Meu pai sabia o que estava para acontecer. O Alzheimer já estava em seu
radar desde que o pai dele morrera da doença. Testemunhando a
catastrófica deterioração de um homem que havia sido afiado o bastante
para trabalhar diretamente com o general Douglas MacArthur, meu
assustado pai decidiu ser um neurologista. Talvez a carreira médica
pudesse protelar o que ele acreditava ser uma inevitabilidade
genética. Como um eterno lembrete da ameaça, ele mantinha um cérebro
atrofiado num vidro sobre sua mesa. Aquele cérebro, eu descobri
recentemente, pertencia ao meu avô.
Ao
se aproximar da meia-idade, meu pai começou a realizar experimentos em
si mesmo, usando suplementos alimentares. Com 60 anos, ele tomava 78
tabletes por dia. Ele rastreava qualquer coisa que oferecesse a
possibilidade de salvar neurônios e eliminar radicais livres: ômega 3,
6, 9; vitaminas E e C; ginkgo, alecrim e sálvia; ácido fólico; semente
de linhaça.
Após
se aposentar da prática de neurologia em Naples, Flórida, ele passava
horas fazendo contas todos os dias. Mesmo quando eu o visitava, ele se
sentava silenciosamente em sua poltrona, com uma calculadora, para
verificar a precisão dos cálculos que fazia de cabeça.
“Para que você está salvando sua mente, pai?” eu frequentemente perguntava a mim mesma.
“Estou aqui agora, esperando para conversar com você”.
Em
uma dessas ocasiões, ele subitamente levantou os olhos de seu jogo de
sudoku e olhou para mim: ”Prometa-me uma coisa, garota”, disse ele.
“Qualquer coisa”, respondi.
“Jure sobre a Bíblia de sua avó que você colocará uma arma na minha cabeça se eu acabar como meu pai”. Ele estava falando sério.
Como
você responde a um homem que viu o próprio pai limpar fezes das paredes
de sua casa na Virginia? Um homem que assumiu uma segunda hipoteca para
comprar o primeiro aparelho de tomografia computadorizada da Flórida?
“Jure para mim”, repetiu ele.
Ele
colecionava armas e as guardava trancadas a chave. E sabia que eu podia
atirar, pois ele mesmo havia me ensinado. Pousei minha mão sobre a capa
de couro da Bíblia, que pertencera à minha bisavó Nannie Dunlap e à
minha avó Nancy Scott.
“Eu juro”, acabei dizendo. Ele acenou em aprovação.
Alguns
anos depois, meu pai chegou em minha casa com uma mala cheia de
suplementos. Ele dividia suas pílulas da semana em copos de papel,
prontos para ingestão junto a cada refeição.
“Garota, você também deveria tomar alguns destes”.
“Por quê?” “Porque você é meu clone genético”.
Nossa
semelhança física e de traços de caráter era excepcional: altos, lábios
grandes, olhos azuis, sardas na pele, expressão angustiada. Exceto por
nossos cromossomos de homem e mulher, quase tudo nos dois era uma
compatibilidade perfeita. Meu pai prosseguiu, explicando que todos
herdam uma cópia do gene APOE de cada um dos pais. O gene pode indicar
uma predisposição de risco genético para o Alzheimer.
O APOE-2 é relativamente raro, e pode inclusive proporcionar alguma proteção contra a doença.
O APOE-3 é o mais comum deles, e parece desempenhar um papel neutro.
O APOE-4 indica o maior fator de risco.
“Tenho apenas 34 anos! Não posso pensar nisso mais para frente?” Ele meneou a cabeça.
De
volta à Flórida, ele me enviou um kit de teste genético via FedEx, me
instruindo a coletar sangue no consultório de meu médico, mas enviar os
resultados para ele. Descobrimos que, assim como meu pai, eu carrego o
gene APOE-3 _ significando que eu posso ou não desenvolver a
doença. Porém, ao contrário de meu pai, eu terei de esperar para
descobrir.
Em
2009, aos 71 anos de idade, ele fez um exame de ressonância magnética
que mostrou uma “atrofia consistente” com o Alzheimer. Ele olhou para a
chapa e ficou confuso pela visão de seu próprio cérebro.
Passei
recentemente algum tempo com meu pai, enquanto sua esposa realizava uma
cirurgia. Levei-o para visitá-la todos os dias, e, quando voltávamos
para casa, eu pedia que ele parasse de chamar o nome dela a cada cinco
minutos. Eu lhe servia o jantar e as pílulas nas horas indicadas. Eu
limpava seus “acidentes”.
Certa
tarde, enquanto ele assistia a um jogo de beisebol na televisão, entrei
em sua toca e vi o muro de suplementos que ele costumava tomar _
armários e armários de pílulas, com nomes como “memoral” e “mente
afiada”. Não precisaremos mais delas. Apoiei minha mão sobre o armário
de armas. Também não precisaremos de vocês.
Meu
pai caminhava comigo até o café todas as manhãs. A única coisa que ele
dizia nessas caminhadas era: “Os hibiscos estão em plena
florescência”. E o dizia dezenas de vezes. Na última manhã de minha
visita, ele não mencionou as flores. Mas, quando passamos em frente a
uma árvore particularmente florida, ele parou e olhou para mim.
“Garota”, disse ele, fazendo uma pausa para encontrar as palavras. Sua voz tremeu.
“Gostei muito de você ter vindo até aqui para cuidar de mim”.
Consegui
me recompor o bastante para dizer: “Foi um prazer, especialmente depois
de tudo que você fez por mim. Além disso, você não precisa de muitos
cuidados”.
Enquanto
caminhávamos, meu pai repetia sua última frase a cada cinco minutos … O
mesmo tremor na voz, exatamente no mesmo lugar. A cada vez, minha
resposta ficava menor e menor, até que era eu quem não tinha mais nada a
dizer.
Nancy Stearns Bercaw é escritora em Vermont, Estados Unidos.
http://dedicacaoeternura.blogspot.com.br/2
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