O mal de Alzheimer afeta a 600
mil pessoas na Espanha e 18 milhões em todo o mundo. A mudança emocional que
sacode as famílias e os doentes é tão ou mais impactante que a própria
patologia. Com a chegada do esquecimento, surgem muitas dúvidas.
"Constantemente nos
perguntamos quais são seus sentimentos", explica Manel Mañós. Ele tem 87
anos e sua mulher, Laura, morreu com Alzheimer no Dia dos Santos Inocentes, há
quase sete anos. "Vivemos uma história de muita dor, mas também de
compreensão e muito amor", acrescenta.
A doença vai modificando o humor,
o comportamento e o tipo de relação do enfermo com seu entorno social e seus
familiares, especialmente com o cônjuge. Como a doença do esquecimento afeta as
relações afetivas? O amor adquire um novo significado? Está comprovado que
quando o doente de Alzheimer recebe estímulos, como escutar uma melodia de sua
juventude, consegue despertar um sorriso. Mas que papel um estímulo emocional
tão importante como desfrutar do amor conjugal tem na evolução da doença?
Pouco a pouco, a doença vai
desfazendo a personalidade do paciente.
Desde a fase inicial, com os
primeiros esquecimentos e, em muitos casos, apatia e depressão, até as mais
avançadas, nas quais há uma deterioração física maior e se observam também
transtornos do comportamento, o doente e seu entorno familiar passam por um
grande processo emocional.
"Para mim, o Alzheimer tem
dois momentos: a morte da personalidade e a morte física", afirma Mañós,
que era muito apaixonado por sua mulher e fica com os olhos embotados ao
lembrar-se dela. "Era muito linda", afirma. "Quando a doença
apareceu, o projeto de vida que tínhamos para depois da aposentadoria
desapareceu. Eu me informava e tentava me colocar em seu lugar, raciocinar e
pensar o que eu sentiria se fosse ela, como eu gostaria que me tratassem. Você
tenta devolver à pessoa a vida que a doença está lhe roubando", explica
Mañós.
"As emoções do doente de
Alzheimer são um terreno ainda bastante inexplorado. As pesquisas se preocupam
muito com a cognição, mas não com a emoção", afirma Javier Olazarán,
neurologista e principal pesquisador da Fundação María Wolff, onde dirige um
projeto que avalia o efeito do prazer sobre o bem-estar do doente de Alzheimer.
Conforme a doença avança,
"começam a ver-se afetadas as manifestações mais complexas de afetividade,
ligadas ao pensamento mais elevado, como a iniciativa, a motivação ou a
capacidade de compreender o que os outros sentem. Sabemos que respondem com
menos intensidade, o que não quer dizer que sintam menos", diz o
neurologista.
"Os doentes de Alzheimer
conservam uma vida afetiva muito mais rica do que a que aparentam porque mantêm
as estruturas cerebrais envolvidas com a vida emocional, que demoram mais para
se deteriorar", explica José Manuel Martínez-Lage, professor honorário de
neurologia da Universidade de Navarra. "O paradoxo está em como expressam
suas emoções: suas respostas são mais pobres ou anormais", explica.
Nem todos os doentes sentem da
mesma forma. "Dependendo de quais regiões forem afetadas, pode haver uma
falta de motivação na hora de buscar estímulos prazerosos, algo que ocorre em
80% dos casos. Outros 20% sentem-se absolutamente desinibidos na hora de buscar
prazer, seja por meio da comida, do contato com os outros e até mesmo do
aumento da libido. A doença é caprichosa, e não sabemos por que em determinados
casos aumentam alguns quadros ou outros", comenta Olazarán. Mercè Boada,
chefe clínica do setor de doenças neurodegenerativas do hospital Vall d'Hebrón
de Barcelona, também dirige a Fundação ACE, que atende 250 portadores de
Alzheimer em seu centro-dia e cursos de memória. Mais da metade tem menos de 60
anos. "Com eles fomos aprendendo como são as relações afetivas e sexuais
durante o transcurso da doença", explica Boada. "Precisam de afeto,
contato físico e, definitivamente, do amor dos relacionamentos", confirma.
A psicóloga María Paz García
Paniagua, da Associação de Familiares de Doentes de León (AFA León), concorda:
"É possível que para o doente de Alzheimer alguns sentimentos,
principalmente o carinho, sejam os únicos vínculos que os mantêm ligados à
realidade que os circunda".
O amor estimula a memória.
"Com uma vida afetiva ativa, a doença progride mais lentamente",
afirma Martínez-Lage. Lembrar juntos da vida de casado, por exemplo, pode ser
um bom estímulo. Sentir carícias, vozes e cheiros familiares e outros elementos
de cumplicidade podem ter o poder de evocar a memória. "Durante muitos anos
acreditou-se que o doente voltava a ser criança. Não é assim, e deve-se tratar
o doente como o adulto que é, ainda que não se possa ouvir suas emoções,
palavras e sentimentos da mesma forma", afirma Martínez-Lage. A doença
constrói novas pontes, novas formas de cumplicidade. "Ter sido é uma forma
de ser", acrescenta.
Apesar de a relação conjugal
supor um estímulo para o doente, a outra face da moeda é como o parceiro vive a
relação. Quando os olhos deixam de brilhar ao ver o rosto do outro, ou já não
se lembra mais onde se conheceram, como foi a primeira vez, o nascimento de seu
primeiro filho... Cair no poço do esquecimento da pessoa amada requer grandes
doses de fortaleza.
O juramento de amor pode se
fortalecer mais do que nunca, ou, ao contrário, desmoronar-se. Os transtornos
de comportamento afetam a cada casal de forma diferente. "Você é jovem, se
quiser pode ter outro marido, não se prenda por mim", disse há alguns dias
Luis, que tem 60 anos e padece de Alzheimer, à sua esposa, María, de 48 anos,
quando ela foi visitá-lo na instituição onde mora. "Nesse momento de
lucidez, voltei a vê-lo novamente: a mesma generosidade pela qual eu havia me
apaixonado voltou a aparecer", afirma María. Eles se apaixonaram
loucamente há 18 anos. Lembra-se como deram valor a lutar para ficarem juntos e
deixar para trás dois casamentos falidos.
Quando a doença chegou, começou a
destruição. "Quando ele olha para mim acho que não me vê como sua mulher,
mas como um apoio", afirma María, que reconhece que quando olha para Luis
agora vê outra pessoa.
"A doença o roubou de mim,
já não é a pessoa por quem me apaixonei", explica. "Chegou a um ponto
em que ter relações era um tormento, porque tinha a sensação de que ele só
queria se aliviar, e eu já não sentia nada". Custou muito para Maria levar
Luis a uma instituição. Ela o visita todos os dias. Compartilham menos tempo,
mas com qualidade.
Sentimentos como a solidão, o
isolamento, a incapacidade de comunicar ou a vergonha são os piores
companheiros para o doente e seu parceiro.
"Com freqüência, o cônjuge
não consegue compreender a situação e se sente mal. Não quer se sentir como um
objeto de desejo desconhecido, quando antes era conhecido e desejado",
explica Boada. Não costumam contar isso a ninguém, mas quando o tema surge na
consulta com Boada, a especialista nota que "tiram um peso dos
ombros".
Explicam que seu marido ou esposa
doente os procuram buscando carinho porque os reconhecem como uma pessoa
próxima cujo contato lhes dá prazer e tranqüilidade. "Nesse contato também
há memória", afirma.
A sexualidade é outro dos
aspectos do casal que muda. "A pessoa com demência pode ter a mesma
necessidade de contato físico que tinha antes, de continuar mantendo o mesmo
ritmo em suas relações sexuais, mas a forma de comunicar isso pode ser
diferente. Antes, por exemplo, se insinuaria a seu parceiro ou parceira
propondo uma siesta, mas as vítimas da doença não conseguem se comunicar dessa
maneira. Aproximam-se de seus parceiros, a quem ainda desejam, e os tocam, e
isso pode acontecer no momento mais inoportuno, o que provavelmente gerará
rejeição", explica Boada.
"O cônjuge são tem duas
opções: viver isso de uma forma positiva, participando do jogo, ou pode pensar
que está sendo usado e então rejeitar o outro", explica Boada.
"Devemos educar o casal e a família, que devem compreender que manter a
sensação de prazer é boa para a saúde do doente, e isso implica desfrutar da
comida, do cheiro do café, do contato físico com os demais e de outros
prazeres".
Uma das partes do cérebro afetadas
pela doença é o lóbulo pré-frontal, que controla as relações com o entorno e
por isso alguns doentes se comportam com maior desinibição. Em alguns casos
chega a haver até uma aparente hiperatividade sexual. "Podem dizer à
acompanhante ou enfermeira que gostam de seus peitos, chegam até a tocá-la com
atrevimento, mas na realidade isso não significa nada", explica Boada.
"A masturbação em público,
por exemplo, sobre a qual não se fala, mas que se vê com freqüência nos asilos,
deve ser reconduzida, tratada com naturalidade, e deve-se ensinar ao doente que
trata-se de algo privado e que portanto ele deve se retirar para seu quarto ou
o lavabo", afirma.
Há tantas histórias de amor
quanto doentes. Na Fundação ACE, os funcionários ainda se lembram do caso de um
paciente de 75 anos que ia ao centro e participava de suas atividades
terapêuticas. Ele havia sido diplomata. Sentava-se à mesa como um autêntico cavalheiro
inglês, sempre vestido de terno, impecavelmente. Logo fez amizade com uma
mulher também doente, a quem dava instruções, como se fosse sua secretária,
para que cumprisse suas tarefas. Passavam dias de mãos dadas. Era enternecedor
ver como ela lhe arrumava a gravata. Ao acabar o dia, saiam pela porta de mãos
dadas e a surpresa chegava quando apareciam a esposa do diplomata e o marido da
namorada, que vinham buscá-los. A troca de casais se dava com a maior
naturalidade. Que sentimentos surgiram entre ambos? "Com certeza, uma
sensação de serenidade, de compartilhar mais horas, compartilhar um projeto de
vida comum", conclui Boada. ( Mónica L. Ferrado).
http://portaldoenvelhecimento.org.br/
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