Tenho
pensado muito e ao contrário do que muitos julgam
nos últimos tempos, tenho vivido mais intensamente! Emoções,
afetos, relacionamentos fraternos, amorosos, adquiriram novos aspectos e sob uma
perspectiva mais abrangente, a vida ganhou um novo significado.
Meu
olhar cinqüentenário encontra o olhar da criança que fui e me vê crescendo,
adolescendo, amadurecendo, envelhecendo… meu pai, minha mãe… a vida seguindo
seu curso… meus amores, meus medos, minhas alegrias e dores.
Olho
para minha mãe e sinto a alegria de vê-la ainda viçosa no humor, na relativa
autonomia que ainda possui caminhando conosco e mantendo conservada a força
de sua auto-estima. Entretanto, a comunicação verbal é
cada vez mais vaga e imprecisa…
Percebo
com clareza que o portador do Alzheimer é um guerreiro solitário travando uma
luta constante e inglória contra o vazio do esquecimento… No mundo das
palavras, seu campo de ação torna-se cada vez mais estreito e limitado para que
possa dar vazão ao império dos sentidos. Já no universo do sentir a vida pulsa
estrondosa e vibrante, sem subterfúgios nem fronteiras!
Assim,
quando o repertório das palavras se evapora, voltamos a descobrir a forma única
com a qual todo o universo se comunica: as linguagens do corpo, da alma, do
coração! Aliás, pensando bem, não foi assim que nascemos
vazios de qualquer palavra, analfabetos de qualquer idioma?! E mais: também
não conhecíamos
as pessoas que nos abordavam nem tínhamos idéia
de nomes, lugares ou qualquer referência de tempo, de espaço… no entanto, o
universo dos sentidos sempre funcionou com muita intensidade, não é mesmo?
Dessa
forma, diante dos silêncios, das palavras desconexas, dos pequenos gestos, das
posturas corporais, dos mínimos detalhes das expressões faciais ou do foco do
olhar, vou conseguindo encontrar pistas indispensáveis para detectar se minha
mãe está confortável ou padecendo de algum mal-estar.
Nesse
reaprendizado da linguagem universal, com a qual todos nós nascemos, a intuição
aflora e somos envolvidos por uma capacidade de percepção muito além do alcance
da nossa visão comum. Há uma expansão do campo da sensibilidade, que nos
permite redescobrir a importância do toque carinhoso, do abraço aconchegante,
do beijo espontâneo, do olhar cheio de ternura, da delicadeza dos gestos.
Com
paciência, espero o tempo que for necessário para que minha mãe possa assimilar
as mensagens e, por si mesma, execute as ações ou me forneça às informações de
que preciso para melhor ajudá-la em momentos difíceis de crise ou de mal-estar
como na situação que relato a seguir:
Certa
noite, após deitar-se, continuou de olhos abertos. Como sempre, deito junto
dela e espero que adormeça. As horas foram avançando e resolvi perguntar se
estava sentindo alguma coisa. Olhou-me dizendo o quê? e
soltou um gemido. Perguntei se estava sem sono. Respondeu-me: não
entendo. Não sei… Respeitando-lhe o silêncio, fiquei quieta, abraçada
com ela e lhe acariciando os cabelos…
Alguns
momentos depois soltou mais uns gemidos e me disse: Vou
lhe perguntar uma coisa… (pausa) Vixe, eu não
sei… (pausa) Quero que você
me (palavra ininteligível)… Pausa e mais gemidos, desta vez, passando a mão
na barriga. Perguntei então se a barriga estava doendo. Ela apenas me olhou com
expressão de dor. Pus a minha mão na barriga dela e insisti: Dói?..
Dói
aqui? … É dor: ai! ai! ai! aqui? Ela disse: quê?
(pausa) Não entendo… Não
sei… e continuou a gemer, olhando-me com ar de quem não
sabe o que dizer.
Esse
jogo de perguntas, silêncios, respostas vagas e alguns gemidos continuou, sem
que eu pudesse me situar sobre o que estava acontecendo ou que providência
deveria tomar. Quando lhe disse que iria sair para procurar um remédio, ela
reagiu: Não! Não saia agora não!… Quero lhe perguntar…
(pausa). Esperei um pouco e disse: O que quer saber? Entre
pausas, silêncios, ela disparou a falar: Não
sei… Não entendo… Ô
meu Deus!… Fico pensando… Quero
me lembrar… Não sei… Tenho medo… Às
vezes acho que… tô maluca… que Deus me livre! (pausa longa) Não
sei se casei se não casei… Ah
meu Deus!…
Sentindo-lhe
a angústia na agitação do corpo dela contra o meu, abracei-a forte, fui
ouvindo, respondendo às perguntas e buscando acalmá-la :
Eu estou aqui com você! (ela ficou me olhando)… Você não
está sozinha! (continuou me olhando)…
Você não está maluca! Depois ficamos em silêncio… Enquanto a
beijava e acarinhava, ela se aconchegou no meu abraço, gemeu um pouco e, após
um tempo, adormeceu…
Um
abraço a todos e lembrem-se: assim como o essencial é
invisível aos olhos (Antoine de Saint-Exupéry)
somente o coração expressa e traduz a linguagem da alma! (Gracinha Medeiros).
http://www.cuidardeidosos.com.br/
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