"Muitos cuidadores estão abandonados, sem ter com quem
dividir suas angústias", afirma Dorli Kamikhabi, terapeuta e
coordenadora de grupo de apoio a cuidadores de pacientes com Alzheimer a
ser iniciado no HC/SP.
Sobre
o “cuidar” Leonardo Boff, teólogo e escritor, diz: “Cuidar é mais que
um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção.
Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e
de envolvimento afetivo com o outro”. Já Clarice Lispector, fiel a seu
estilo conta: “Um amigo me chamou para cuidar da dor dele, guardei a
minha no bolso. E fui”.
Que tarefa delicada é esta que compreende tantas dores e
angústias, uma entrega espiritual e física quase sem limites? O diálogo
abaixo expressa um pouco desta espécie de desconforto silencioso,
confuso, perdido, triste:
– O que eu vim fazer aqui?
– Você pediu para ir ao banheiro, mamãe. Não estava com vontade?
– Mas, e agora que terminei, vou para lá ou eu vou para cá?”
O diálogo sensível e delicado entre Margarida Breno, 90 anos,
vítima da doença de Alzheimer, enfermidade sem cura cujo principal
sintoma é a perda de memória, e sua filha Romilda Breno Kiesshao, 67
anos, sua principal cuidadora, é apenas uma dentre as dificuldades
enfrentadas pelas famílias quando um dos seus membros, por súbito
acidente ou doença, se vê totalmente dependente. Nesses casos, é comum
um integrante tornar-se o cuidador principal e é exatamente sobre ele
que recai a maior parte da angústia e demandas da nova situação.
Ao ler esta matéria, lembrei de um amigo de faculdade que
sofreu um acidente terrível e passou seis meses preso a uma cama de
hospital. Sua mãe não desgrudou do filho um minuto sequer, tamanha era a
devoção e a dedicação aos cuidados e atenção constantes. Bem, um ano
após a tragédia, meu amigo estava plenamente recuperado, mas sua mãe
adoeceu seriamente no retorno para casa, vindo a falecer no mês
seguinte. Lembro ter ouvido: “Acho que foi demais para mim, muito além
do que eu poderia aguentar.”
O cuidador sofre por diversas razões, seja enfrentar, desde
situações corriqueiras até aspectos emocionais como a dificuldade de
lidar com a dúbia emoção gerada pela presença de uma pessoa diferente do
que era antes da doença: “Ele passa por uma espécie de luto”, explicou à
ISTOÉ Emilie Godwin, terapeuta especializada em demandas do cuidador da
Universidade de Virgínia (EUA). “Precisava parar para dar novo sentido à
nova situação, mas existe uma forte demanda do presente.”
Além dos cuidados com o paciente, o cuidador ainda tem de dar
conta da sua própria rotina, não raro eles adoecem junto com o doente,
como o triste relato de meu amigo e sua mãe.
Um estudo da Universidade de Turim, na Itália, testou a
propensão à depressão de 31 cuidadores de portadores de esclerose
lateral amiotrófica, doença degenerativa incurável. Num período de nove
meses, a escala usada para medir estados depressivos nessas pessoas
pulou de 9,7 para 19,3. O sentimento de excesso de carga aumentou 11% – a
principal reclamação era a de não terem tempo para si mesmos. A dona de
casa Romilda Breno teve depressão, engordou e passou a ter crises de
ansiedade. “Sentia-me sufocada.”
Dorli Kamikhabi, terapeuta e coordenadora de grupo de apoio a
cuidadores de pacientes com Alzheimer a ser iniciado no HC/SP, afirma:
“Muitos cuidadores estão abandonados, sem ter com quem dividir suas
angústias”. Pouco a pouco, quem cuida começa a receber apoio
especializado. No Brasil, o Instituto de
Psiquiatria do Hospital das
Clínicas de São Paulo (HC/SP) iniciará em março o primeiro grupo do
País de apoio a cuidadores de pessoas com Alzheimer. A procura pelo
serviço dá uma dimensão de quanto esse tipo de auxílio é necessário: as
40 vagas foram preenchidas em apenas dez dias.
A psicoterapeuta Ana Carolina Costa, colaboradora da iniciativa
complementa: “Damos informações sobre a doença e os ajudamos a
processar as emoções”.
Iniciativas como essa de Dorli e equipe ampliam a questão
complexa do cuidar e abrem espaço para novas discussões sobre o tema
principalmente num momento em que o envelhecimento da população toma
proporções assustadoras. A relação cuidar e ser cuidado implica
movimentos internos desconhecidos porque achamos que damos conta mas o
peso que recebemos nunca é corretamente avaliado por nós e pelos
profissionais envolvidos. Subestimamos a dificuldade encontrada.
Ainda neste primeiro semestre, outro grupo semelhante será
montado em Sergipe, indicado para cuidadores de vítimas de trauma
cranioencefálico. Eles são obrigados a lidar com a raiva, a dor e as
dificuldades de se adaptar a uma nova situação de um dia para outro.
Um estudo da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo
mostrou que 34% desses indivíduos tinham sintomas depressivos. “É normal
sentir raiva do que aconteceu. A aceitação é lenta”, diz a enfermeira
Edilene Costa, especialista em pacientes com trauma cranioencefálico,
autora do estudo e coordenadora do grupo a ser iniciado no Estado
nordestino.
Foi o que aconteceu com Luzimara da Silva, 32 anos, que hoje
cuida da filha, Laiza Santos Araújo, 8 anos. Aos 6 anos, a menina caiu
da moto quando passeava com o tio e perdeu os movimentos do lado
direito.
“Tive muitas dificuldades para lidar com tudo isso. Até
hoje eu e a avó dela choramos.” Luzimara não fala com o parente até hoje
e se separou do marido. “Ele não se conformou, disse que a culpa era
minha.”
Essa é outra questão delicada. Problemas no casamento tendem a
se agravar. Mas o sucesso da nova relação que se impõe está em não olhar
para trás. “O cuidador precisa dar um novo significado à relação, rever
o que considera sucesso”, diz Emilie Godwin.
“Muitas vezes não é aquela relação de parceria convencional nem
o ideal de um filho supersaudável.” Na opinião de Emilie, as pessoas
que lidam melhor com a situação não culpam ninguém, são flexíveis e
criam metas para si próprias.
Mas até para se conseguir essa flexibilidade, tolerância com as
próprias fraquezas e as do outro ou ressignificar relações é complicado
e de difícil assimilação. Como diz Dorli, como tratar e discutir essas
angústias, como partilhá-las e compartilhá-las? Espera-se que trabalhos
como esse da terapeuta e outros grupos aconteçam em todo país, criando
espaços e escutas adequadas para acolher o sofrimento de tantos.
Que me perdoe a grande Clarice Lispector: não há como “guardar a
nossa dor no bolso” para cuidar do outro. Nesta relação, trilhamos uma
mesma via de duas mãos de direção. Assim, nos tornamos “um”. Talvez por
isso as consequências sejam tão delicadas.
http://portaldoenvelhecimento.org.br/
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