quinta-feira, 9 de maio de 2013

CUIDAR E SER CUIDADO: UMA RELAÇÃO MUITO DELICADA



"Muitos cuidadores estão abandonados, sem ter com quem dividir suas angústias", afirma Dorli Kamikhabi, terapeuta e coordenadora de grupo de apoio a cuidadores de pacientes com Alzheimer a ser iniciado no HC/SP. 27/02/2012 - por Redação Portal na categoria “Saúde-Doença” na categoria 'Cuidados'


Sobre o “cuidar” Leonardo Boff, teólogo e escritor, diz: “Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”. Já Clarice Lispector, fiel a seu estilo conta: “Um amigo me chamou para cuidar da dor dele, guardei a minha no bolso. E fui”.


Que tarefa delicada é esta que compreende tantas dores e angústias, uma entrega espiritual e física quase sem limites? O diálogo abaixo expressa um pouco desta espécie de desconforto silencioso, confuso, perdido, triste:


– O que eu vim fazer aqui?
– Você pediu para ir ao banheiro, mamãe. Não estava com vontade?
– Mas, e agora que terminei, vou para lá ou eu vou para cá?”


O diálogo sensível e delicado entre Margarida Breno, 90 anos, vítima da doença de Alzheimer, enfermidade sem cura cujo principal sintoma é a perda de memória, e sua filha Romilda Breno Kiesshao, 67 anos, sua principal cuidadora, é apenas uma dentre as dificuldades enfrentadas pelas famílias quando um dos seus membros, por súbito acidente ou doença, se vê totalmente dependente. Nesses casos, é comum um integrante tornar-se o cuidador principal e é exatamente sobre ele que recai a maior parte da angústia e demandas da nova situação.


Ao ler esta matéria, lembrei de um amigo de faculdade que sofreu um acidente terrível e passou seis meses preso a uma cama de hospital. Sua mãe não desgrudou do filho um minuto sequer, tamanha era a devoção e a dedicação aos cuidados e atenção constantes. Bem, um ano após a tragédia, meu amigo estava plenamente recuperado, mas sua mãe adoeceu seriamente no retorno para casa, vindo a falecer no mês seguinte. Lembro ter ouvido: “Acho que foi demais para mim, muito além do que eu poderia aguentar.”


O cuidador sofre por diversas razões, seja enfrentar, desde situações corriqueiras até aspectos emocionais como a dificuldade de lidar com a dúbia emoção gerada pela presença de uma pessoa diferente do que era antes da doença: “Ele passa por uma espécie de luto”, explicou à ISTOÉ Emilie Godwin, terapeuta especializada em demandas do cuidador da Universidade de Virgínia (EUA). “Precisava parar para dar novo sentido à nova situação, mas existe uma forte demanda do presente.”


Além dos cuidados com o paciente, o cuidador ainda tem de dar conta da sua própria rotina, não raro eles adoecem junto com o doente, como o triste relato de meu amigo e sua mãe.


Um estudo da Universidade de Turim, na Itália, testou a propensão à depressão de 31 cuidadores de portadores de esclerose lateral amiotrófica, doença degenerativa incurável. Num período de nove meses, a escala usada para medir estados depressivos nessas pessoas pulou de 9,7 para 19,3. O sentimento de excesso de carga aumentou 11% – a principal reclamação era a de não terem tempo para si mesmos. A dona de casa Romilda Breno teve depressão, engordou e passou a ter crises de ansiedade. “Sentia-me sufocada.”


Dorli Kamikhabi, terapeuta e coordenadora de grupo de apoio a cuidadores de pacientes com Alzheimer a ser iniciado no HC/SP, afirma: “Muitos cuidadores estão abandonados, sem ter com quem dividir suas angústias”. Pouco a pouco, quem cuida começa a receber apoio especializado. No Brasil, o Instituto de 
Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP) iniciará em março o primeiro grupo do País de apoio a cuidadores de pessoas com Alzheimer. A procura pelo serviço dá uma dimensão de quanto esse tipo de auxílio é necessário: as 40 vagas foram preenchidas em apenas dez dias.


A psicoterapeuta Ana Carolina Costa, colaboradora da iniciativa complementa: “Damos informações sobre a doença e os ajudamos a processar as emoções”.


Iniciativas como essa de Dorli e equipe ampliam a questão complexa do cuidar e abrem espaço para novas discussões sobre o tema principalmente num momento em que o envelhecimento da população toma proporções assustadoras. A relação cuidar e ser cuidado implica movimentos internos desconhecidos porque achamos que damos conta mas o peso que recebemos nunca é corretamente avaliado por nós e pelos profissionais envolvidos. Subestimamos a dificuldade encontrada.


Ainda neste primeiro semestre, outro grupo semelhante será montado em Sergipe, indicado para cuidadores de vítimas de trauma cranioencefálico. Eles são obrigados a lidar com a raiva, a dor e as dificuldades de se adaptar a uma nova situação de um dia para outro.


Um estudo da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo mostrou que 34% desses indivíduos tinham sintomas depressivos. “É normal sentir raiva do que aconteceu. A aceitação é lenta”, diz a enfermeira Edilene Costa, especialista em pacientes com trauma cranioencefálico, autora do estudo e coordenadora do grupo a ser iniciado no Estado nordestino.


Foi o que aconteceu com Luzimara da Silva, 32 anos, que hoje cuida da filha, Laiza Santos Araújo, 8 anos. Aos 6 anos, a menina caiu da moto quando passeava com o tio e perdeu os movimentos do lado direito. 
“Tive muitas dificuldades para lidar com tudo isso. Até hoje eu e a avó dela choramos.” Luzimara não fala com o parente até hoje e se separou do marido. “Ele não se conformou, disse que a culpa era minha.”


Essa é outra questão delicada. Problemas no casamento tendem a se agravar. Mas o sucesso da nova relação que se impõe está em não olhar para trás. “O cuidador precisa dar um novo significado à relação, rever o que considera sucesso”, diz Emilie Godwin.


“Muitas vezes não é aquela relação de parceria convencional nem o ideal de um filho supersaudável.” Na opinião de Emilie, as pessoas que lidam melhor com a situação não culpam ninguém, são flexíveis e criam metas para si próprias.


Mas até para se conseguir essa flexibilidade, tolerância com as próprias fraquezas e as do outro ou ressignificar relações é complicado e de difícil assimilação. Como diz Dorli, como tratar e discutir essas angústias, como partilhá-las e compartilhá-las? Espera-se que trabalhos como esse da terapeuta e outros grupos aconteçam em todo país, criando espaços e escutas adequadas para acolher o sofrimento de tantos.


Que me perdoe a grande Clarice Lispector: não há como “guardar a nossa dor no bolso” para cuidar do outro. Nesta relação, trilhamos uma mesma via de duas mãos de direção. Assim, nos tornamos “um”. Talvez por isso as consequências sejam tão delicadas.
http://portaldoenvelhecimento.org.br/

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