sexta-feira, 17 de maio de 2013

QUANDO OS NEURÔNIOS MORREM


" Um doente de Alzheimer não tem direito nem mesmo à falta de esperança. O seu destino é o nada absoluto"


Luto diário
"Eu perco minha mãe um pouco a cada dia", diz a professora Yone Beraldo. Em março de 1996, ela recebeu a notícia de que Adeilde de Moura era vítima da doença de Alzheimer. Costureira desde a juventude, a essa altura Adeilde já não sabia mais costurar. A vaidade deu lugar ao desleixo. Ela se tornou agressiva. Aos poucos, Adeilde vai sucumbindo totalmente ao Alzheimer. "Vivo um luto diário", define Yone. Hoje, aos 83 anos, Adeilde não anda nem fala. Tampouco reconhece a filha e o genro, Paulo, que estão com ela o tempo todo. Mas, todos os dias, Adeilde chora. Em algumas ocasiões – cada vez mais raras –, Adeilde esboça um sorriso. "É quando tenho certeza de que minha mãe sabe, de um modo ou de outro, que é amada", consola-se Yone.

Quando as mulheres dos espelhos apareceram, em 1997, a costureira aposentada Adeilde de Moura ficou ainda mais agitada. Muito aflita, ela pedia ajuda à filha, Yone Beraldo. Queria abraçar a mulher do espelho da sala, mas não conseguia. Já a mulher do espelho do banheiro era de uma antipatia atroz. "Não gosto dessa camarada, não. Mande ela parar de olhar para mim", resmungava Adeilde. A mulher do espelho do quarto, no entanto, era a que lhe causava mais sofrimento. Vaidosíssima até ter ceifada a sua saúde mental, Adeilde queria presenteá-la com os sapatos, colares, brincos e pulseiras colecionados ao longo da vida – mas a mulher do espelho se recusava a aceitá-los. "Por que ela não quer os meus presentes? Ela não gosta de mim?", chorava. Aquelas três mulheres não eram uma alucinação, mas o reflexo dela própria, Adeilde, nos diferentes espelhos da casa. Vítima da doença de Alzheimer, ela já não se reconhecia mais. Para aplacar a angústia da mãe, Yone se fez passar pela mulher do espelho do quarto, aceitou os mimos que lhe eram oferecidos e se despediu para sempre. Todos os espelhos da casa foram, então, guardados. Seis anos depois, eles estão de volta aos seus lugares. É que o Alzheimer de Adeilde, hoje com 83 anos, se encontra em estado tão avançado que a alienou completamente do mundo e de si mesma. "Ela é minha mãe, mas eu não sou sua filha", diz Yone. "Ela existe para mim, mas eu não existo para ela." Na realidade, ninguém existe para Adeilde – nem ela própria.

Principal causa de demência em pessoas com mais de 60 anos, a doença de Alzheimer afeta 20 milhões de pessoas em todo o mundo, 1 milhão delas no Brasil. O mal foi descrito pela primeira vez em 1906, pelo neuropatologista alemão Alois Alzheimer, mas não despertou muito a atenção de seus colegas médicos. Isso porque, na época, as vítimas da doença eram raras. Foi com o aumento da expectativa de vida que os casos de Alzheimer proliferaram, tornando dramas como o de Adeilde mais comuns. Poucas doenças são tão cruéis. No início, ela assume características que tendem a ser confundidas com o processo natural de envelhecimento – confusões de memória, alterações sutis de comportamento e dificuldade de expressão. Conforme o Alzheimer avança, os neurônios morrem, levando embora datas, nomes, rostos e lembranças. É como se as luzes de uma cidade fossem se apagando gradativamente, até a escuridão total. "Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela, não somos nada", escreveu o diretor espanhol Luis Buñuel, na autobiografia Meu Último Suspiro, sobre o Alzheimer que acometeu a sua mãe. No último estágio da doença, a pessoa tem comprometidas até mesmo as suas funções fisiológicas mais básicas (veja quadro).

É dificílimo, obviamente, cuidar de um doente de Alzheimer. Não só por razões práticas, mas também emocionais. É uma experiência não menos do que devastadora testemunhar a trajetória de uma pessoa querida rumo ao nada absoluto. Mas é importante estar ao lado dela nessa viagem. De dois anos para cá, ganhou força a linha de tratamento que apregoa que os responsáveis pelos cuidados diários dos doentes devem tentar "entrar" na realidade que os cerca, não importa quão fantasmagórica ela seja. Perceber o que os aflige no dia-a-dia e aceitar que as trocas afetuosas podem sobreviver até o último momento, ainda que em outro patamar, melhora a qualidade de vida dos pacientes e ajuda a apaziguar a tristeza de quem se vê confrontado com o problema. Graças a essa visão, o aposentado Carlos Stocco, de 61 anos, deixou de sofrer porque seu pai, Antonio, de 89 anos, já não o reconhece mais como filho. "Para ele, sou simplesmente um amigo. Aprendi, no entanto, a perceber que o seu carinho por mim ainda é o mesmo", diz Stocco.

"Vamos lá?"
A quem chega, Antonio Stocco, de 89 anos, vai logo perguntando: "Vamos lá? Vamos lá, falar com ele?" Perguntado sobre onde é "lá" e quem é "ele", Antonio fica com o olhar parado no vazio. "Ele sempre quer ir", conta o filho Carlos. Antonio ainda interage com o mundo ao seu redor, mas essa interação, dia a dia, torna-se mais precária. As frases estão cada vez mais sem lógica. Ele olha para Carlos e não o reconhece como filho. É o "amigo" – o amigo que dorme no mesmo quarto, que lhe dá de comer, que o leva para passear. "O nosso consolo é a certeza de que ele não tem consciência do seu estado", diz Carlos. "Se ele visse o que está acontecendo, o sofrimento seria muito maior."

Nesse sentido, um dos trabalhos mais fascinantes com doentes de Alzheimer é de autoria da enfermeira Ceres Ferretti, mestra em neurociências pela Universidade Federal de São Paulo. Ao sanar apenas questões ligadas à falta de orientação espacial, ela conseguiu controlar as alterações de comportamento de mais de 70% dos doentes que acompanha. Adotar o hábito de acender as luzes da casa ao entardecer, por exemplo, pode evitar as crises de agressividade que tendem a acometer as vítimas do mal quando anoitece. Um dos casos mais impressionantes solucionados por Ceres é o de uma senhora que ainda conseguia acordar durante a noite para ir ao banheiro. Para ajudá-la, o marido deixava a luz do corredor acesa. Ao levantar-se da cama, no entanto, ela começava a chorar e não conseguia se mover. Ao estudar o espaço do quarto, para decifrar o motivo que detonava essa crise noturna, Ceres notou que o chão entre o quarto e o banheiro era vitrificado. O reflexo da luz sobre o piso transformava-se, nos delírios da paciente, em água. Por ser incapaz de atravessar aquele "lago" é que a senhora chorava e não arriscava um passo em direção ao banheiro. A colocação de um carpete resolveu o problema.

O Alzheimer ainda é um mistério para a ciência. O diagnóstico é feito por exclusão e os remédios são só paliativos. Os fatores de risco permanecem obscuros – de certo, só há o fato de que manter-se intelectualmente ativo desde a juventude pode reduzir os riscos de aparecimento do mal. Na últimas duas décadas, foram desvendados em parte alguns dos processos que levam os neurônios à morte. Basicamente, os cientistas descobriram que, nos portadores de Alzheimer, duas proteínas, chamadas beta-amilóide e tau, funcionam de maneira inadequada. Elas formam placas e emaranhados de fibras que sufocam, atrofiam e matam as células cerebrais.

Dos cerca de 100 bilhões de neurônios que compõem o cérebro de um adulto, os primeiros a ser aniquilados pelo Alzheimer estão envolvidos na produção de acetilcolina, uma das substâncias responsáveis pela memorização. As únicas drogas disponíveis contra o Alzheimer se limitam a aumentar a quantidade de acetilcolina no cérebro. Lançados a partir de meados dos anos 90, a tacrina, a rivastigmina, o donepezil e a galantamina só têm efeito na fase inicial da doença. Um novo medicamento deve chegar ao Brasil no início de 2004: a memantina. Ele se mostrou razoavelmente eficaz no tratamento de doentes em estágios mais avançados, mas, assim como os remédios já existentes, tende a perder a eficácia depois de seis meses de uso. "O desafio é a criação de um medicamento que impeça a formação das placas de proteína que levam à morte dos neurônios", diz o neurologista Paulo Bertolucci, professor da Universidade Federal de São Paulo. Um raio de esperança surgiu na Universidade Federal do Rio de Janeiro. O bioquímico Sérgio Ferreira identificou compostos capazes não só de evitar a formação das placas de proteína, como também de dissolvê-las. Mas, por enquanto, os testes estão restritos aos ratos de laboratório.


http://veja.abril.com.br/

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