeu, gostando muito das visitas
recebidas. A cada abraço, palavras de exemplos positivos deixados por ela.
Confesso que em vários deles emocionei-me fortemente, disfarçando muito as
lágrimas derramadas naquele clima de despedida perante amigos e familiares
muito queridos e amados!
No lugar que consideramos nosso
porto seguro, depositamos nossas mais puras esperanças e expectativas
juntamente com os nossos temores e inseguranças. Despedimos dela sem que a
mesma tivesse a sensação de estar integrando uma realidade estranha. O estágio
da sua memória foi nosso aliado nesse momento. Assim, um caminho novo delineou-se e aprender,
crescer e viabilizar oportunidades para o trajeto resultou das ações
experienciadas dia a dia, passo a passo e sempre.
Juntas, nós vivenciamos a
adaptação. Na primeira semana me fiz presente todos os dias, seguindo as
orientações dos responsáveis da clínica. Passear com ela, ocupar todos os
espaços possíveis, visitar e revisitar os canteiros com flores de espécies e
cores variadas, ouvir o canto dos pássaros, eram as atividades efetuadas com
constância. Assim como prosear com os outros moradores, caminhar pela área
externa, acenar para os vizinhos, curtir o calor do sol de montanha até chegar
à beira do rio e conversar sobre feitos de pescadores. Isso colaborou para o
tempo de integração e participação, inclusive em alguns eventos de datas
cívicas, religiosas e populares, realizados na nova morada.
Particularmente sinto que esta
vivência tem sido de um valor imensurável em todos os aspectos que eu possa
supor ou prever. Muita riqueza e fecundidade a cada dia e encontros, permeados
de emoções, já que, repetidamente, toda vez é a primeira, com muitos abraços,
lágrimas e palavras de ordem para que eu não me ausente mais e permaneça ao seu
lado. Depois, não se ressente da minha saída, até porque eu sei que estou me
despedindo dela, mas ela não sente assim. Para isso, uso de artifícios calcados
na realidade próxima dela e fortalecidos nos limites possíveis.
Retiro-me
daquele lugar, num refletir constante sobre o que posso realizar para me
inserir mais. E, com cautela, sugerir o
que os implicados diretamente com ela também podem desempenhar no fazer diário.
No caso, como sinaliza Brandão (2008), acreditar na construção de uma rede de
inter-relações confirmada pela força da compreensão do outro e de si, por
intermédio dos pares, dos iguais do local salvaguardada as diferenças dos
mesmos.
Tenho procurado conhecer a nova
cidade, suas características, possibilidades, história, pessoas de centros
comerciais, e nela me deparei com antigos amigos, conhecidos, ex-alunos, que
nas conversas, compartilham meus anseios. Isso ameniza, fortalece e me encoraja
na trajetória perpassada pela solidão, já que a cumplicidade e retorno ansiados
numa relação desaparecem com fluidez no estágio da patologia em que minha mãe
se encontra.
Nesse contexto, o que vislumbro e
presencio é a perda gradativa da memória da minha mãe e avidamente busco sugar
tudo o que me resta, no sentido de estar com e para ela, o tempo que for
possível, o que tenho conseguido até a presente data. Atentar para as modificações, celebrar a sua
saúde que ainda permanece de boa qualidade, usar de recursos conhecidos para
verificar o nível das lembranças para me certificar do que posso validar nas
relações presentes e vindouras. Essas têm sido parte das estratégias utilizadas.
Aponto para um estado de observação constante e muito atento, a fim de gerar
entendimento diante da voz e som possível, também dos códigos, sinais e ruídos,
que dentre outras formas de expressão, constituem-se na comunicação cabível!
Corpos e mentes que “falam” e que precisam ser atendidos e compreendidos,
incessantemente, para evitar o exílio simbólico, do qual lutamos sempre contra!
Desafios cotidianos numa
trajetória ímpar, porque única e fadada à quebra de pautas, diante das
surpresas que os neurônios e suas conexões nos pregam, num universo de
perguntas ainda maiores que as respostas. Que nos estimulam a buscar
intensamente inclusive no que ainda desconhecemos, com a convicção de que a
investida sempre é válida e interessante.
Finalizando, entendo que na
viagem da casa para a clínica outras linhas de conduta pedem passagem e abrigo.
Dentre elas, um conceito, recurso e/ou virtude desponta potencialmente. No
caso: o silêncio! Que, independentemente dos estágios de um portador de
Alzheimer, deve ser introduzido como ponto de partida, chegada, de reflexão
enquanto um aliado nas relações estabelecidas entre um cuidador e portador. Segundo Silva, “Ouvir cria um
silêncio sagrado. Talvez o mais poderoso instrumento de cura, porque, quando
escutamos generosamente as pessoas, elas podem ouvir a verdade sobre si mesmas,
ainda que pela primeira vez. No silencio de ouvir, você pode conhecer a verdade
de toda pessoa.” ( APUD Brandão, p. 90, 2008).
Concluindo, enfatizo que
despender olhares e fazeres ao encontro de novos saberes produz
inquestionavelmente rumos diferentes na caminhada de cada um dos envolvidos,
que por razões diversas encaram o desafio de cuidar e ser cuidado quando o tema
é Alzheimer".
http://conversandosobrealzheimer.blogspot.com.br/
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